Poema | Marco de Menezes

1.
o amarelo de um domingo
pode rapidamente mudar de tom.
ir de uma translucidez de garrafa
a uma macicez de quibebe
ou de massilha. 

2.
não se pode crer em uma rua
que só sobe, nem em uma rua
totalmente lisa.

3.
músicas que tocam de manhã
serão destruídas à tarde
pela sombra de um angico
ou de uma ponte
deitada sobre elas.

4.
o domingo é equação complexa o bastante para não 
 [caber em um parque vazio. 

5.
o amor dos jovens
é o primeiro a ser
chacinado aos domingos

6.
quanto mais perto da noite
tendo se arrastado
pelos túneis da tristeza
mais o domingo se alegra

7.
no entanto
às vezes não é o domingo
a causa do incêndio de segunda
nem a segunda
saindo de preto à rua
poderá dizer
de opalescentes domingos afebris. 

8.
os pilotos de domingo
têm os dentes extraídos
no sábado
para que a mordedura
obtenha um macio cruel
e hálito de esperança.

9.
mais cedo, se é domingo, a manhã é luminosa e vital
mais tarde, se é domingo, a tarde empalidece até o
[desmaio

10.
estranhos
os elevadores que conduzem
o domingo
ao subsolo 1 ou ao subsolo 2.
há uma altivez de descer no quarto andar
mas quase nenhuma de descer no térreo.
o porteiro do domingo tem muitas faces
e nenhuma, e nenhuma altivez tampouco.

11.
há bairros
onde nenhum velho
será visto
e as casas fechadas
sem cantoria ou churrasco
também não escondem velhos.
há bairros inteiros
sem um único velho.
o domingo os prestidigita
os transforma em juta
limas
ou pestanas de violões
encouraçados.

12.
o amor dos sérios
desmaia
sob as rodas
do domingo.

13.
plantação dominical
     13.1.
      ou obscuramente calmo, nas UPAs destroçadas 
            ou um leviatã convulsionado e hostil 
    que devora tripas e miolos, nas UPAs 
  [destroçadas
     13.2.
     nas delegacias policiais
     a vontade morre e as mãos descascam
     e aquele verde-claro
     que ninguém nota a semana toda
     ataca
     os objetos vizinhos e as palavras
     digitadas em beós:
     roubo verde abalroamento verde
     abigeato verde
     assassinato verde.

14.
em feiras de móveis ou carros
o domingo:
no primeiro caso
você pode entreter seu ódio
e desgastar seus incisivos laterais
no MDF e na madeira de pinus.
no segundo, já
a manhã é um carro ela mesma
feliz, bárbara e intrujã.

15.
nas paradas
os papéis colados
conversam sozinhos
sobre destino e luxúria.
no domingo é sobre isso
somente que se fala
na sala ou no espaço.

16.
as fotos tiradas hoje entregam enganos de todos os dias.

17.
um domingo em Macau
e um domingo em Itaqui,
para além da língua,
guardam formidável simetria

(poderiam ambos
serem pinturas em selos
Itaqui vista de Alvear
Macau vista de Hong Kong
água rosa e flores sentinelas)

mas o que é simétrico é o desprezo
e o que é formidável é o pequeno

talvez como os selos
que um colecionador pinça e amplia
no projetor
às três da tarde
para os netos

o português andrógino do espanhol
o português erínea do cantonês.

18.
o domingo era um homem velho de olhar sentido
que ficou mirando a lateral do carro
como se ali
houvesse um risco um amassado
onde só havia a lataria
simples e banal
de um carro branco.

19.
Ofélia
todo domingo
vai admirar a sanga
nos Pelúcios.

20.
eu quis estender em um domingo
sobre o espinhal antigo
a velha toalha de criança
que sempre levava comigo

ainda está lá, aquele trapo torpe
e há muitos anos deixei de visitá-la
como a um parente amnésico

na boca da caverna do futuro
no entanto
ela segue sendo
minha única bandeira


Marco de Menezes é autor dos livros de poemas As horas dragas (1999), Pés de aragem (2007), Fim das coisas velhas (2009) — vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura nas categorias Poesia e Livro do Ano em 2010, Ode paranoide (2010) e Pequena madrugada antes da meia-noite (2016). Nasceu em Uruguaiana (RS) e vive em Caxias do Sul (RS).