Poema | Carolina Braga Ferreira

[Sobre ouvir as vozes de nossas mulheres]

mulheres negras não se suicidam, digo à minha prole
ainda que lavem o arroz aos prantos, não se suicidam
elas são mortas
antes que pensem no sono letífero, voluntário e induzido
pelas mãos de seus companheiros, violadas amorosamente
pelos pedestres másculos desconhecidos, expostas à estranheza
são mortas por quem ao lado delas dorme, ainda estando quentes do sono, do tecido de
cobrir corpo, do sexo animalesco e sem consenso, da cólica noturna decorrente do sangue
menstrual — aviso prévio, presságio
ou pelos trabalhadores evangélicos que acordam às seis da manhã e as fazem apertar os
passos na rua escura, a caminho de seus trabalhos
são arrancadas do sopro-vida sem que saibam, ou bem quando pressentem o homicídio
hediondo fadado
antes que pensem em suicídio, são dadas como mulas abatidas, enquanto lavam as batatas
para o almoço, nas casas de madames, e são apalpadas pelas mãos inimigas dos senhores de mansão
à minha prole
explico que mamãe tem contato diretamente com Deus ou com o Diabo — um só não bastaria
na proteção
perpetuar o sangue resiliente de minhas mulheres, das filhas minhas que vieram de meu
útero
na última noite de verão
perpetuar o sangue resiliente de todas as mulheres negras
é viver
sem que ontem não se morra
sem que amanhã não se vá
viver com que se conta
hoje
à prole minha de mulheres futuras
— sobre o sangue melânico de mulheres passadas — 
conto-lhe que toda história só é história porque houvera fatalidade seletiva.


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                                                                                                                              Ilustração: DW Ribatski


Carolina Braga Ferreira é poeta, fotógrafa e artista visual. Seu portfólio pode ser acessado em ferreiratcarolina.format.com.