Poema | Ana Santos

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I – Portão de ferro

Vende-se uma casa
desabitada há décadas,
exceto por inócuos
fantasmas.

II – O quintal das pitangas

Na varanda, às vezes fala
uma voz vinda de longe:
“o buraco é fundo,
termina o mundo!”.

Diz-se que crianças
anacrônicas
vêm ao quintal
colher pitangas.
A mais triste encaramuja-se
e adormece
sob a árvore.

Há dentes de leite
no telhado,
umbigos enterrados
no jardim.
A roupa está quarando
à esquerda dos gerânios.
Em giz, a amarelinha
exibe o céu possível.

III – Núcleo

O livro no colo da moça
nomeia bichos e plantas
em latim:
fauna e flora
desfilam sobre o tapete,
as figuras gravam-se
nos olhos do menino.

Há pão na mesa
para quem tem fome.

No sofá, a velha tece
manta imensa,
aquecendo
a sala inteira.

IV – Ao nível do fogo

Em fúria, o homem
lança à parede
um vaporoso
bule de ágata

(a nódoa escura
lavando
os azulejos).

O motim da moça
consiste
em passar novo café:
no fogão, a chama azul
é um pequeno incêndio.

V – Bruma

O homem mira-se
no espelho oxidado
sobre a pia —
é o tempo que converte
seu rosto
neste esgar perplexo.

Água quente
jorra à toa
das torneiras.
O vidro embaça-se:
a bruma
compõe o homem.

VI – Noturno

Ressonam no escuro
as pessoas da casa —
quem as defende
do mal que ronda
porta e janela?

Nos travesseiros de plumas,
o risco da asfixia.
O sono é um abismo
doméstico,
um desamparo comum.

Vindos da chuva,
os cães se escondem
sob as camas.
A inocência
morre nas frinchas.

VII – Cimo

O velho passa os dias
na cadeira de embalo
do sótão,
os olhos fixos
na claraboia:

não raro, um pássaro
vem chocar-se
contra o vidro. 

VIII – Aluvião

Uma enchente leva as caixas
em que se guardam retratos,
recortes, cartas,
escapulários,
sapatinhos de lã.

Boiam no porão turvo
as bonecas esquecidas,
as aranhas submergem
com suas teias perfeitas.

As criaturas do chão
ganham um jeito lacustre.

Sólida,
a casa ergue-se
sobre alicerces de lama. 


ANA SANTOS nasceu em 1984, em Porto Alegre (RS). Graduada em Jornalismo pela UFRGS, é mestra e doutoranda em Estudos de Literatura pela mesma instituição, onde atua como revisora de textos. É autora do livro de contos e prosas poéticas O que faltava ao peixe (2011), contemplado com a Bolsa Funarte de Estímulo à Criação Artística, e da coletânea de poemas Móbile (2017). Com o inédito Fabulário, venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2017 (categoria Poesia).