Perfil do leitor | Nelson Hoineff

De Nelson para Nelson

O criador do Documento Especial e diretor dos filmes sobre Chacrinha, Paulo Francis e Cauby Peixoto fala de seus escritores preferidos, com destaque para o xará autor de A vida como ela é


Omar Godoy
Divulgação
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Não é exagero dizer que Nelson Hoineff está entre os principais pensadores da comunicação e da cultura do Brasil na atualidade. Jornalista, documentarista, crítico de cinema, professor universitário e autor de vários livros sobre audiovisual e novas tecnologias, esse carioca nascido em 1948 acompanhou, registrou e analisou as muitas transformações que o país atravessou nas últimas cinco décadas. Sua marca registrada é uma abordagem sempre crítica e bem-humorada do país, como atestam seus trabalhos mais conhecidos do grande público — o programa de “televisão-verdade” Documento Especial (produzido nos anos 1990 e reprisado até hoje no Canal Brasil) e os filmes Caro Francis, Alô, alô, Terezinha! e Cauby Peixoto: Começaria tudo outra vez. 

Como era de se imaginar, foi o cinema que o capturou para o universo da arte e da comunicação. “Quanto eu tinha 14 anos, meus pais me levaram para a estreia de Fellini 8 ½. É a lembrança mais espetacular que eu tenho. Entrei no cinema um menino e saí outro. O filme mudou minha vida completamente, definiu quase tudo do meu futuro”, revela. Mas a literatura representa outra parte fundamental de seu repertório, também devido à influência da família. “Minha mãe e meu pai eram médicos. Ela psiquiatra e ele, pediatra. Não me lembro de bibliotecas muito amplas em casa, porém ambos me incentivaram desde cedo a ler e fui tomando gosto pelos livros aos poucos.”


O pontapé inicial foi com Monteiro Lobato. Lia um título, passava para outro e relia os anteriores. Logo pulou para o gênero policial: Agatha Christie e, principalmente, Arthur Conan Doyle. “Li tudo do Sherlock Holmes dezenas de vezes e ainda sou muito influenciado por aqueles livros”, diz. Em seguida, já na adolescência, veio a descoberta de Shakespeare. Primeiro Hamlet e depois Macbeth, Romeu e Julieta, Otelo. “Todas essas obras mexeram comigo profundamente, e tenho certeza de que isso acontecia na base da sofisticação, da profundidade dos diálogos. Lia Shakespeare como um padre lê a Bíblia, e isso ainda acontece.” 

O encontro com Kafka, igualmente importante, aconteceu nessa mesma época. “Perdi as contas de quantas vezes li O processo. Acho que foi ali que comecei a entender como a literatura era capaz de expressar a nossa realidade”, conta. Fernando Pessoa e Maiakóvski (segundo ele, leituras quase compulsórias para os jovens de sua geração) também o influenciaram nos anos de formação. O jornalista, no entanto, acredita que foi “muito moldado” por Dostoiévski, Harold Pinter e, sobretudo, Nelson Rodrigues. “Mas é curioso que eu tenha conhecido Isacc Bashevis Singer [vencedor do Nobel de Literatura em 1978] só aos 29 anos. Gostaria que tivesse sido antes, porque ele acabou sendo importantíssimo para a minha compreensão dos paradoxos éticos do judaísmo”, completa. 

Outra descoberta tardia foi o chamado jornalismo literário. Hoineff já exercia a profissão quando entrou em contato com textos dos norte-americanos Truman Capote, Tom Wolfe e Norman Mailer. “Me impressionou muito a maneira pela qual eu identificava convergência de visões com autores desse naipe”, diz o jornalista, que hoje destaca a produção dos contemporâneos brasileiros Fernando Morais, Sérgio Augusto, Ivan Sant’Anna e Ruy Castro — com quem ele atualmente trabalha numa adaptação para o cinema de A noite do meu bem, mais recente livro do biógrafo, sobre a história do samba-canção. 

Hoineff ainda planeja um outro longa-metragem, inspirado na obra de seu mestre maior. “Estou desenvolvendo, ainda de forma embrionária, um novo projeto sobre as frases e ideias de Nelson Rodrigues. Vai se chamar ‘A revolução dos idiotas’”, adianta. Vale lembrar que um dos momentos mais lembrados de sua carreira é justamente uma edição do Documento Especial inteiramente baseada na tese rodrigueana de que “O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”. Também intitulado “A revolução dos idiotas”, o episódio, exibido em 1992, contou com depoimentos e reflexões de pesos pesados da intelectualidade e da arte do país, como Herbert de Souza, Antonio Houaiss, José Celso Martinez Corrêa, Plínio Marcos e Darcy Ribeiro. 

“Vou me aprofundar nesse conceito de que antigamente os idiotas se recolhiam à própria insignificância, mas, quando perceberam que estavam em superioridade numérica, passaram a ocupar todos os espaços importantes do Brasil e fazer com que os ‘melhores’ fossem obrigados a pensar como eles”, explica.