Perfil do Leitor | Neville D’Almeida

A Bíblia, e as bíblias, de Neville

Conhecido por filmes adaptados da literatura e com um romance de estreia recém-lançado, o cineasta de 72 anos fala sobre os livros que fizeram sua cabeça ainda inquieta

Omar Godoy


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Durante 32 anos, Neville D’Almeida ocupou o posto de diretor mais visto do cinema brasileiro. Seu A dama do lotação (1978), adaptado de uma história de Nelson Rodrigues, levou quase 7 milhões de pessoas às salas de exibição e só foi desbancado por Tropa de Elite 2 (2010), de José Padilha, que teve 11 milhões de espectadores. Um feito que o tirou do underground e abriu caminho para a realização de filmes como Os sete gatinhos (também inspirado em material rodrigueano), Rio Babilônia e Matou a família e foi ao cinema (remake da obra de Júlio Bressane) — todos marcados por protagonistas femininas e transgressoras.

Mas a longevidade desse recorde não foi suficiente para lhe garantir uma produção sistemática. Neville, que acabou de completar 72 anos, não filma desde 2005, quando finalizou o documentário de temática indígena Maksuara — Crepúsculo dos deuses, codirigido por Tamur Aimara. Seu último trabalho de ficção está ainda mais distante: Navalha na carne, versão da peça de Plínio Marcos, foi lançado em 1997. Ele ainda tenta emplacar A frente fria que a chuva traz, projeto baseado em texto de Mário Bortolotto, que ainda não saiu do papel.

Isso não significa que o cineasta tenha ficado quieto em sua casa na Ilha da Jigoia, considerada um pequeno paraíso escondido na Barra da Tijuca. Ele afirma que, nos últimos anos, produziu cerca de 120 filmes caseiros ou de baixíssimo orçamento, entre médias, curtas e micrometragens. Também retomou as atividades de fotógrafo e artista plástico (a instalação audiovisual Tabamazônica, inaugurada em 2009, chegou a viajar por algumas capitais e acabou rendendo o livro Além cinema, sobre sua trajetória).

“O Meio é a Mensagem é um livro que lançou todas as bases da comunicação moderna e antecipou a ideia da aldeia global. Mostrava que o motor tinha virado uma extensão do coração, que a roda tinha virado uma extensão do pé”


A grande surpresa, no entanto, é uma incursão no mundo literário. No final do ano passado, a editora Casa da Palavra, do empresário Ricardo Amaral, colocou no mercado seu primeiro romance (que também pode virar filme): A dama da internet, sobre uma mulher traída que empreende uma espécie de jornada sexual no universo virtual. “Mas não tem nada a ver com essa série que está fazendo sucesso, viu? Com esses livros que mostram uma mulher antiquada e submissa, seduzida às custas de um aparato materialista de limusines, helicópteros e consumo de luxo”, diz, evitando comparações com o best-seller 50 tons de cinza.

Neville não sabe responder quem o influenciou na nova carreira de escritor. Em vez disso, enumera os principais autores que fizeram parte de sua formação cultural, intensificada a partir do final da década de 1950 ainda em Belo Horizonte, sua cidade natal. Uma lista que vai de Arthur Rimbaud a Friedrich Engels, passando por Pier Paolo Pasolini, Jack Kerouac, André Breton, Simone de Beauvoir, William Faulkner e Allen Ginsberg, entre vários outros que não caberiam neste espaço.

“Havia uma corrida, na nossa turma de teatro da Universidade Federal de Minas Gerais, para ler todos os livros considerados clássicos e fundamentais. Todo mundo tinha uma grande biblioteca em casa. E quem não tivesse lido Sartre, por exemplo, não era nada dentro do círculo de amigos”, conta o cineasta, que na época mergulhou com mais vontade na obra dos existencialistas. “O existencialismo representava a liberdade, uma nova proposta de vida nos campos espiritual, intelectual e político”, afirma.

“Talvez minha grande influência seja mesmo a Bíblia, que teve um grande impacto sobre mim e me deu um conhecimento da humanidade, da vida e da morte. Todas as histórias estão ali”


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Mais tarde, já nos anos 1970, Neville se interessou pelos conceitos apresentados em O meio é a mensagem (1967), clássico da comunicação e do design escrito por Marshall McLuhan e ilustrado por Quentin Fiore. “É um livro que lançou todas as bases da comunicação moderna e antecipou a ideia da aldeia global. Mostrava que o motor tinha virado uma extensão do coração, que a roda tinha virado uma extensão do pé”, resume.

De lá para cá, o diretor segue incorporando autores ao rol de favoritos — mas ignora o que se convencionou chamar de produção contemporânea. “Não tenho preconceito contra nada, só não classifico as coisas desse jeito. Busco a qualidade onde ela estiver, e estou sempre esperando um novo livro do Zuenir Ventura, do João Ubaldo Ribeiro, do Silviano Santiago, do Mario Vargas Llosa.”

O que pouca gente sabe é que Neville D’Almeida lê a Bíblia diariamente, sempre às 10 horas da manhã. “Leio uma passagem, faço uma grande reflexão e me sinto apto para começar o dia”, revela. Criado numa família de metodistas, o cineasta afirma que conhece o livro sagrado de cabo a rabo, pois praticamente cresceu frequentando uma escola dominical. “Talvez minha grande influência seja mesmo a Bíblia, que teve um grande impacto sobre mim e me deu um conhecimento da humanidade, da vida e da morte. Todas as histórias estão ali.”