Perfil do Leitor | Julio Reny

Leituras de um outsider

Lenda viva do rock gaúcho, mas desconhecido no resto do país, o músico bebeu na fonte dos escritores beat para elaborar sua poesia romântica e desencantada


Omar Godoy

Divulgação


Júlio Reny não tem computador, perfil em rede social e nem endereço de e-mail — o que só reforça, ainda mais, sua condição de outsider. “Acabei ficando à parte do mundo virtual. Mesmo nos anos 1990, quando ainda escrevia textos para rádio, só usava a máquina”, conta o músico e compositor gaúcho de 54 anos, praticamente desconhecido fora de seu Estado.

Na ativa desde o final dos anos 1970, Reny fez história na cena musical de Porto Alegre com os discos Último verão (1983) e Júlio Reny & Expresso Oriente (1989), que renderam clássicos locais como “Amor e morte”, “Cine Marabá”, “Não Chores Lola” e “Uma Tarde de Outono de 73”. O destino, no entanto, não quis que o “Lou Reed dos pampas” levasse seu trabalho para o resto do país, ao contrário do que aconteceu com várias outras bandas gaúchas surgidas no mesmo período (Engenheiros do Hawaii, DeFalla, Nenhum De Nós, Os Cascavelletes, etc.).

Como o mercado de música no Rio Grande do Sul é relativamente autossustentável, o artista seguiu em frente fazendo shows e produzido álbuns por lá mesmo, como solista ou à frente dos grupos Cowboys Espirituais e Os Irish Boys (com quem gravou seu último disco, Bola 8, de 2010). Seu currículo ainda inclui o programa Rádio cool, exibido na Ipanema FM entre 1988 e 1994. Cultuada em Porto Alegre por sua combinação de música e fragmentos poéticos (assinados pelo próprio Reny), a atração acabou virando livro anos depois.

“Essa coisa de ser outsider simplesmente aconteceu, não foi algo que eu quis para mim”, desconversa o músico, que tem como marca registrada uma poesia ao mesmo tempo romântica e desencantada, com poucos paralelos no rock brasileiro. “Respeito muito o Cazuza como poeta, mas minhas grandes referências nacionais são Roberto e Erasmo, pela veracidade com que abordam cada tema que pegam para trabalhar”, revela.

Júlio Reny não tem o mínimo pudor em dizer que não é fascinado pela cultura do Brasil. “Nunca li Monteiro Lobato. Do Erico Verissimo, que é daqui do Rio Grande do Sul, eu só li um pedaço de O tempo e o vento”, diz. Seus escritores preferidos são os americanos da geração beat, que conheceu por meio dos lançamentos da editora Brasiliense, nos anos 1980. De cabeça, cita Jack Kerouac (“On the road é obrigatório”) e Lawrence Ferlinghetti (“A poesia dele me marcou demais”).

Reny também leu muito os romances policiais de Raymond Chandler (“Gosto da secura dos personagens, das mulheres fatais e dos bandidos dissimulados”) e, sobretudo, Charles Bukowski. “A forma despojada e autobiográfica com que o Bukowski escrevia me bateu forte. Cartas na rua e A mulher mais linda da cidade foram fundamentais para mim”, afirma.

Mas sua formação literária começou muito antes dessa descoberta da América. Criado numa casa sem muitos livros, o artista iniciou seu percurso como leitor ainda criança, por meio da obra do professor, matemático e escritor carioca Júlio César de Melo e Souza — mais conhecido como Malba Tahan. “Sempre fui um aficionado por histórias que se passam no Oriente, no deserto. Uma vez, não sei bem por quê, alguém deixou um livro do Malba Tahan lá em casa. Eu li, me interessei por aquele universo e passei a frequentar bibliotecas atrás de outras obras dele.”

Já na adolescência, Reny buscou os clássicos universais. Dessa fase, destaca duas leituras: O homem da máscara de ferro, de Victor Hugo (“Fiquei fascinado pela tenacidade do personagem, que vai ao inferno e volta por cima”), e Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (“Me marcou muito pelo universo fantasioso e pelas trapalhadas que ele promovia”).

Sobre a produção atual de literatura, ele não tem muito a dizer. Com sérios problemas de visão, praticamente não lê nada há dois anos. “Tenho dificuldade até para ler o roteiro dos shows, que fica colado no chão”, diz o músico, que reduziu sua agenda profissional e hoje faz apenas duas ou três apresentações por mês.

Por coincidência, a reportagem do Cândido entrou em contato com Reny dias antes do lançamento de sua primeira faixa inédita desde 2010. Gravada com Os Irish Boys, “Alice no país da ternura” é uma canção típica de seu repertório: com sonoridade country rock, conta uma história de solidão e desencontro (no caso, a paixão impossível de um homem por uma garota de programa). O registro está disponível em soundcloud.com/julioreny, endereço que também abriga outras composições marcantes da carreira desse herói marginal e obscuro da música brasileira.