Perfil do Leitor | Ivam Cabral

Tudo é influência


Da ficção à poesia, dos clássicos aos contemporâneos, nada escapa do interesse permanente que o fundador da Cia. de Teatro Os Satyros tem pela literatura


Omar Godoy

Ivam Cabral lembra do primeiro livro que leu sozinho, ainda criança, em Ribeirão Claro (PR): O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa. “Sozinho” porque sua formação literária começou a partir de leituras coletivas, em casa, puxadas pela mãe. “Como não tínhamos televisão, encerrávamos nossas noites sempre com essa leituras. Eram livros comprados de vendedores que apareciam na cidade em kombis. Minha mãe adorava Machado de Assis, especialmente os contos”, explica o ator, diretor e dramaturgo de 51 anos, conhecido por seu trabalho à frente da premiada Cia. de Teatro Os Satyros (cofundada por ele na capital paulista em 1989).

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Foto: divulgação.

Filho de um pedreiro analfabeto e de uma costureira que estudou apenas até a quarta série primária, Cabral não teve uma vida fácil com seus outros cinco irmãos. Mas, graças ao esforço da mãe, cresceu sabendo que cursaria uma faculdade e teria um destino diferente dos pais. As reuniões noturnas, portanto, eram parte decisiva desse projeto maior que a mãe tinha para a família. “Valia de tudo. Além do Machado, líamos Aluísio Azevedo, Lima Barreto, Monteiro Lobato. Até José de Alencar, que meus irmãos achavam tedioso, eu adorava. A pata da gazela, A moreninha... Aquilo era a coisa mais linda do mundo para mim”, diz, rindo.

As leituras em grupo acabaram quando a televisão chegou em casa. Já adolescente, ele passou a emprestar volumes da biblioteca municipal da cidade, dividindo-se entre as sugestões da bibliotecária e as primeiras descobertas pessoais. Entre os 15 e os 18 anos, conheceu J.D. Salinger, Virginia Woolf, Clarice Lispector, Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu e dramaturgos como Oscar Wilde, Nelson Rodrigues, Shakespeare — fundamentais para sua futura formação em teatro. “Nessa época, também descobri o prazer de ler poesia. Fernando Pessoa caiu em minha vida quase como um oráculo.”

Além de desenvolver o gosto pela literatura, Ivam Cabral cresceu em contato com a música e o teatro,praticados na igreja católica que ficava a menos de 100 metros de sua casa. Acabou se mudando para a capital do Estado, onde cursou Artes Cênicas na PUC e teve de correr atrás de autores a que ainda não tinha acesso. “Beckett, Bergman, Ionesco, Lorca, Woody Allen, García Márquez... Nada disso havia chegado em Ribeirão Claro”, diverte-se. “Em Curitiba, eu descobriria outros nomes incríveis, como João Silvério Trevisan, Márcia Denser, Sérgio Sant’Anna, Ana Cristina Cesar, Ignácio de Loyola Brandão”, completa.

Um parágrafo especial deve ser dedicado à poesia de Portugal, país em que viveu durante sete anos após se formar. “Parte das minhas referências vêm de lá. Fiz 30 anos morando em Lisboa, é um momento importante na formação de uma pessoa”, diz. Além de mergulhar ainda mais na obra de Fernando Pessoa, envolveu-se com a produção de nomes como Al Berto, Herberto Helder e Ondjaki. O resultado dessa imersão foi o programa de canções e poemas Os cantos de Portugal, que ele produziu e apresentou por mais de 10 anos na Rádio Educativado Paraná (hoje éParaná).

Outro assunto que merece um espaço de destaque é a relação dos Satyros com a obra do Marquês de Sade — o autor mais marcante na trajetória da companhia teatral. “Descobrimos Sade logo no início da nossa carreira, em 1990. A partir dali, nossas vidas nunca mais seriam as mesmas”, afirma. Segundo ele, o francês libertino é responsável por colocar o grupo num estado permanente de questionamento e observação. “Seus argumentos, embora enfáticos e, aparentemente, definitivos, abrem arestas para as dúvidas que não temos condições de responder de pronto. Principalmente no terreno moral e filosófico. É um dos autores que mais nos perturbam, ao lado de Nietzsche e Schopenhauer”, explica.

Mas os interesses literários de Cabral não se limitam aos clássicos. Ele acompanha a produção contemporânea e tem uma lista de escritores preferidos que “muda sempre”. “Acho que sou influenciado o tempo todo. A cada nova leitura, surge uma imensidão de referências e estados. Mesmo quando a obra não é tão legal assim, mesmo quando você se decepciona. Há infinitas possibilidades na literatura.

Seus eleitos no momento são a nigeriana Chimamanda Ngozie Adichie, o italiano Alessandro Baricco, o moçambicano Mia Couto e o alemão Wolf Erlbruch. Entre os nacionais, cita Veronica Sitgger, Santiago Nazarian, Marcelino Freire e Ivana de Arruda Leite. “Propositalmente, elenquei quatro que não têm a ver um com o outro”, diz o artista, que até pouco tempo mantinha em seu site (www.terrasdecabral. com.br) uma seção chamada “O que estou lendo?”. “É um espaço que está sendo reformulado e volta em agosto. As pessoas entram em contato, querem falar, dividir opiniões. Já cheguei a receber mais de 2 mil visitas diárias.”

Os textos para a internet também renderam um livro, Terras de Cabral — Crônicas de lá e cá (2013), sua primeira publicação fora do universo da dramaturgia. No ano seguinte, lançou um infantil, Chico só queria ser feliz, que será seguido por um novo volume de crônicas. Questionado se pensa em escrever um romance, ele revela que já tem uma ideia “rabiscada”. “Mas, para isso, terei que dar uma parada, ir para minha casinha em Parelheiros (SP), no meio do mato, e forçar a imersão.”

Como se não bastassem todas as atividades com os Satyros, a publicação de livros e outros projetos paralelos, Ivam Cabral também acumula a função de diretor da SP Escola de Teatro, mantida pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Uma rotina puxada, que teve de ser interrompida no fim do ano passado, quando ele foi submetido a uma cirurgia para a retirada de um nódulo na tireoide. “Fui aos extremos, pensei na morte. Mas isso não é triste nem preocupante, pois serviu para a reflexão e me deixou um cara melhor. De qualquer forma, 2014 foi o ano mais incrível da minha vida. Nunca fui tão premiado, paparicado e distinguido. Ando ficando mal acostumado”, brinca.