Perfil do Leitor: Cyro Ridal

Pílulas de poesia

Por meio do personagem Jack Shadow, o diretor de rádio e TV iniciou toda uma geração curitibana na literatura contracultural

Omar Godoy

Cyro


Quem tem mais de 30 anos e costumava ouvir rádio em Curitiba certamente conhece Jack Shadow. Ou melhor: conhece a voz de Jack Shadow, eternizada em programas como Caleidoscópio, Todos os caminhos do rock e Ciclojam. Quase uma lenda urbana da capital paranaense, o locutor ficou famoso por seu timbre metalizado e pelos discursos afiados, que quase sempre derrubavam os grandes mitos do rock and roll. Mas uma faceta importante de sua passagem pelas FMs da cidade nunca recebeu o destaque que deveria. Ao declamar trechos de livros no ar, ele apresentou a toda uma geração o que existe de melhor na chamada literatura contracultural.

Jack Shadow é, na verdade, Cyro Ridal, hoje diretor de programas de rádio e TV — e, eventualmente, cantor
em jingles e discos infantis. No início dos anos 1990, ele criou o personagem por pura timidez, pois não queria ser reconhecido. Como se não bastasse, ainda usava um megafone dentro do estúdio. E o que deveria ser apenas um “escudo” acabou se tornando uma das mais conhecidas grifes da comunicação local (nos tempos áureos, o alterego participou até de campanhas publicitárias).

Ridal, no entanto, revela que se envolveu tardiamente com a literatura. Lembra que o pai mantinha uma estante grande em casa, cheia de livros sobre a Segunda Guerra e títulos de Monteiro Lobato. “Mas nunca vi ninguém lendo nada. Nem ele, nem meus irmãos mais velhos. Minha mãe até reclamava: ‘Por que guardar tanto livro se ninguém lê?’”, conta o diretor, nascido em Harmonia, localidade do município de Telêmaco Borba (PR).

Sua primeira lembrança literária remonta do início da década de 1970, época em que sua família se transferiu para União da Vitória. Tinha 12 anos quando um professor mandou todos os alunos da classe escolherem um trecho de livro qualquer para apresentar em voz alta dias depois. Ridal fuçou a estante do pai e se identificou com os versos de “Meus oito anos”, poema clássico do romântico Casimiro de Abreu.
“Oh! Que saudades que tenho/ da aurora da minha vida,/ da minha infância querida/ que os anos não trazem mais!/ Que amor, que sonhos, que flores,/ naquelas tardes fagueiras,/ à sombra das bananeiras,/ debaixo dos laranjais!”, recita de cor, empolgado. “Acho que, como bom canceriano, sinto muita saudade.
Naquela fase, sentia falta daquela vida pacata, próxima da natureza, que eu levava em Harmonia. Até hoje sou assim, penso muito no passado”, completa.

Aos 16 anos, ele acompanhou a família em mais uma mudança, desta vez para Curitiba. O choque cultural foi inevitável. A começar pela convivência com outros 300 alunos na sala do cursinho em que se matriculou. “Eu, que já era tímido, nem saía de casa com medo. Acabei parando no psicólogo. Minha primeira amiga foi uma menina da Lituânia, que, como eu, idolatrava o Elvis.” Ridal não se lembra dos livros que leu para prestar o vestibular. Muito menos das leituras obrigatórias da faculdade de História, que logo trocou pela de Turismo (“Porque tinha mais mulher”). Fã de música e cinema, e já formado turismólogo, aproximou-se para valer do mundo cultural quando ingressou em Musicoterapia na Faculdade de Educação Musical do
Paraná (Fenp), atual Faculdade de Artes do Paraná (FAP).

Não concluiu o curso, mas trabalhou na instituição durante oito anos, coordenando o setor de multimeios e
produzindo eventos musicais dos mais variados estilos (função que também desempenhou na Secretaria de Estado da Cultura). Por volta de 1990, passou a atuar na Rádio Estadual (depois Educativa, hoje E-Paraná). Procurando discos novos para tocar na emissora, conheceu a dupla Horácio De Bonis e Pedro do Rosário, sócios da loja 801 Discos. Mais do que uma permuta, o encontro rendeu uma amizade — e o
surgimento de uma linguagem radiofônica bastante particular.

“O Pedro, além de mestre em História, era o cara dos livros. Por causa dele eu gosto de poesia. Me deu de
presente, de uma vez só, uns oito livros do Bukowski, que li de cabo a rabo. Ele tinha um lado depressivo e mais refinado, e também me apresentava a figuras como Artaud, Rilke, Rimbaud, Byron, Cioran. Li um pouco de tudo isso, mas curto mesmo escritores mais realistas, próximos da contracultura. Sam Shepard,
Jack Kerouac, Lawrence Ferlinghetti, Jacques Prévert, Allen Ginsberg, Gregory Corso, Leonard Cohen...”

Unidos pelo gosto por música e literatura, os três amigos criaram o programa Caleidoscópio, que contava com textos escritos por Rosário e apresentados pelo misterioso Jack Shadow (nome tirado de uma letra do cantor Nick Cave). Com o tempo, outros projetos começaram a tomar o tempo do trio, e a solução foi utilizar
trabalhos de outros autores. Surgiu, então, o que Ridal chama de Antologia Poética — poemas em pílulas embalados por trilhas baseadas em texturas e ambiências.

Depois de transferir o programa para a rádio Estação Primeira, e retornar à Educativa anos mais tarde, os amigos se separaram. Pedro do Rosário se matou em 1998, deixando como legado um estilo único de texto radiofônico. E, ainda hoje, os 45 episódios da Antologia Poética são exibidos em outro programa local, o Radiocaos (E-Paraná). Boa parte deles também pode ser ouvida na internet, pelo link souncloud.com/jackshadow.

“O Caleidoscópio reuniu tudo o que eu mais curto: música, poesia e comunicação. E esse formato de pílulas tem tudo a ver com o meu jeito de ler em casa, totalmente aleatório. Gosto de pegar um livro na estante, abrir numa página qualquer e ter prazer com aquilo na hora. Amanhã, eu pego outra coisa para ler.
Não quero compromisso, quero liberdade”, afirma Ridal.