Perfil biográfico

Parasita sagrado

Guiado pelo ressentimento e alvo de escândalos, Michel Houellebecq ganhou fama de visionário por “prever” o movimento dos coletes amarelos na França

João Lucas Dusi

Para o escritor Michel Houellebecq, a existência é “nada mais do que um tecido de sofrimentos” e a única forma de escapar do suicídio é se ater à estrutura literária. Seguindo o próprio conselho (publicado no ensaio Permanecer Vivo: Um Método, traduzido para o português por Jon Natalicio), o autor francês mais lido da atualidade resistiu à “série de testes de destruição” que é a vida e ganhou fama mundial com sua literatura seca, agressiva e doentiamente bem-humorada. Seu romance mais recente, Serotonina, lançado em janeiro, teve uma impressionante tiragem inicial de 320 mil exemplares só na França — e chegou recentemente às prateleiras brasileiras.

       Fotos: Reprodução
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Apesar de reconhecido por sua prosa, Houellebecq começou pelos versos. Chegou a ganhar o Prêmio Tristan Tzara com uma coletânea de poemas, La Poursuite du Bonheur (1991), publicada três anos antes de sua estreia na narrativa de fôlego, com Extensão do Domínio da Luta. Muito de sua visão fatalista sobre a poesia e a vida em geral, exposta no ensaio já citado anteriormente, transparece em seus romances. “Se algo é triste, deve-se exprimir radicalmente essa tristeza. A literatura não suporta a falsidade”, disse em conversa com Juremir Machado, um de seus tradutores no Brasil e autor do livro Um Escritor no Fim do Mundo (2011), que narra uma viagem que eles fizeram à Patagônia no final de 2007.

Essa série de conversas com o escritor e jornalista gaúcho, aliás, mostra um Houellebecq mais “leve”. A convivência do francês com Juremir e sua esposa, Cláudia, evidencia um pouco do homem por trás da persona que costumava surgir em suas aparições midiáticas, sobretudo antes dos 60 anos de idade — fumante inveterado e às vezes bêbado, segurando sempre o cigarro entre os dedos médio e anelar, com olhar blasé e esforço mínimo (ou nulo) para conceder entrevistas.

Ainda sobre esse comportamento errático, vale lembrar que ele já cancelou duas vezes sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty, em 2011 e 2013, e desapareceu durante a turnê de divulgação do livro O Mapa e o Território, pelo qual levou o Prêmio Goncourt de 2010. Esse sumiço inspirou o argumento do filme L’Enlèvement de Michel Houellebecq (2014) — uma comédia dramática, dirigida por Guillaume Nicloux, que brinca com os rumores de que o autor teria sido sequestrado.

É inegável que a postura de escritor maldito tem rendido frutos. Além de lançar o novo romance com tiragem excepcional, Houellebecq recebeu no começo deste ano, das mãos do presidente da França, Emmanuel Macron, a comenda da Ordem Nacional da Legião de Honra — condecoração criada por Napoleão Bonaparte no início do século XIX e que reconhece méritos civis e militares à nação. Além disso, ganhou 25 mil euros do Prêmio de Literatura Europeia do Estado da Áustria. É interessante recordar que Patrick Modiano, o último francês a embolsar essa bolada antes de Michel, levou o Nobel de Literatura em 2014.

Para completar essa boa fase, em agosto deste ano Houellebecq volta ao cinema. Novamente ao lado do diretor Guillaume Nicloux, o autor estrela o longa-metragem Thalasso, contracenando com o ator Gérard Depardieu. No filme, os dois se encontram em um instituto de talassoterapia (tratamento realizado com a água do mar) e precisam aguentar os aborrecimentos desse processo.

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Cenas do filme Thalasso (2019), de Guillaume Nicloux, com o escritor Michel Houellebecq e o ator Gérard Depardieu.

Gênese
Henri tem um ano de idade e suas fraldas estão sujas. A mãe abandona essa “coisa pequena coberta de merda” para ir a um encontro noturno. Ambos choram. Para Houellebecq, que descreve essa situação em Permanecer Vivo: Um Método, Henri teve um bom começo como poeta. A narrativa sobre o trauma não foi usada por acaso, já que o “ressentimento é necessário para qualquer verdadeira criação artística” e, para o “parasita sagrado” que é o poeta, é tão essencial ser sempre o perdedor quanto desenvolver em si mesmo “um profundo ressentimento em relação à vida”. Tanto no teor de sua literatura quanto em sua postura pessoal, nota-se que ressentimento é o que não falta para Houellebecq.

O escritor francês conheceu a rejeição bem cedo. Sua mãe, Lucie Ceccaldi, era médica e militante comunista. O pai, René Thomas, instrutor de esqui e guia de montanha. Quando Michel era apenas um bebê, e ainda carregava o sobrenome Thomas, o casal partiu para uma viagem pela África e o deixou aos cuidados dos avós maternos. Mais tarde, aos cinco anos de idade, ele passou a a viver com a avó paterna, de quem adotou o sobrenome Houellebecq em homenagem. “Até a minha morte, seguirei sendo uma criança abandonada, gritando de medo e frio, faminto por carinho”, registrou o autor no texto Mourir (Morrer), de 2005.

No romance Partículas Elementares (lançado em 1998 e adaptado para o cinema em 2006, com direção do alemão Oskar Roehler), responsável por catapultar a carreira de Houellebecq e o postular oficialmente como um pornógrafo imoral, a mãe dos personagens principais, Michel e Bruno, chama-se Lucie — coincidência? — e é descrita como uma hippie desnaturada, sustentada por um norte-americano e dona de um apetite sexual desmedido. Sobre a obra, a mãe do autor comentou, em entrevista de 2008 à imprensa francesa, aqui em tradução de Celso Mauro Paciornik: “Se não fosse meu filho, não leria esse tipo de lixo. Esse livro é pura pornografia. É repugnante. É lixo. Não entendo esse sucesso todo, que só mostra a decadência da França”.

Mãe e filho já não se falavam desde 1991 e, daí para frente, a relação foi ladeira abaixo. Para Lucie, Michel não passa de um parasita mentiroso e dinheirista. Ela conta que, nas décadas de 1960 e 70, durante a infância e adolescência do filho, chegou a trabalhar 14 horas por dia, seis dias por semana, e que não tinha condições de cuidar dele devido à carga horária pesada. “Talvez eu o devesse ter mandado a um internato inglês, aí ele aprenderia a montar cavalos e se tornaria um cavalheiro e todo o mundo me elogiaria”, ironiza.

A expiação de Lucie veio com a publicação do livro de memórias L’Innocente (A Inocente), em 2008. Mas não se trata de um contra-ataque a Houellebecq, já que ela dedica mais páginas ao seu cachorro de estimação do que ao filho. O objetivo foi apresentar “um testemunho de uma pessoa que sempre tentou fazer bem as coisas”, conforme disse em entrevista ao jornal português Diário de Notícias, mesmo admitindo que não educou o filho como uma boa mãe. No posfácio, Lucie diz que só voltará a ter contato com Michel quando ele admitir ser um mentiroso e pedir perdão por nunca ter feito nada além de mal às pessoas que o cercam. Até agora não aconteceu.

Polêmicas
O rompimento com a mãe, em 1991, começou com um comentário de Houellebecq contra o Islã. A rusga se deu em um bistrô parisiense, quando eles tomavam chá e discutiam as motivações da Guerra do Golfo. Para Michel, o conflito entre Iraque e uma coalização liderada pelos Estados Unidos era culpa do Islã, “uma religião de bastardos estúpidos”. Lucie retrucou: “Você é o bastardo estúpido”. Apesar da sensação de “paz, liberdade e luz” que o distanciamento da mãe causou no autor, esse fantasma islâmico seguiu o assombrando — não que ele tenha feito qualquer coisa para evitá-lo, na verdade.

Desde seu primeiro romance, Extensão do Domínio da Luta, Houellebecq alfineta o Islã. Em Partículas Elementares, de 1998, reafirma seu desprezo à religião e, em Plataforma (2001), descreve um ataque terrorista — curiosamente, no mesmo ano do atentado às Torres Gêmeas, nos EUA. A “cereja do bolo” veio com um comentário à imprensa, também no primeiro ano do século XXI: “A mais estúpida das religiões é o Islã”. A declaração rendeu-lhe um processo por parte de grupos muçulmanos e organizações ligadas aos direitos humanos, mas ele acabou absolvido.

A situação mais dramática aconteceu em 7 de janeiro de 2015, dia do lançamento de Submissão — romance que imagina uma França comandada por um líder islâmico em 2022. Houellebecq estampava a capa da revista satírica Charlie Hebdo, que também tinha uma relação bastante turbulenta com os seguidores de Maomé, quando dois fundamentalistas islâmicos, armados com fuzis Kalashnikov, fizeram um massacre na redação do periódico. Doze pessoas morreram, incluindo um grande amigo de Michel, o economista e escritor Bernard Maris, autor do ensaio Houellebecq Économiste (2014), e o cartunista Georges Wolinski.

Além de “islamofóbico”, outro adjetivo que costuma acompanhar o autor francês é “misógino”. Mais uma vez, ele faz por onde. Este trecho, por exemplo, tirado do romance Partículas Elementares, em tradução de Juremir Machado da Silva, não deixa muita brecha para se dizer o contrário: “A partir de certa idade, uma mulher continua a ter a possibilidade de esfregar-se num pau, mas nunca mais a de ser amada. É isso”. Agora, se há de fato a visão pessoal do autor em seus livros, e não somente a voz de um personagem perturbado, é outra história.

Apesar dos rótulos pejorativos, recentemente Houellebecq ganhou a fama de visionário. Em seu novo livro, Serotonina, o protagonista é Florent-Claude Labrouste, um quarentão “politicamente incorreto, banal, superficial, frívolo” (segundo resenha de Dirce Waltrick do Amarante publicada no Estadão) que se torna um crítico da contemporaneidade após sofrer um abalo existencial. Além de retratar esse homem desiludido, como é de praxe em sua obra, o autor imagina um cenário em que os camponeses se sentem desmoralizados e resolvem tomar providências agressivas — exatamente o que acontece atualmente, fora do plano da ficção, com o movimento dos coletes amarelos na França.

É nessa corda bamba que a literatura e a vida do escritor francês caminham. Ao mesmo tempo criticado por ferir a sensibilidade moderna (com sua suposta misoginia e islamofobia) e festejado como um visionário e cronista dos males e preocupações que assolam o homem na sociedade pós-industrial, Michel Houellebecq acaba de lançar seu sétimo romance e segue angariando prêmios. Afinal, de acordo com o próprio autor, por mais que todas as coisas sofram com a existência, “você deve permanecer vivo”.