Perfil Biográfico | Torquato Neto

O anjo torto

Com uma trajetória breve, marcada por crises existenciais, Torquato Neto viveu uma vida poética, sem distanciar o cotidiano do sonho

Toninho Vaz

   Arquivo da Família
torquato

Torquato fotografado na juventude. 

O nome certo é Torquato Pereira de Araújo, Neto (assim, com a vírgula). Filho da contradição: o pai, renomado espírita kardecista, e a mãe católica, beata das igrejas e das orações. Ele, Heli da Rocha Nunes, era advogado e fez carreira como promotor. Ela, Maria Salomé da Cunha Araújo, a Sazinha, era professora primária e chegou a ser diretora da escola onde lecionava. Uma família de classe média bem estruturada em Teresina, que pôde oferecer ao filho único um estudo qualificado; inicialmente no Colégio Batista e depois no Colégio Marista, já em Salvador, onde Torquato conheceu Glauber Rocha, Caetano Veloso e Gilberto Gil, seus futuros parceiros na vida e na música.

Antes de morar no Rio de Janeiro, Torquato foi passar férias escolares na então capital federal. Foi quando conheceu Jards Macalé, um morador do Jardim de Alah e frequentador de botequins no chamado Bar 20, limite de Ipanema com Leblon. Macalé já estava ligado à música e foi, certamente, um grande incentivador de Torquato, ao fortalecer uma parceria entre ambos.

No Rio, onde se aninhou e fez morada, Torquato fez também história, primeiro como frequentador da combativa UNE, na praia do Flamengo, onde dormia no dia do golpe Militar, 1° de abrir de 1964. Depois, como jornalista e letrista de músicas de sucesso, daquelas de tocar no rádio. Sua coluna “Geleia Geral”, publicada no jornal Última Hora, era leitura obrigatória nos meios musicais cariocas. Algumas vezes ele abriu o texto chamando seus leitores de “idiotas”, “otários”, usando de sarcasmo para criticar a apatia política do brasileiro em época de radicalismo:

“Bom dia, otário, o carnaval passou, a alegria também e tudo ficou maravilhoso, os problemas todos resolvidos....”

Não raro criava polêmicas, sobretudo quando implicou e trocou palavras ásperas com dois ídolos da multidão: o cantor e compositor Ataulfo Alves e o cartunista Jaguar, que o chamou de “a falsa baiana” no tabloide O Pasquim. Torquato sempre foi corajoso e destemido. Assim, na primeira oportunidade que encontrou Jaguar, em uma calçada de Copacabana, ele atravessou o caminho do desafeto e disparou, arrancando-lhe os óculos do rosto e jogando-os ao chão: “Você já é cego, não precisa disso”.

O reencontro no Rio com os parceiros Gil e Caetano aconteceu na hora certa. Nessa época, os músicos jovens, motivados pela onda de modernidade e pela nova mídia (televisão), estavam tinindo de ideias e criações ousadas. Maria Bethânia, irmã de Caetano, mostrava seu talento no teatro Teresa Raquel encenando o impactante show Opinião, com João do Vale e Zé Keti. Foi um grande e histórico sucesso de Morte e vida Severina, de João Cabral:

Esta cova em que estás, com palmos medida 
É a conta menor que tiraste em vida 

É de bom tamanho, nem largo, nem fundo 
É a parte que te cabe deste latifúndio 

Não é cova grande, é cova medida 
É a terra que querias ver dividida (...)

Bethânia fora chamada na Bahia para substituir Nara Leão. Assim, Caetano, a pedido da família, veio acompanhando a irmã. Quando eles chegaram ao Rio, em janeiro de 1965, já encontram Torquato circulando pela cidade.

A oportunidade e a vitrine dos festivais de música da TV Record, em São Paulo, foi o estímulo definitivo, em 1967, para detonar a explosão tropicalista, com “Alegria, alegria”, de Caetano, “Geleia geral” e “Louvação”, parcerias de Torquato com Gil. A música eletrificada dos Mutantes, acompanhando Gil em “Domingo no parque”, foi uma nova referência, enquanto a ala da MPB discutia a validade da tecnologia “na arte”. A considerar, no contexto, que a turma da Jovem Guarda, Roberto Carlos à frente, estava igualmente armada de guitarras e amplificadores — e por isso mesmo rotulada de “infantiloide”. Foi assim que tudo aconteceu — e Torquato estava no torvelinho dessa vertigem. É a este específico momento que Augusto de Campos ser refere quando diz que “Torquato deu às costas ao sol”, exatamente quando tudo tinha dado certo. Qual o signo dele? Escorpião, claro! 

Torquato, o Breve, teve a sorte de não ser intérprete, de não estar com suas fotos estampadas nas revistas semanais. Podia ter sido pior. Quando a repressão chegou forte, referendada pelo Ato Institucional nº. 5, em dezembro de 1968, os alvos preferidos foram os parceiros Gil e Caetano — primeiro para a prisão e depois para o exílio. Em seguida, Torquato partiu para o exílio voluntário: Paris e Londres (viajou de navio com Oiticica), onde teve um encontro rápido e nebuloso com Jimi Hendrix, em uma cerimônia para consumo de drogas ilícitas. Chico Buarque já estava na Itália, e Geraldo Vandré no Chile. Tudo vinha sendo registrado nas páginas d’O Pasquim, onde Caetano escrevia regularmente de Londres. Como diria Glauber Rocha, a terra estava em transe.

Foi o ano mais longo e sofrido na vida do poeta. Foi o momento da ruptura, das amizades e da vida. Ele não era mais amigo dos baianos e, ao romper com o grupo, perdia também os parceiros e os intérpretes — ficava isolado. A doença se agravou e vieram as internações em Engenho de Dentro e no Meduna. Como ele mesmo diria nessas circunstâncias: “O diabo está vencendo”. Resultado: foram duas tentativas de suicídio. Na segunda, ele conseguiu. Depois de passar a noite em um bar com amigos, comemorando o aniversário, Torquato abriu o gás na madrugada. Já era 10 de novembro de 1971. Deixou viúva Ana Duarte e um filho pequeno, Thiago.


Para ler Torquato

Da redação

Os últimos dias de Paupéria 
Eldorado, 1973 
Em 1973, um ano depois da morte de Torquato, os escritos do artista foram reunidos num livro póstumo de pouco mais de cem páginas, Os últimos dias de Paupéria, organizado por sua mulher, Ana Maria Duarte, e pelo amigo Waly Salomão. A segunda edição, de 1982, era bem mais completa, com cerca de 300 páginas.

Juvenílias 
UPJ produções, 2012 
Esta coletânea reúne os primeiros poemas de Torquato, escritos entre seus 17 e 19 anos. Mesmo jovem, o autor já utilizava os versos para investigar temas profundos, como a angústia humana e a morte. 

Torquatália 
Rocco, 2004 
O livro, organizado por Paulo Roberto Pires, reúne o material publicado em Os últimos dias de Paupéria e outros textos até então inéditos em livro. 

Para ouvir Torquato 


Geleia geral 
Mamãe coragem 
Soy loco por ti, América 
Ai de mim, Copacabana 
Let’s play that 
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