Pensata | Paulo Venturelli

Poesia sem "p" maiúsculo

A coluna Pensata abre espaço para que autores discutam um tema sugerido pela equipe do Cândido. Nesta edição, Paulo Venturelli retoma a reflexão sobre os rumos da poesia contemporânea — que, segundo ele, abriu mão da aura pomposa do gênero para se jogar na crueza do real.

Tenho, dentro do possível, acompanhado a poesia que se escreve hoje no Brasil. Percebo que certas características marcam os / as poetas: há um abandono do lirismo tradicional, não se usam mais metáforas “fechadas”, acabou-se a senda que levava a poesia para algo que posso chamar de “mítico”, os poemas estão circunscritos a questões cotidianas, são quase um comentário sobre o dia a dia, não há mais solenidade, nem pedestal, os / as poetas parecem buscar uma linguagem que seja próxima do homem comum, há um certo ar de troça no que se vem produzindo, rompeu-se a redoma da inspiração, pois o olhar para o mundo contemporâneo traz uma certa racionalização, um diálogo com outras linguagens, o que, na poesia tradicional, era ausente, segundo Bakhtin. Sem estro, sem estratosfera, sem abismos existenciais.

Talvez, a nova geração de poetas siga as coordenadas de Bandeira: “Estou farto do lirismo comedido / do lirismo bem comportado / Do lirismo funcionário público (...)”. O purismo que aborrecia Bandeira não marca mais presença entre nossos / as poetas. Eles / as buscam aquilo que o poeta chamou de “todas as palavras, todas as construções, todos os ritmos” e, por isto, encontro na poesia atual o toque sujo do cotidiano.

Pelo menos, não é mais verdade o que Gombrowicz escreveu em 1951: “Seria da minha parte mais sutil não perturbar um dos raros ofícios religiosos que ainda nos restam. Acabamos por duvidar de quase tudo, e no entanto continuamos a entregar-nos ao culto da Poesia e dos Poetas; é esta até porventura a única divindade que não temos vergonha de adorar com muita pompa, grande porção de reverências e lindos arrulhos de voz”.

Sejam o que forem os tais ofícios religiosos, é certo que a poesia de hoje perdeu a aura, desfez-se de pompa e não se escreve mais com P maiúsculo. Danem-se a divindade e as reverências. A poesia hoje, no seu ludismo, almeja alcançar um leitor não elitizado, um leitor capaz de aceitar a carga de certa vulgaridade que, por sua vez, está aí justo para criticar o vulgar, o filisteu, o mundo que transforma tudo em mercadoria, o mundo que circula em torno do dinheiro e de resultados imediatos e vive sob a pulsão de conquistar os 15 minutos de fama.

Vejamos alguns exemplos do que estou tentando deslindar:

Qualquer pessoa que conhecesse
Max Horkheimer 
saberia
que ele era capaz de uivar
como um cão. 
De acordo com testemunhas
ele podia demonstrar esse desconcertante talento
tanto nas ruas de Manhattan
como na Estação Central
de Frankfurt. 
De acordo com testemunhas
o filósofo teria ensinado a uivar seu próprio cão.

Daniel Arelli, 2018

O autor cutuca a filosofia pela porta dos fundos e além de criar humor que leva ao raciocínio, dessacraliza o próprio poema, seja no despojamento da linguagem que se repete sem nenhum prurido.

Outro exemplo: 

caminhante
caminhos há
O mais estreito
te leva más allá

Pedro Carrano, 2017

Não se estranha o diálogo recriador com Antonio Machado. Ao lado disto, a telegrafia do poema suscita no leitor uma explosão de entendimento do real, com crítica, de teor político, no acento que o mais estreito dá aos versos. Talvez a noção de Bakhtin no sentido de que o poeta faz da linguagem sua própria linguagem não se aplique mais nos caminhos que nossa poesia vem seguindo.

Um poema que traz ferrugem ao nosso ânimo, às nossas articulações mentais, ao resto de idealismo que podemos ter a respeito da vida:

uma mulher gorda 
incomoda muita gente 
uma mulher gorda e bêbada
incomoda muito mais
uma mulher gorda
é uma mulher suja
uma mulher suja
incomoda incomoda
muito mais 
uma mulher limpa
rápido
uma mulher limpa

Angélica Freitas, 2012

Não importa a cacofonia. Ela vem de propósito. Ela faz o leitor rilhar os dentes e põe areia na engrenagem: acorda, cara, a estética não está mais afeita aos grandes temas, ao cânone, ela rasteja na sarjeta e ali encontra a ironia para descarnar qualquer pujança da mulher ideal e sublime

Passo adiante: 

não, não brinquemos
de esconde-esconde
minhas charadas são inocentes
cada dia descubro uma parte da minha própria
   piada
mau gosto diria
mau jeito de ser
viver pra quê?
não me oculte o fogo, Senhor
meu Lord, meu mito, minha estampa de escrava
   dos deuses
não me oculte o sexo, o tempo da vulva nas mãos
meu clitóris foi machucado quando criança
ah, sinto muito, caros palhaços, aí sentados na
minha arquibancada
Muito prazer!
sim, digo, muito prazer!
Ninguém estava lá para apagar os incêndios 
chorei sozinha no quarto sem janelas 
pulei amarelinha no dia seguinte
e tolamente sobrevivi à cabra-cega

Patrícia Porto, 2017

O que à primeira vista parece lamento, logo se transforma num dedo apontado para um problema tão comum nos Brasis de hoje: a exploração sexual infantil. Ela chorou sozinha, ela pergunta a razão de viver, ela chama pela inocência onde esta está interditada, ela constata a presença de palhaços — abusadores? — todavia, sobrevive tolamente e está inteira de novo na cabra-cega. A poeta deixa de buscar o idílio infantil, o paraíso do passado e revela o inferno escondido nesta fase da vida.

Outra voz:

Agora já é passado.
Esse pensamento óbvio
ou clichê
ou demasiadamente lírico
ou filosoficamente raso
ainda me assombra como a uma criança.
Agora é passado
em Botafogo
Numa das listras da faixa de pedestres
está escrito
Não é acidente atropelar ciclista!
O trecho final da frase
o ta!
está fora da listra
foi riscado em branco no asfalto cinza.
(…)

Thiago Camelo, 2017

Para que denunciar com grandiloquência? Toda a barbárie e loucura das grandes cidades expostas no absurdo não é acidente atropelar ciclista!. E na última sílaba desta última palavra fora de espaço.

Esperar Ulisses 
Sem fios 
Esperar Ulisses quando sem mais não alcanço senão 
Minha agulha
Prefiro bordar, Ulisses
Enfiar na borda o vermelho púrpura
Onde talvez se banhe, oh, não!
Achem para mim meus cabelos, escravas
Preciso tecer de loucura os furos que entre
As pernas soluça: Ulisses 
Preciso aplacar o calor que mesmo agora no frio
Nua
Desfiei minhas vestes...
É muito tempo
Todo o tecido apodreceu...
Levem-me ao mar.

Adriane Garcia, 2013

O erotismo, a solidão, o desejo, a saudade, o vazio — e tudo tecido com contenção. Um diálogo: no substrato, a Odisseia, de Homero, recriada na atualidade, a mulher poderosa, a mulher dona de seu destino, não borda apenas o véu, como determina o próprio caminho.

Na obra-prima que é a antologia Pesado Demais Para a Ventania, de Ricardo Aleixo, também encontro os traços que venho apresentando:

Tão lento quanto
possível agora
pousar o olhar
na parte acesa da rua
de onde
você surgirá agora
pela primeira
vez (ontem tempos
atrás amanhã
antes do sol que se agora)
como se
agora apenas 
retornasse
para
(1) esta casa
(2) este corpo e
(3) a alegria
que sempre
agora
lembra
seu nome

Ricardo Aleixo, 2018 

A reiteração do agora e a enunciação do tempo ressoam a espécie de solidão e desamparo do poeta que, sem lacrimejar com tais temas, mostra-os de forma contida. A relação numérica aponta para o local para onde o ser amado deve voltar, põe um corpo estranho no discurso verbal, quebra a leitura e a leva a um patamar de certa zombaria a aguar o poema.

Note o leitor que nem a tão decantada musicalidade faz parte dos poemas apontados. Cada um no seu ser poético é claudicante, rompe a linha temática, distancia a leitura como ato racional e não se apela para a emoção tão presente na poética em língua portuguesa desde sempre.

Para concluir:

Um bom poema é feito
tiro de misericórdia.
O poeta não tortura seu leitor
como faz o prosador,
linhas
e dias a fio.
É pá-buf!
O corpo caído:
o pingo na testa.

Marcelo Sandmann, 2014

O que pretendo com estas linhas? Em primeiro lugar, mostrar com quase certeza que o raciocínio cabralino tomou conta da nova geração. Se não tanto, a maioria dos / das poetas está atrelada àquelas anotações reduzidas em que pontificou Ana C. Cesar. Ou seja, o poeta inspirado de Dufrenne, aquele que é posto ao serviço de potências que o transcendem, saiu o mapa. O poeta de Freud, narcísico, movido por narcose e que não é bastante forte para nos fazer esquecer nossa miséria real, está mudo.

Está com razão Borges? — Passamos à poesia, passamos à vida. E a vida, tenho certeza, é feita de poesia (...) — a poesia está logo ali à espreita. Os poetas apresentados aqui, é óbvio, não apenas refletem, mas refratam, como quer Bakhtin, as muitas facetas de nossa realidade. Não é tempo de alienação. Não há lugar para nefelibatas. Há solidariedade com os massacrados e silenciados de todo dia. Lembro Ungaretti:

Permita-me uma premissa. É comum dizer-se que o poeta vive ausente da vida, que se entretém apartado em sua torre de marfim. Por favor, abramos juntos os livros de poesia oferecidos aos homens do século XIX até hoje. Se quisermos ter um testemunho sincero e preciso do drama e da tragédia do nosso tempo, devemos consultar os poetas.

Aponto para isto. O Brasil não é feito para principiantes.


PAULO VENTURELLI é escritor e professor aposentado da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Catarinense de Brusque, está radicado em Curitiba (PR) desde 1974. Publicou 23 livros de vários gêneros, incluindo poesia, contos, romance e infantojuvenil.