Pensata | Miguel Sanches Neto

A verdade nos falsos romances históricos

A coluna Pensata abre espaço para que autores reflitam sobre um tema sugerido pela equipe do Cândido. Nesta edição, Miguel Sanches Neto escreve sobre o bom momento do romance histórico, gênero que ainda sofre “algumas resistências de recepção”

Mesmo visto como coisa do passado ou como mero produto de mercado (preso ao mecanismo autorreferente do best-seller), o romance histórico vive um momento de exuberância, prova de que a arte mantém uma saudável independência em relação aos postulados críticos. Cresce o número de grandes obras neste gênero, conquistando público num período em que tanto se fala do fim da literatura.

A vitalidade deste segmento romanesco está na sua natureza transliterária. Ao mesmo tempo em que permite uma fruição artística, ele leva à reflexão sobre um tema ou uma passagem histórica. Ou seja, entretém esteticamente informando o leitor de maneira crítica. Esta sua natureza dupla, que lhe dá densidade de leitura, também cria algumas resistências de recepção.

Tentemos sintetizar as acusações que o romance histórico recebe no epicentro do poder literário.

— O romance histórico é um formato oriundo do século XIX, quando as definições de nacionalidade impunham uma gramática idealizadora.

— Exerce uma força narrativa estabilizante, impedindo a experimentação.

— Tem como centros o enredo e os personagens, numa tendência realista tanto de linguagem quanto de temática.

— Referenda a ideia romântica do herói ou do personagem-síntese de uma época.

Estas posturas podem ser resumidas em uma única frase:

— O romance histórico traz um ranço passadista.

Daí o seu descarte crítico em uma cultura medusada por valores intransigentes de certa concepção estática de vanguarda.

Se há livros que confirmam tais restrições, há também uma produção que as inviabiliza. Tenho definido esta outra linha como o falso romance histórico, nascido de uma consciência contemporânea do homem e da linguagem. Nesses livros, o passado é apenas um cenário, uma locação literária num dado tempo e numa dada sociedade, pois tudo o mais nasce no terreno fértil do presente.

É que esses falsos romancistas históricos entendem o passado como uma temporalidade fluida, um universo molecularmente instável, que sofre mutações e rearranjos contínuos. O passado tomado não como um tempo em que as coisas aconteceram dessa ou daquela forma e, portanto, como causa histórica do agora, mas o passado como uma natureza aberta, em que tudo ainda está acontecendo e mantém relações de dependência com o presente. Para o romancista, há uma inversão da lógica histórica: não é o passado que age sobre nós, mas nós que agimos sobre o que já aconteceu sem deixar de estar ainda acontecendo.

Para clarear esta afirmação, recorro a uma passagem antológica do romance História do Cerco de Lisboa (1989), de José Saramago. O super-responsável revisor de livros Raimundo Silva, num momento de iluminação criadora, acrescenta a uma obra alheia uma pequena palavra — um NÃO —, e isso modifica todo o sentido de um fato consumado. Com este NÃO, o que era a história propriamente dita se transforma em ficção, e o que estava amortecido nas páginas dos documentos se faz vida pulsante. 

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O romance História do Cerco de Lisboa (1989), do português José Saramago, é um exemplo de como um fato histórico pode se transformar em ficção.

Com base neste ato narrativo fundador, podemos afirmar que o trabalho do ficcionista moderno, quando se dedica a romances localizados em outros períodos, é acrescentar palavras perturbadoras aos documentos. Estas palavras seguem um sentido vetorial inusitado: do presente para o passado.

Diz o narrador de História do Cerco de Lisboa: “Os livros estão aqui como uma galáxia pulsante, e as palavras, dentro deles, são outra poeira cósmica flutuando, à espera do olhar que as irá fixar num sentido ou nelas procurará um sentido novo, porque assim como vão variando as explicações do universo, também a sentença que antes parecera imutável para todo o sempre oferece subitamente outra interpretação, a possibilidade de uma contradição latente, a evidência de seu erro próprio”. Dessa forma, a história, retida em livros e documentos, afiram-se como “galáxia pulsante”, um mundo vivo que continua gerando novos sentidos a partir de compreensões outras, obtidas extemporaneamente. Ao escrever uma ficção histórica, nestes parâmetros, estamos dando explicações modernas, promovendo contradições latentes. A grande ficção histórica contemporânea funciona como contranarrativa, como relato alternativo, nascido mais do agora do que daquilo retido pelos livros.

O ficcionista, por natureza, desrespeita a história, para buscar a essência de uma época à luz de obsessões pessoais e atuais. E este desrespeito dá uma amplitude potencializada a episódios inventados. Walter Benjamin, nos seus Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe (2009), faz uma distinção extremamente relevante para a compreensão desta tarefa do romancista. Para ele, uma coisa é o teor factual de algo; outra bem diferente é seu teor de verdade — sendo esta muito maior do que a outra. A literatura busca sempre um teor de verdade — fugindo ao factual, negando-o, ampliando-o, deformando-o, rearranjando-o. 

Assim, o que tem menos importância na hora de escrever um romance histórico são os documentos, que devem ser sempre revisitados ficcionalmente. A intervenção do escritor desperta uma energia transformadora, colocando em cena personagens, compreensões e lógicas do agora. Escreve-se modernamente um romance histórico para subverter visões hegemônicas, não para mimetizar documentos.

Do romancista histórico deve ser cobrado, portanto, apenas se aquele mundo paralelo funciona literariamente ou não. Não se cobre dele fidelidade, pois isto está fora de sua intenção de arte.

Nem mesmo uma fidelidade de linguagem marca tal projeto, pois não há nada mais caricaturesco do que tentar reproduzir estilos galvanizados, oriundos geralmente de peças literárias de valor estético duvidoso, que ignoravam os falares vivos da época. Assim, cabe a este profissional da negação mudar o status daquele então, usando sua própria linguagem. 

Pois ele não quer levar o leitor a um período literário superado, mas trazer os personagens para o lado de cá, tomando-os como iguais. Em Heterodoxia (1993), Ernesto Sabato dá uma valiosa lição sobre a densidade humana nas obras literárias: “Quando Shakespeare apanha heróis da história, transforma em contemporâneos seus. Única forma de não erigir marionetes que só existem no papel. Afinal de contas, o humano é eterno: o amor, a morte, o destino. A melhor maneira de fazer falar um personagem histórico como um ser vivente é fazendo-o falar como [...] contemporâneo”. 

Teríamos aqui então um problema conceitual a ser explicitado. O bom romance histórico é sempre um romance contemporâneo, e deve ser fruído como tal. Ele pertence ao tempo em que foi escrito, podendo assumir todas as liberdades inventivas, pois só a sua legenda remete a uma outra época, e o faz sem nenhum desejo de pertencer, como enredo e como linguagem, a ela.

E isso não o torna menos verdadeiro. 


MIGUEL SANCHES NETO nasceu em 1965, em Bela Vista do Paraíso, norte do Paraná. Doutor em letras pela Unicamp, hoje é reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). É autor de Um amor anarquista, A máquina de madeira, A segunda pátria e A Bíblia do Che, todos romances históricos. Em 2018 lançou o livro de contos A bicicleta de carga.