Pensata | Juliana de Albuquerque

Os riscos da leitura

A coluna Pensata abre espaço para que autores reflitam sobre um tema sugerido pela equipe do Cândido. Nesta edição, Juliana de Albuquerque questiona se a leitura, por si só, surte efeito positivo no desenvolvimento do indivíduo.

Talvez, mesmo inconscientemente, tenhamos a impressão de que a leitura nos transforma em pessoas melhores, forçando-nos a exercitar habilidades sociais e afetivas que muitas vezes não encontramos oportunidade de fazer uso em nosso cotidiano.

Isto posto, não é de surpreender que filósofos e estudiosos do comportamento humano — a exemplo de Martha Nussbaum e Fritz Breithaupt— busquem na literatura uma resposta para as suas pesquisas sobre os efeitos da empatia na conduta moral dos indivíduos. Mas será que todo livro surte igual efeito positivo em nosso desenvolvimento? O que dizer, portanto, das leituras que nos metem em apuros, como os romances de cavalaria que levaram o solitário Dom Quixote a tomar por gigantes simples moinhos de vento?

Entre esses pesquisadores, Breithaupt serve-se da tradição literária alemã para investigar a hipótese de que, muitas vezes, o exercício da empatia através da leitura pode nos colocar em situações indesejáveis, a despertar no indivíduo impulsos contrários à tese de que a nossa identificação com as emoções e circunstâncias de uma personagem estaria relacionada à promoção de práticas que também beneficiam outras pessoas. 

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Isto é o que acontece com Anton Reiser, personagem que empresta nome ao romance autobiográfico de Karl Philipp Moritz, acometido por um vício de leitura semelhante à nossa dependência dos conteúdos compartilhados na rede, que compromete tanto o seu rendimento escolar quanto a sua sociabilidade.

Ora, de tanto ler, Reiser isola-se do seu contexto social para encontrar abrigo nas situações vividas por algumas das suas personagens prediletas, como o protagonista de Os Sofrimentos do Jovem Werther, com quem ele se identifica ao ponto de imaginar que as palavras de J.W. von Goethe sejam verdadeiras expressões dos seus pensamentos de menino. Diz-nos Moritz:

“Reiser acreditou se reencontrar em Werther, com todos os seus pensamentos e sentimentos, menos na questão do amor. — ‘Deixa que este livrinho seja teu amigo se, por fatalidade ou por culpa própria, tu não puderes encontrar outro mais próximo que ele.’ Reiser pensava nessas palavras todas as vezes que tirava o livro do bolso — achava que elas cabiam perfeitamente na sua situação. — Pois, em seu caso, acreditava ser em parte o destino, em parte ele mesmo, o culpado por ser tão abandonado no mundo; e não podia conversar com o amigo da mesma maneira que conversava com o livro.”

Quando adolescente, os livros de Ian Fleming fizeram-me sentir capaz de desprender-me da infância, como se a curiosidade pelo mundo e o sexo oposto fossem o bastante para estabelecer a consciência dos riscos que eu correria ao encarar as situações da vida adulta.

Ora, não nego que as aventuras de James Bond tenham me ensinado uma porção de coisas interessantes. Afinal, os romances de Fleming foram responsáveis tanto pelas minhas boas notas em Inglês, como pelo meu crescente interesse por Literatura, História e Geografia. Ferramentas que, mais tarde, mostraram-se úteis para o meu desenvolvimento profissional. Porém, duvido muito que, aos 13 anos, o domínio da coquetelaria devesse figurar entre as minhas prioridades.

Com efeito, a história do meu primeiro drinque só me trouxe muito choro e dor de cabeça, além de uma bela bronca e alguns dias de castigo. Lembro-me de que a receita de Martini em Cassino Royale tinha gosto de remédio e que — mesmo fingindo coragem — não consegui sorver toda a beberagem.

Tonta, nauseada e sem entender que estava embriagada, deixei o bar antes mesmo de pedir a conta. E, como quem suspeita de que fora envenenada por um agente inimigo, escondi-me em uma lanchonete do centro da cidade até encontrar uma maneira de voltar para casa. 

Ao fim deste episódio, atentei para a hipótese de haver perdido o juízo. Tanto em casa como na escola, notei que o meu papo estava cada vez mais enfadonho. Dando-me a impressão de que toda a minha imaginação estivesse direcionada para um único tema — a história dos grandes serviços secretos durante a Guerra Fria — e concluí estar viciada em um tipo específico de literatura, a relatar experiências completamente alheias às minhas circunstâncias.

Hoje não tenho dúvida alguma de que a leitura compulsiva de romances de espionagem fora a maneira que eu encontrei para lidar com as consequências da separação dos meus pais; o que, na época, forçou-me a simular uma espécie de maturidade que eu ainda não havia desenvolvido.  

Assim como as reiteradas leituras de Werther levaram Reiser ao isolamento, a fantasia de tornar-me um agente secreto acabou por alimentar todas as justificativas que eu encontrava para me distanciar cada vez mais das pessoas, por medo de revelar qualquer desajuste familiar.

No entanto, acredito que mesmo as leituras que nos metem em apuros são capazes de render bons frutos. Para isto, faz-se necessário refletir sobre o que esses textos representam em um dado momento das nossas vidas. Assim, ouso dizer que cada leitor traz consigo uma bagagem afetiva a interferir na apreciação de um texto.

Algumas vezes, esta bagagem nos impede de ver algo pelo que ele realmente é. Contudo, superado esse obstáculo inicial, aprendemos a navegar pelo universo dos livros com maior destreza; sem correr o risco de, mais uma vez, confundirmos os dramas de uma personagem com a nossa própria realidade.


JULIANA DE ALBUQUERQUE é escritora e colunista do jornal Folha de S.Paulo. Mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv, Israel, atualmente cursa doutorado em Filosofia e Literatura Alemã na University College Cork, Irlanda.