Pensata I Luis Augusto Fischer

Seis palpites sobre literatura brasileira hoje em dia

A coluna Pensata abre espaço para que autores reflitam sobre um tema sugerido pela equipe do Cândido. Nesta edição, o escritor e crítico Luís Augusto Fischer elenca o que, em sua opinião, são as principais correntes da literatura brasileira hoje e debate acerca de como questões extraliterárias estão — ou não — interferindo na produção atual dos autores brasileiros. 

Alguém se mete de pato a ganso para tentar uma leitura de conjunto sobre a literatura de hoje em dia no Brasil? Difícil. 

Primeiro porque tem muita gente produzindo, e com resultados excelentes. São três gerações em atuação: os velhinhos, com 70 anos ou mais (Dalton Trevisan, Lya Luft, Luis Fernando Verissimo, Chico Buarque, Conceição Evaristo e outros); os maduros (cinquentões e sessentões, Tezza, Bonassi e Ruffato apenas entre os italodescendentes, mas igualmente Milton Hatoum, Paulo Lins, Rubens Figueiredo, Marcelo Rubens Paiva, Beatriz Bracher, Miguel Sanches Neto, Paulo Scott, Bernardo Carvalho, uma penca de gente de excelente qualidade); e os relativamente jovens, por volta dos 40 anos (Michel Laub, Tatiana Levy, Marcelino Freire, Ferréz, Daniel Galera). 

E eu só mencionei prosadores. Se incluir poetas na conta... 

Então dar balanço nisso tudo é impossível. A não ser como impressionismo, que é o que comanda o texto daqui pra frente 

Impressão 1: o romance, como forma, está em alta forte. Se estivéssemos num mercado com gente negociando ações e tal, a barbada seria apostar na força do romance, talvez ainda por um bom tempo. Contista está quase matando cachorro a grito, depois de ter tido uma geração inteira de prestígio, entre 1970 e o fim do século. Dá pra ver que os concursos quentes para textos e/ou autores inéditos abrem principalmente para romance, não para conto, poesia ou outro gênero.

Impressão 2: crônica meio que perdeu destaque, talvez como um eco direto da ascensão dos blogues (agora em baixa) e do Facebook (parece que não muito relevante para a geração sub-25, mas de forte significado e presença para gente mais velha), e portanto a emergência de zilhões de praticantes de crônica, (com nível de qualidade por certo muito variável), e a baixa dos jornais impressos, nicho original da melhor voz cronística no Brasil (e alhures). Todo mundo é cronista. O único caso de destaque nacional recente é o Antonio Prata.

Impressão 2, parágrafo novo: o peso da voz cronística no debate público perdeu fôlego, comparado ao que rolou por exemplo com Luis Fernando Verissimo, em seus memoráveis embates com FHC, ou Zuenir Ventura quando começou a falar da “cidade partida”. Apareceram e se consolidaram cronistas inteligentes de direita (ou antiesquerdistas), como Pondé e João Pereira Coutinho, coisa inimaginável na geração anterior.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                           Fotos: Kraw Penas
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Rubens Figueiredo e Beatriz Bracher, segundo o crítico Luís Augusto Fischer, são alguns dos representantes “maduros” da literatura brasileira que estão produzindo excelente prosa no país.

Impressão 3: tem uma penca de mulheres poetas lançando livros de interesse, numa relação direta com a consolidação do feminismo nas últimas décadas. Não sou especialista no campo, nem acompanho de perto o cenário, mas estão aí Angélica Freitas, Bruna Beber, Ana Matins Marques. Li agora o livro Mugido ou diários de uma doula, de Marília Floôr Kosby (Garupa, Rio de Janeiro, 2017), que é um estouro: a voz poética é feminina e põe em foco a condição das fêmeas — a autora tem experiência de acompanhar seu pai, veterinário, no parto de vacas, matéria-prima do tal diário da doula mas de bezerros. Poesia desde o ângulo das fêmeas, mulheres ou vacas, é disso que se trata, de um modo poeticamente muito forte e significativo.

Pergunta fora de hora: o fato de ter muita poesia feita por mulheres terá a ver com uma jornada de conquista de linguagem e de ponto de vista? Acho que sim. A poesia pode ser a primeira etapa na busca de uma linguagem — embora haja romances claramente feministas (e ótimos romances) de Beatriz Bracher, Tatiana Salem, Levy, Ana Maria Gonçalves.

Impressão 4: idem, autores negros, identificados com algum dos ramos do movimento negro (este adjetivo não é unânime), agora se reconhecem como tal e alteram a visada histórica sobre o campo. Por exemplo: Ferréz reivindica familiaridade com os Racionais MCs, mas também com Carolina Maria de Jesus, e esta, por sua vez, ganha outra figura, para muito além da mera condição de depoimento direto sobre a pobreza. A candidatura de Conceição Evaristo à Academia Brasileira de Letras, que é óbvio que seria frustrada (por confrontar os ritos de visitas e salamaleques e coisas assim), explicitou essa nova situação.

Impressão 5: na profusão de romances de qualidade que temos agora, arrisco dizer que temos alguns temas muito bem acompanhados, como o universo da vida dos de baixo (Rubens Figueiredo, Luiz Ruffato, Fernando Bonassi, Paulo Lins, Ferréz, Paulo Scott), ou como as mazelas da vida de gente de classe média — o que em nada desmerece essas obras, bem entendido —, como será o caso de Lya Luft, Cristovão Tezza, Daniel Galera. 

Nota à parte: o universo dos indígenas, os que vivem em modo tradicional ou os que vivem já em modo de vida ocidental mas de algum modo se compreendem como ameríndios, tem já aparecido em literatura, mas ainda em proporção pequena. Daniel Munduruku faz ótima literatura para jovens e crianças com essa matéria histórica; Paulo Scott enfrentou o tema ainda mais confuso de um casal interétnico e intercultural, uma adolescente indígena tendo filho de um jovem ocidental, em Habitante irreal, que recebeu menos atenção do que merece, creio. 

Impressão 6: e o que é que não há, ou quase não há? Dois temas chamam a atenção pela sua quase ausência — primeiro, o mundo das pequenas cidades interioranas, essas mesmas que apoiaram a inacreditável greve dos caminheiros e votaram maciçamente em candidato declaradamente homofóbico e misógino. Quem vai nos explicar isso tudo? Segundo: com uma exceção chamada Ricardo Lísias (me refiro ao sensacional livro assinado por “Eduardo Cunha (pseudônimo)”, o mundo da alta política e do poder parece muito distante dos nossos escritores, em regra. Não temos capitães de indústria, banqueiros, altos funcionários, operadores dos esquemas internacionais, senadores e deputados. Cadê essa gente?

Luis Augusto Fischer é professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de, entre outros livros, Machado e Borges — e outros ensaios sobre Machado de Assis e Literatura Brasileira — modos de usar. Vive em Porto Alegre (RS).