Painel | Geração 90

Aquela velha juventude

O crítico e escritor Luís Augusto Fischer apresenta um painel sobre os 29 autores que estiveram presentes nas antologias Geração 90, organizadas no começo dos anos 2000 por Nelson de Oliveira 

O ano de 2001 já pareceu ser um ponto muito distante no futuro. Basta lembrar aquela canção tão sessenta-e-oitista, parceria eventual e tão, tão linda de Rita Lee com Tom Zé, que se chamava justamente “2001”: “Astronarta libertado,/ minha vida me ultrapassa/ em qualquer rota que eu faça”. Era um tempo em que de fato havia algo chamado “corrida espacial”, Estados Unidos de um lado, União Soviética de outro, cada qual forçando a barra para ir mais longe, todo mundo falando de astronauta, foguete, essas coisas agora invisíveis. Em 1968 a Lua estava no papo, como se dizia na época. Faltavam longos 32 anos para o mágico 2001: toda uma vida.

Agora estamos nessa posição de ter passado por 2001 já há 16 anos, metade dos 32 que faltavam quando Tom Zé e Rita Lee cantaram a música. Simetria — a realidade gosta de simetrias e pequenos anacronismos, como disse certa vez aquele sábio frasista portenho.  

Será o caso de perguntar, então, se chegou aquele mundo, aquele futuro imaginado. Sim? E a vida nos ultrapassou?

No ano de 2001 veio a público uma publicação nem tão vistosa assim, mas destinada a marcar com certo vigor o cenário literário do país: Geração 90: manuscritos de computador, organizado por Nelson de Oliveira para a editora Boitempo. Tinha um subtítulo, com algum sabor de época: “Os melhores contistas brasileiros surgidos no final do século XX”.

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Os autores Rubens Figueiredo, Marçal Aquino e Cíntia Moscovich, que fizeram parte da antologia Geração 90: manuscritos de computador, de 2001

Um sentido entranhado na publicação e presente nas palavras do subtítulo faz todo sentido, visto à distância: números redondos, como aquele 2000, levam a balanços e a seu oposto complementar, projeções, justamente porque nessas esquinas históricas temos a forte sensação de que passado e futuro conversam sem intermediários, ali, na nossa frente — nós, então, com aquela sublime ilusão de estar no controle da passagem das horas, da ultrapassagem das eras. A antologia preparada por Nelson de Oliveira se propunha ser um flagrante daquele momento.

Não foi o único caso. No ano anterior, justamente 2000, saiu uma importante antologia com o decidido, forte, pretensioso nome de Os cem melhores contos brasileiros do século, selecionados por Italo Moriconi, para a editora Objetiva. Houve forte debate em torno do livro; que eu lembre, ninguém foi capaz de apontar problemas relevantes na seleção de Moriconi — a única ausência realmente significativa foi a de Guimarães Rosa, e isso por causa de obstáculos levantados pelos herdeiros dos direitos autorais do gênio mineiro, que não chegaram a acordo com a editora. 

Houve outro caso notável, de resposta provocativa a esses cem contos: Marcelino Freire organizou em 2004, para a Ateliê Editorial, um volume chamado Os cem menores contos do século XX, fazendo piada a sério: era um ponto alto da voga do microconto no Brasil, em parte uma fantasia de hiperconcentração e hipercontenção, que seriam marcas relevantes do novo tempo, este impressionante século XXI que se inaugurava. Século que porém se inaugurava, em óbvia contradição, com uma hiperdistensão, um hiper-espalhamento da escrita, dada a generalização do uso da internet pelos setores e classes letradas do país e do Ocidente. O mundo da escrita e da leitura nunca mais seria o mesmo, tanto fazia se em microcontos ou em textos infinitos.

Conto
A frase-chamariz com que Nelson de Oliveira subtitulou sua antologia queria fazer bossa com a novidade tecnológica: “manuscritos de computador” não existem, naturalmente. Mas a frase sapateia sobre o grande X da época, para quem escrevia. Se cem anos antes o problema tecnológico era o ingresso da máquina de escrever no cotidiano dos escritores, como se pode ler, aqui e ali, no interessante levantamento feito por João do Rio em Momento literário, de 1905, em 2000 o problema era estabelecer distância irônica em relação à pendenga entre a delicadeza do artesanato da escrita até então, expressa nos manuscritos literais, e de outro lado o atropelo, a urgência, a perda de controle humano representada, então, pela escrita no computador.  

Acredite, prezado leitor jovem nascido há menos de 30 anos: escrever direto no computador, no teclado e na tela, na memória desta máquina agora amistosa, era coisa ainda problemática para quem vinha de antes, para quem havia nascido na era da televisão (no Brasil da classe média, coisa dos anos 1960 em diante) ou, mais ainda, na era do rádio (dos anos 1930 até os 1960). Se agora todo mundo escreve o tempo todo, em telas que vão dos poucos centímetros quadrados às largas telas de mesa, na altura de 2000 isso vinha rodeado de uma aura de tensa modernidade. 

O mesmo Nelson de Oliveira voltou à carga dois anos depois. Em 2003 assinou a organização de Geração 90: os transgressores, pela mesma editora Boitempo, e com o mesmo subtítulo do volume anterior, Os melhores contistas brasileiros surgidos no final do século XX. Se agora vinham os escritores precedidos pelo carimbo elogioso de “transgressores”, haveria alguma sugestão de que os anteriores seriam o contrário disso, conformistas, ou cumpridores de regras?  

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André Sant’Anna, Daniel Pellizzari e Ivana Arruda Leite estiveram entre os autores do livro Geração 90: Os transgressores, de 2003.

Seja como tiver sido, o certo é que até aqui falamos das duas antologias Geração 90 que, como as outras duas coletâneas (Moriconi e Freire), reúnem contos. Contos. Será porque o conto tem a característica de ser portátil, breve, por isso agrupável em edições coletivas? Ou ele era um gênero de prestígio relativamente maior naquela conjuntura do que hoje, quando temos um cenário brasileiro inundado de romancistas? (Na abertura do volume de 2003, Nelson de Oliveira dá um drible: “Esta é uma antologia de prosadores — dos melhores contistas e romancistas surgidos na década de 90 — e não de contos”.)

Hipótese: os escritores brasileiros das últimas décadas aprenderam a falar na língua extensa do romance, ao contrário da geração dos anos 1970, caracteristicamente marcada pela força do conto — Rubem Fonseca, João Antônio, José J. Veiga, Lygia Fagundes Telles, Sérgio Sant’Anna, o primeiro Moacyr Scliar, Caio Fernando Abreu. Falar na língua do romance não é trivial, bem entendido: é preciso ter uma visão de conjunto, seja sobre um grupo amplo de pessoas e coisas se mexendo no espaço e no tempo (Luiz Rufatto ou Paulo Lins, por exemplo), seja sobre vidas singulares examinadas com lupa (Bernardo Carvalho ou Beatriz Bracher, por exemplo).

Quem são os autores?
Dispostos esses elementos, o Cândido resolve perguntar: desses dois ousados volumes de Nelson de Oliveira, que resultado saiu, decorrido o prazo bastante longo de então até agora? Quem permanece? Quem deu certo, quem não? Talvez seja inconveniente e mesmo impróprio perguntar se os contistas selecionados então se consagraram — aliás, o que é mesmo “se consagrar”, no mundo literário brasileiro desta geração 90?

Antes de responder a essas perguntas, formulamos outras: quem foram os selecionados? Terão eles algum perfil discernível, vistas as coisas à distância de uma década e meia? Vai aqui uma repassada geral, em duas tabelas organizadas para permitir alguma visada de conjunto. Uma para a publicação de 2001, outra para a de 2003.

Geração 90 — Manuscritos de computador (2001)
t1
 

Geração 90 — Os transgressores (2003)
t2


Nas duas, as colunas registram (1) nome, (2) local de nascimento do escritor (qual o Estado e, quanto à cidade, se era a capital ou não do Estado), (3) ano de nascimento, (4) outra profissão, tal como registrada na própria antologia ou apontada na página do autor na wikipedia, caso ela exista, (5) número de livros assinados por ele (ficam de fora as participações em antologias), incluindo as traduções de livros inteiros para outra língua, (6) o registro da existência ou não de verbete próprio do autor na Enciclopédia Itaú, que podemos tomar como uma das instâncias de reconhecimento público do escritor e, finalmente, (7), o registro de prêmio Jabuti, São Paulo ou Portugal Telecom/Oceanos depois de 2001, certamente os três mais significativos do universo brasileiro de hoje em dia. Neste último caso anotamos tanto primeiro lugar quanto posição entre os três finalistas, em conto ou em romance. 

(Naturalmente poderá haver alguma falha ou omissão nos dados; mas creia o leitor que a busca foi feita sincera e empenhadamente; de todo modo, o resultado, numa leitura de conjunto como a que aqui se tenta, deve ser representativo.)

O balanço desse grupo indica muitos premiados: são 17 escritores, sendo apenas uma mulher (em 2001 o feminismo não tinha ainda alcançado o patamar atual: uma antologia feita hoje por certo se colocaria o problema de representatividade de gênero — para nem falar do critério étnico, que igualmente hoje se faria presente). Desses 17, sete são interioranos, contra dez capitalinos, divisão com certa respeitabilidade geográfica. Por região, no entanto, a conta é escandalosamente concentrada: são dez escritores do Sudeste, quatro do Nordeste e três do Sul. Por Estado: São Paulo 5; Rio Grande do Sul 3; Minas Gerais 3; Rio de Janeiro 2; Ceará 2; Pernambuco 1; e Bahia 1.

Vista a questão etária, a coisa fica interessante para falar de geração, tomada a palavra com um sentido de idade dos protagonistas. Com exceção de Altair Martins, nascido em 1975, todos os outros dezesseis escritores nasceram entre 1956 e 1967, uma década justa, a marcar uma possível homogeneidade de formação, experiência, modo de vida — com grande razão, o organizador da antologia (nascido em 1966) menciona destacadamente a televisão como influenciadora desse pessoal. (O autor do presente artigo nasceu em 1958 e sabe bem do que se trata.)

Dezessete selecionados, com um total de 16 prêmios, a partir do ano de 2001, obtidos entre os mais importantes no plano brasileiro: trata-se de um sucesso a seleção, desde esse ângulo. No mercado de ações — desculpada a comparação, mas enfim estamos pensando em consagração num certo mercado — devemos reconhecer que o organizador comprou as ações certas, em baixa, e depois as viu em alta. Modulando um pouco: são 9 autores premiados, entre os 17, metade a quase perfeita, e por aqui o mérito de Nelson de Oliveira cai um pouco. Os não-premiados, de fato, vistos de modo panorâmico, não se consolidaram como figuras do primeiro time nacional. Terá algo a ver com a origem geográfica dos sem-prêmio? São eles um baiano, dois cearenses e dois mineiros, mais três paulistas e um carioca. Por região: dos 4 nordestinos, 3 não levaram prêmio, 75%; dos sudestinos, 5 de 10 não meteram mão em taça, 50%.

Já no plano da circulação fora do português, a coisa é menos auspiciosa. Apenas 5 dos escritores ganharam rosto em outra língua, havendo uma notável exceção em Luiz Ruffato, que parece ter mais carreira fora do Brasil do que dentro dele, com suas 15 traduções (para alemão, francês, espanhol e italiano) e, não menos, dois polpudos fortíssimos internacionais, o Casa de las Américas em 2013 e o Herman Hesse em 2016. (Vale a nota: Ruffato, além disso tudo, é um notável organizador de livro, antologias, coletâneas temáticas, muita coisa mesmo. Sua página na wikipedia marca 14 feitos nesse terreno.) Em resumo também a voo de pássaro, a geração 90 repete a sina da literatura brasileira de sempre, a de circular muito pouco fora do Brasil e do português.

Vejamos agora o caso do segundo volume, aquele de 2003. Como logo se verá, este novo grupo repetiu quatro escritores do volume primeiro (motivo pelo qual seus dados não estão aqui reiterados).  

Aparecer numa antologia anunciada como de “transgressores” pode ser perigoso, para efeitos de leitura. Nelson de Oliveira abre sua apresentação tematizando o problema: diz ele que há em comum entre os autores muita coisa, como o nonsense, a ironia, a insanidade, a fragmentação lírica, o fluxo de consciência, as divagações cínicas e rancorosas, a delicadeza do absurdo, o gosto pela prosa malcomportada e o desprezo pelo discurso linear (pp. 9 e 10).

Aqui são 16 escritores (e outros três declinaram do convite, como alerta o organizador, p. 16): Evandro Affonso Ferreira, Juliano Garcia Pessanha e Luiz Ruffato. Agora temos 3 mulheres, uma presença muito mais significativa do que antes. Pelos mesmos critérios evocados anteriormente, aqui temos, entre os 12 que não estavam no volume de 2001, 10 capitalinos para 2 interioranos, em muito maior concentração. Por Estado, são 4 de São Paulo e 3 do Rio de Janeiro, os únicos Estados com mais de um representante; seguem-se um de cada um dos seguintes Estados: Minas Gerais, Pará, Amazonas, Paraná e Mato Grosso. Por região, a mesma concentração do volume de 2001: do Sudeste 8; do Norte 2; do Sul 1 e do Centro-oeste também 1.

O Brasil 732 não é hiperconcentrado apenas no PIB, na indústria cultural, na população. Quer ver a soma dos dois volumes neste quesito? Sudeste 18, ou 62%. Nordeste, 4, ou 14%, mesmo percentual do Sul. Norte vem com 2, ou 7%, e o Centro-Oeste com 1, ou 3% arredondados — e olha que o representante é Joca Reiners Terron, que saiu de seu Estado natal para viver no Rio e em São Paulo muito jovem.

Neste grupo não há premiados entre os 12, naqueles prêmios aqui considerados. Traduzidos, apenas uma entre os 12 novos. Por outro lado, dois deles são também compositores, ou melhor, habilitados nessa outra grande arte letrada brasileira, a canção, fator que talvez tenha algo a ver com o qualificativo geral do volume. Já desde o ângulo etário, aparecem dois mais velhos do que aquele grupo dominante no volume de 2001, ambos nascidos na primeira metade dos anos 1950, e três mais novos do que o mesmo grupo. Dizendo de outro modo, mais sete deste segundo volume são da mesma geração hegemônica. 

Os dois livros Geração 90, em divisão por ano de nascimento:

t3
 

Bons prosadores
Nascidos até 1971, que eram já pessoas maduras, tinham pelo menos 30 anos em 2001 — 30 anos, boa medida, talvez, para falar de limite da juventude (embora recente pesquisa na Folha de S.Paulo tenha apontado um limite mais largo, 37 anos, para o fim da juventude) — são 26 em 29, ou seja, 90% dos autores dos dois volumes de Geração 90. Mas dentro desses 90% há uma concentração forte entre os anos de 1956 e 1967, 22 de 29: 75% dos escritores selecionados para os dois volumes tinham entre 37 e 45 anos, maturidade mais do que evidente, mesmo tomando o critério da recente pesquisa da Folha.

Dos 29 nomes presentes no conjunto da Geração 90, sem dúvida um punhado se consagrou, como é o caso evidente daqueles premiados. São escritores que hoje orçam, majoritariamente (os 75%), entre os 50 e os 60 anos — somos quase da terceira idade! Trata-se de gente que entrou para a leitura corrente dos escassos leitores brasileiros e nas listas e programas de vestibulares? Em parte sim. 

Mas ao lado deles há um bom grupo de outros, da mesma faixa etá- ria, que não constaram nas antologias organizadas, com grande acerto e oportunidade, por Nelson de Oliveira, mas que merecem ser lembrados aqui como gente da mesma geração, essa, vá lá, Geração 90. Sem ir muito longe, e ficando apenas em nomes com obra conhecida pelo articulista, vai aqui uma breve enumeração de escritores de prosa relevante nascidos no mesmo intervalo majoritário apontado acima, entre 1956 e 1967. 

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Não rendiam eles outros dois volumes de alta qualidade, entre transgressores e convencionais? Se acrescentarmos gente um pouquinho mais velha, como Godofredo de Oliveira Neto (1951, SC), Milton Hatoum (1952, AM), Cristóvão Tezza (1952, SC) e Luiz Sérgio Metz (1954, RS), temos aí toda uma geração de bons e ótimos prosadores, a primeira a se expressar depois do período da ditadura militar de 64-85, a primeira a viver sob a força da televisão e provavelmente a última a ser impactada já na idade adulta pela avalanche da internet e dos computadores pessoais — acredite, leitor jovem, essa designação fazia sentido para os atuais cinquentões e sessentões —, porque quem veio depois, quem nasceu nos anos 1970 e 1980, praticamente veio ao mundo com um computador em casa (e os nascidos dos 90 em diante nasceram já com um celular inteligente na mão...).