Os editores | Roberto Gomes

"No quintal de casa tinha uma gráfica"

Na oitava entrevista da série Os Editores, Roberto Gomes relembra as duas fases da Criar, editora que idealizou com Cristovão Tezza nos anos 1980 e se tornou um marco no Paraná 

José Carlos Fernandes

O catarinense Roberto Gomes, 73 anos, é dono de múltiplas habilidades. “Um homem renascentista”, como costumam qualificá-lo. Desenha, pinta, toca piano e, só para chatear os mortais, escreve com os pés nas costas. Nenhum gênero literário lhe é estranho. Se seus professores dos tempos de piá, em Blumenau, Vale do Itajaí, pudessem prever o futuro, duvidariam e fariam pouco. Gomes foi um péssimo aluno, não se envergonha em confessar. Além do comportamento digno de expulsão, não acertava a grafia. À época, diriam, faltou-lhe a palmatória. E abandonar a montanha de escritos do século XIX, com os quais se fiava, em detrimento da aritmética. “Para mim, farmácia se escrevia com ph”, conta o sujeito que dentre todas as suas paixões, fez dos livros a maior.

A entrega incondicional às letras, porém, se deu na base da porrada. Em meados da década de 1970, Roberto Gomes — então formado em Filosofia — se viu defenestrado das duas universidades nas quais lecionava, a Católica (PUC-PR) e a UFPR. “Você sabe o que fez”, disse-lhe um representante do Serviço Nacional de Informações, o SNI, ao jogá-lo no desemprego. Sem saber, atirou-o também naquela que foi a maior de suas aventuras — a fundação da Criar Edições, selo de pelo menos uma centena de títulos, cuja qualidade a crítica não negligenciou.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                            Fotos: Henry Milléo
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Os feitos da Criar são tamanhos que é impossível ouvi-los sem uma ponta de melancolia. Numa sociedade perfeita, seria crime falar dela no pretérito. A editora teve duas vidas — de 1981 a 1989, quando se firmou no posto de a nanica mais festejada do setor. Figura entre as vítimas do Plano Collor. E de 2000 a 2007, quando voltou à baila, mas sem muita musculatura para aguentar as regras de um mercado em que o livro, que ironia, virou figurante. 

Portas fechadas, Roberto se recolheu ao piano, aos lápis e ao baú velho que congestiona sua sala de visitas, no bairro Ahú. “Está tudo aqui dentro”, conta, sobre seus tesouros de editor — de guardados do pai, o endiabrado João Gomes; passando por documentos da década em que dirigiu a Editora UFPR, até chegar a originais a ele confiados por Paulo Leminski, Wilson Bueno, Jamil Snege e ao amigo Manoel Carlos Karam, de quem não fala sem fazer uma pausa. 

Roberto é para maiores. Não nutre grandes esperanças. Esbanja franquezas — “literatura para quem?”, pergunta. Só não o tomem por um casmurro. Pode até soltar cachorros, mas logo se recolhe à sombra dos livros, seu endereço fixo, seu “lugar de fala”, como agora se diz. É o seu melhor. Confira trechos da entrevista. 

Onde começa esta história?
Minha ligação com a palavra impressa nasce na gráfica do meu pai. É um fascínio, desde a origem. Não sei explicar por quê. Tive amigos que me confidenciaram ainda escrever à mão. Comigo não — a primeira atitude que tive ao decidir ser escritor foi comprar uma máquina de escrever.

Em Blumenau...
Passei parte da minha infância numa oficina de jornal. Estava lá a linotipo, a impressora. E meu pai, João Gomes, na maquininha de imprimir. Eu via ali a materialidade da palavra. Sabia como funcionava cada linha do chumbo. Um treco qualquer sobre o prefeito era escrito na nossa sala e saía na gráfica, que ficava numa parte do terreno, onde hoje há um hotel gigantesco. Falo desse cenário no livro Todas as casas

De João Gomes a Roberto Gomes, qual o resumo da ópera?
João Gomes era um autodidata, nascido na colônia Angelina (SC). Uma figura. Lia muito. Tenho uma estante com os livros dele, do século XIX. O Peninha [jornalista e historiador Eduardo Bueno] fala de Angelina no livro Náufragos, traficantes e degredados. Descreve como um local muito fértil. E que ali foi largado um tal de Jorge Gomes. Jorge descobriu o caminho que levava ao Chile e conduzia gente até lá. Fez amizade com os índios, casou com a filha do cacique e virou líder da tribo, o que lhe garantiu o direito de ter outras mulheres. Entendi tudo [risos]. Meu pai morreu aos 72 anos, sem saber dessa história. Fez de tudo na vida. Foi guarda-livros, assessor de prefeito, delegado, jornalista. Teve loja de eletrodomésticos em Florianópolis, a Radiolar. Aprendia sozinho e se interessava por tudo. Casou três vezes. Teve quatro filhos com a primeira mulher, eu com a minha mãe e mais dois com a última companheira. Sofreu bastante pelas escolhas que fez. Era um homem conservador, mas não reacionário. Ficou estigmatizado. Em Blumenau, filiou-se à UDN e escrevia no jornal do partido. Mas como era separado, acabou expulso até da  maçonaria. Eu ia ao armazém e um alemão de 2 metros, o seu Zimmermann, perguntava se eu era filho do João. Sabia que vinha bomba [risos]. Diziam-me que ele era inteligente, mas que não tinha juízo. Passei muito tempo com dificuldade em me identificar com ele. Tinha capacidade de trabalho, falava bem, mas não podia ver um rabo de saia [risos]. Dediquei a ele uma crônica, “Era uma vez meu pai”.

Como você definiria o Roberto, filho do gráfico e antepassado de um degredado?
Tenho irmãos na medicina e na engenharia. A pressão era para que fizesse o mesmo. Prestei Arquitetura para não passar e consegui cursar Filosofia. Lia muito Sartre, Bertrand Russell. Gostava de Machado de Assis e de Eça de Queiroz. Os livros que eu tinha eram do meu pai, e de um primo, Régis, um sujeito extraordinário que morreu de tuberculose. Como consumia muita obra antiga, fiquei com um problema sério de tanto ver “ph” em farmácia. Até hoje tenho péssima grafia. Entrei em choque na escola. Não fui um bom aluno. Era irritado, anarquista, impaciente, metido a besta. Um saco [risos]. Seria hoje diagnosticado com déficit de atenção. Eu me entusiasmava, começava algo e depois abandonava. Chocava a alemãozada de Blumenau.

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Lembra o que planejava para o futuro?  
Pensava que poderia ser escritor. Ainda em Blumenau, havia publicado crônicas no jornal O Combate. Mandei textos para meu pai editar, mas como anônimo. Assinava G.R. Ele não sabia que era eu. Depois de ter publicado quatro remessas, perguntei quem era e me disse que não fazia ideia. Lembrei-o que no passado ele escrevia em dois jornais, um em oposição ao outro. Num assinava J.G e no outro G.J. “Então G.R és tu, cara?” Foi assim que descobriu. Me levou na gráfica e disse que na próxima edição eu deveria assinar Roberto Gomes. 

Qual era a tua turma?,
Meu grupo de amigos cultivava boa leitura. Um deles era o Sérgio Faraco, que morou em Blumenau um tempo e estava filiado no Partido Comunista. O outro se chamava Érico Müller Filho, que tinha fascistas na família, mas lia Erich Maria Remarque. Foi Érico que me apresentou à literatura do Borges. Depois da aula a gente bebia chope e conversava. Íamos fazer a revolução, tomar o poder [risos]. Foi com esses caras que fiquei mais à esquerda. Quando trabalhei em banco, fiz greve. Botei tudo isso em Antes que o teto desabe, um livro sobre o Brasil antes do Golpe de 1964. 

Que Curitiba você encontrou quando chegou, em 1964?
Uma cidade pequena, mas grande se comparada a Blumenau. Achei que estava em Nova York. E que esse lugar não era para mim. Vim para estudar, mas não sabia o que fazer. Fiquei dois anos pra lá e pra cá, sem amigos, com depressão. Fui trabalhar na Aliança Francesa, onde cuidava dos livros. Aprendi francês. Descobri o Cineclube do Colégio Santa Maria. Depois do expediente, o [jornalista] Walmor Marcellino e eu víamos filmes e documentários vindos de Paris. Comecei a me enturmar e decidi fazer Filosofia. Depois da faculdade, por volta de 1969, tive oportunidade de voltar para Santa Catarina. Estava casado, tinha filho, precisava trabalhar. Quando fui me despedir de um amigo, o padre Diniz Mikosz, um sujeito genial, tive uma surpresa. Uma hora depois do adeus, ele bateu na porta da minha casa, na Água Verde [bairro de Curitiba]. “Vim cumprimentar o mais novo professor da Católica”. O padre não queria que eu fosse embora. Fiz um pouco de charme, mas no fundo queria ficar aqui. 

Você foi afastado das duas universidades em que trabalhava. Os militares superestimaram sua ligação com a esquerda?
Nunca estive numa reunião do Partido Comunista. Os militares implicaram comigo porque eu soltava a língua nas aulas. Em 1976, o governo conseguiu me tirar da Católica e um ano depois da UFPR. Um dia, o irmão Raimundo me chamou e disse que não podia reno var meu contrato na PUC. Fomos jun tos falar com um ex-bedel da faculda de de Direito, representante por lá do SNI. Questionei a decisão. Foi kafkiano. Disse-me que eu sabia o que tinha feito. Pedi ajuda a uma amiga, a Suza - na Munhoz da Rocha, para que falasse com o pai dela [o ex-governador Bento Munhoz da Rocha]. A história chegou ao general João Batista Figueiredo. Ao puxar minha ficha, ele teria dito: “Mas é um comunista de Blumenau. Melhor mandar à merda”. Na ocasião, um professor da UFPR me chamou para um encontro no estacionamento. Tinha um recado para mim, vindo de uma autoridade: ou eu parava de buscar justificativa para a suspensão ou ia acabar preso. Como não queria ir para a cadeia, escrevi Alegres memórias de um cadáver. Foi minha vingança. Fiquei sem emprego. Por isso decidi fundar a Criar Edições.

A repressão empurrou você para o mundo do livro...
A gente tinha a Coeditora, fundada por 12 escritores, mas fraquejou. A Criar veio em seguida. Começou a funcionar em 1981 com a publicação de Sabrina de trotoar e tacape, de minha autoria, e Cidade inventada, do Cristovão Tezza, dois livros inviáveis. A editora éramos Cristóvão e eu, e a [socióloga] Íria Zanoni [com quem Roberto foi casado]. O título “Criar” nasce das iniciais dos nossos nomes. A gente queria um troço profissional, mas começou na maluquice, na aventura, no improviso. O Tezza não tinha conhecimento do assunto, nem gosto, mas entrou com capital. A Íria fazia revisão, dava apoio e garantia a organização. Eu morava num prédio baixo da Rua Senador Saraiva. A Criar funcionava na garagem. Publicar foi uma forma de respirar. Vivíamos agoniados. 

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Você lembra alguma cena da época, que defina como a banda tocava?
[pausa] Na Livraria Ghignone havia uma funcionária, com mecha branca, uma simpatia, ao contrário do velho José Ghignone. Cristóvão e eu colocamos os livros debaixo do braço e fomos falar com ela. No dia seguinte, os exemplares estavam na vitrine, a glória. Mas logo sumiram. O livreiro mandou que os colocassem embaixo da escada [risos]. O Aramis Chain, dono da Livraria do Chain, e outros livreiros também pegaram para vender. Fazíamos lançamento. Funcionava. Era outro mundo. A gente juntava dinheirinho. Queríamos publicar literatura, mas não só a paranaense. Na minha cabeça, nosso modelo era um pouco a Editora Brasiliense, mas também a José Olympio e a Editora do Autor, na qual publicava o Fernando Sabino. Reunimos gente interessada, como o Luiz Galdino, de São Paulo; e o Sérgio Faraco, de Porto Alegre. Fizemos peças interessantes, como a edição de Helena Kolody, que havia publicado o primeiro livro havia 40 anos e nunca mais tinha sido editada.

Dizer que o mercado era melhor que hoje lhe parece saudosismo?
Tínhamos distribuidor em São Paulo, no Rio Grande do Sul, na Bahia. Havia um mercado editorial, uma grande rede de comercialização, que se movia pelo país para... vender livros. Lembro de um sujeito que gostaria de reencontrar. Saía todo de branco por aí, mostrando capinhas de livros. Tinha uma namorada em cada lugar. Era um mapa do Brasil. Pessoas assim alimentavam a rede. Penso que havia um interesse verdadeiro pela literatura. As livrarias eram livrarias. Se alguém queria saber de um livro, era só ir a uma. Havia menos títulos, a produção era menor. Mas de repente um cara do Piauí entrava em contato, para distribuir lá. O jornalismo também funcionava diferente. Me perdoe, mas hoje é uma merda. Todo jornal tinha pelo menos uma coluna sobre livros, o que fazia circular informações. Vejo tudo paralisado.

Por que parou?
Tivemos uma crise na estrutura. A quebradeira dos planos econômicos inviabilizou as pequenas e médias livrarias e distribuidoras que operavam, sei lá, em São José do Rio Preto. As grandes redes assassinaram esse modelo. Pedem o livro direto à editora. Não se interessam pelo que é publicado. Conseguem desconto. Ao receber um pedido, o gerente telefona para a editora, que manda um exemplar. Há um atravessador, que não forma rede, nem circulação. Um livro até pode ser vendido, mas nunca esteve numa prateleira. O lugar visível na estante está alugado. Ao contrário do que propõem, o esquema das megastores só funciona para elas. O mercado do livro no Brasil não existe mais. Sendo mais radical, acho que a literatura acabou também [risos]. As livraria trabalham com best-sellers e funcionam como um showroom. As grandes redes seguiram comprando umas às outras. Vão de arrasto e não propõem alternativas. Engordam com capital internacional. No passado, a José Olympio foi a Palmeira dos Índios (Alagoas) buscar o Graciliano Ramos. Isso é ser editor. A tese do André Schif frin é que daqui 10 ou 20 anos um pequeno grupo de editoras vai ser dona de tudo. Teremos uma ditadura do pensamento, impondo o que a gente tem de ler. No mais, a sociedade vive um momento de burrice absoluta. Vender livros para quem?

O que se pode afirmar sobre a pequena, deslocada e bem-sucedida Criar Edições?
Que os êxitos da Criar não foram um lance nosso. Não se tratava de uma sacada genial. Nos anos 1980 existia um espaço para o livro circular. Lançamos Cristovão Tezza, Valêncio Xavier, Wilson Bueno, Helena Kolody. Havia curiosidade por autores novos. Houve uma época em que o governo comprava para distribuir nas bibliotecas. O desempenho melhorava quando o livro era indicado para o vestibular. Um jornal da Brasiliense chegou a levantar as melhores editoras do país. A Criar ficou entre as dez primeiras. Recebíamos muitos originais, coisas malucas. Me arrependi de não ter guardado. 

Wilson Bueno, Paulo Leminski e Valêncio Xavier, por exemplo... Como foi?
Fui eu quem os procurou. Com o Bueno, foi uma conversa de bêbado. Tempos depois, apareceu na editora, com uma caixa de sapato nas mãos. “Roberto, está aqui meu livro”. A caixa guardava recortes dos textos que ele publicava no jornal Correio de Notícias, com ilustrações do Solda e do Rogério Dias [artistas visuais de Curitiba]. Tudo amarfanhado, uma confusão. Mandei para o Antônio Manuel dos Santos Silva, para que organizasse. Foi bacana. Bolero’s Bar teve uma boa repercussão. Do Leminski até hoje tenho as pastas com elástico que me deu. “Tá aqui o meu livro”, disse, que nem o Wilson Bueno. Deu um trabalho. Montamos os dois Ensaios crípticos. A ideia era dele — a parte teórica e a prática, uma bobagem. Quanto ao Valêncio, dizia para ele arrumar um livro e respondia que não sabia escrever [risos], por isso tinha inventado o negócio de colar figurinhas. Seu grande sonho era ser cineasta. Tinha dificuldade de concentração. Era muito agitado, vulcânico. Para ele, escrever era um saco. Mesmo assim, me telefonava de manhã, para contar: “Roberto, escrevi um conto bestial”. Era “O quarto da prostituta japonesa”. Outra ocasião, me disse que tinha produzido um livro sem palavras. Era Maciste no inferno, formado por figurinhas que montamos juntos e publicamos.

O Roberto editor se confunde com o Roberto escritor. Em termos, você foi a estrela da Criar Edições... 
Diria que tive títulos que encontraram bons leitores, a exemplo de Crítica da razão tupiniquim [que alcançou 14 edições] e O menino que descobriu o sol, ambos de minha autoria. A gente publicou quase 80 livros na primeira fase da Criar. Na segunda, ultrapassamos 30. Chegamos a ter oito funcionários. Havia pedidos. A editora possibilitou minha sobrevivência e me deu coisas boas. Fiz amizades. Conheci a Helena Kolody, o Jamil Snege, em geral avesso a editores. Mas houve o lado estranho — a fantasia de que o editor ganha fortunas, que sacaneia. Pode acontecer, mas não é regra. Outro mito é de que o editor privilegia seu grupo de amigos. Teve gente, de quem nunca tinha ouvido falar, com bronca de mim. Arrumei inimigos gratuitos. 

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Algum arrependimento de editor...
Não ter publicado o Manoel Carlos Karam. Ficamos amigos. Ao contrário dos paranistas, ele era afetuoso. Trocávamos e-mails engraçados. Um pouco antes de falecer, mandou um livro — Godot é uma árvore, formado por uma série de textos pequenos que escrevia no ônibus. Parecem haicais, aforismos. Pediu que eu publicasse. Não recusei, mas a gente estava fechando a Criar pela segunda vez, em 2007, depois de um rombo provocado por um empregado. Tenho o livro até hoje. Não sei o que fazer com ele.

Tua frase — “Curitiba precisa de alguém para amar”, sobre a Helena Kolody, virou um mantra. Permanece na tua boca? 
No meu ponto de vista maluco, falta generosidade a Curitiba. É o trágico desta cidade. Editar livros é uma indústria. Precisa ter um cara que cuide da contabilidade. Mas uma editora, em suma, trabalha para o outro, edita o outro, faz a carreira do outro, investe no talento do outro. Por mais que seja comercial e cruel, não se firma se não for atividade generosa, se não faz algo pela cultura, pelo autor, pelo livro. Nesse quesito, Curitiba não se sai bem.

Na próxima edição, entrevista com Jiro Takahasshi