Os bastidores da vida literária

A correspondência entre escritores é cada vez mais utilizada nos estudos literários e ajuda na compreensão de temas que aparecem no período em que narrativas e poemas foram produzidos


Marcio Renato dos Santos

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Mário de Andrade recebeu 7 mil cartas e fez da correspondência um meio para afirmar o modernismo brasileiro. Foto: Lasar Segall / Reprodução

Fernando Sabino e Otto Lara Resende. T.S Eliot e Ezra Pound. Rubem Braga e Vinicius de Moraes. Goethe e Schiller. Paulo Leminski e Régis Bonvicino. Clarice e Elisa Lispector. Todos os autores mencionados trocaram cartas. Alguns até com mais de um interlocutor. Mário de Andrade, por exemplo, se correspondeu com inúmeros amigos, de Câmara Cascudo a Tarsila do Amaral. E o conteúdo dessas correspondências adquire, cada vez mais, valor — inclusive para os estudos literários.

O professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Pedro Theobald afirma que, durante anos, as informações das correspondências entre escritores foram desprezadas pelos estudiosos — consideradas inúteis para o estudo da produção literária. “Acreditava-se que era adequado manter uma separação rígida entre o que a pessoa era e o que produzia. Hoje, no entanto, percebe- se que praticamente nada é desprezível, as informações mais ínfimas podem servir não só para documentar a biografia de um autor como também esclarecer o seu processo de criação, a gênese de sua obra”, diz.

Já a professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Diana Junkes Bueno Martha observa que não se deve ler uma obra em função da história de vida do artista. Mas, pondera a estudiosa, as cartas são um rico material tanto para a realização de pesquisas como para compreender a biografia dos escritores: “Por meio de cartas são revelados projetos da obra, reflexões sobre a literatura e a arte. A partir da interlocução entre escritores é possível, muitas vezes, compreender ideários estéticos de modo amplo.”

O professor da Universidade São Paulo (USP) Marcos Antonio de Moraes comenta que as cartas, principalmente a partir dos românticos, mostram que os autores começavam a ter consciência da figura do escritor na sociedade — a necessidade de ser reconhecido publicamente aparece, por exemplo, na correspondência entre Gonçalves Dias e Joaquim Manuel de Macedo.

Moraes destaca o esforço de Castro Alves em busca da consagração. Em 1868, o poeta pernambucano vai ao Rio de Janeiro, procura José de Alencar, para quem apresenta alguns de seus textos. Alencar publica carta aberta em um jornal e, em seguida, Machado de Assis também elogia publicamente Castro Alves. “A correspondência de Castro Alves mostra como ele se movimentou para conseguir divulgação. O poeta, como tantos autores, fazia muita política literária”, comenta Moraes.

Gigantismo epistolar 

Mário de Andrade recebeu 7 mil cartas, das quais Marcos Antonio de Moraes reuniu mais de duas mil, algumas com mais de 60 páginas. “A partir do modernismo, a carta deixa de ser, por exemplo, algo vazio ou um mero gesto de cordialidade”, afirma Moraes, que fez mestrado e doutorado sobre o assunto e atua no Instituto de Estudos Brasileiros na USP, onde está à frente de pesquisas sobre o acervo de escritores.

As cartas escritas pelo autor de Macunaíma, ressalta o pesquisador da USP, revelam dedicação e cuidado com a escrita. Na correspondência que enviou dia 26 de setembro de 1924 para Câmara Cascudo, Andrade discute algumas questões com o interlocutor, entre as quais a pertinência, ou não, de publicar crônicas em forma de livro: “Crônica é pra jornal. Livro é uma concepção mais inteiriça e completa. As suas crônicas ficaram muito bem num jornal. Em livro a maior parte delas perde 90% da graça e oportunidade.”

Em carta destinada à Tarsila do Amaral, com a data de 15 de novembro de 1923, Andrade faz restrições à amiga e aos colegas modernistas que, naquele contexto, estavam na Europa: “Vocês se parisianizaram na epiderme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma. […] Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata-virgem.”

Marcos Antonio de Moraes analisa que Mário de Andrade usou as cartas para, bem mais que estabelecer diálogo, criar e consolidar o projeto do modernismo. “A correspondência dele revela o esforço para afirmar uma geração. Mário de Andrade utilizou as cartas como uma forma de legitimar o modernismo”, comenta Moraes, que conquistou Prêmio Jabuti com os livros Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira (2000) e Câmara Cascudo e Mário de Andrade — cartas 1924- 1944 (2010).

Escreveu, é pra publicar

Moraes acredita que o interesse, contínuo e crescente, de pesquisadores e do público leitor pelo conteúdo das correspondências de escritores tem explicação: “Literatura é processo. O livro é o resultado final e as cartas revelam questões pouco conhecidas, como intenções, negociações e tensionamentos.”

Monteiro Lobato, o primeiro escritor brasileiro a publicar a própria correspondência, tinha noção de que haveria leitores para o diálogo escrito e, em um primeiro momento, privado entre autores. Em Barca de Gleyre (1944) estão reunidas algumas cartas que Lobato trocou com o amigo escritor Godofredo Rangel.

Na mensagem escrita dia 8 de julho de 1921, o autor do Sítio do pica-pau amarelo, e também editor, faz uma sugestão, comercial, ao interlocutor: “Rangel, a publicação dos teus contos virá melhorar a saída do romance, de modo que é mais comercial imprimi-los agora do que depois. E não te incomodes com a parte econômica do negócio — se dá ou não dá lucro para a casa. É coisa que não tem a mínima importância. O importante é que você vá se imprimindo e imprima-se todo — nem que o editor leve a breca.”

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As cartas que Paulo Leminski escreveu e enviou para Régis Bonvicino podem ser lidas como poemas. Foto: Dico Kramer

Os escritores, principalmente a partir da década de 1970, sabiam, com clareza, que escrever, e enviar, uma carta não é um gesto banal — o material tende a ficar para a posteridade. Se Ana Cristina Cesar confessou que ao produzir correspondência ela quase tinha de renunciar à própria literatura (apesar de a produção em prosa e poesia da autora flertar com o texto epistolar), Paulo Leminski elaborou cartas, as enviadas a Régis Bonvicino, que podem ser lidas como poemas.

Paulo Theobald, da PUCRS, diz que, em alguns casos, a carta acaba por se transformar em uma extensão do trabalho literário, pelo fato de o autor desenvolver em sua correspondência o mesmo estilo de sua ficção ou poesia. “Às vezes, aparecem nas correspondências as mesmas imagens presentes nos textos publicados. Um exemplo disso é o Caio Fernando Abreu. Estudos estão revelando esse fato, recorrência de imagens, em suas cartas e crônicas”, afirma Theobald.

E-mail, Face & blog

Pesquisas apontam — e é preciso ressaltar — que a onipresença das redes sociais no cotidiano estimulou a comunicação escrita entre as pessoas. “Ainda não conheço estudos sobre como isso afetou a correspondência entre os escritores. O que podemos afirmar é que ela [a troca de informação entre autores] continua, mas não ficou imune ao processo: tornou-se mais fácil corrigir as próprias cartas sem deixar vestígios, armazenar cópias, mas certamente as cartas, agora e-mails, também se tornaram mais fragmentárias”, afirma Theobald.

O pesquisador da PUCRS acrescenta que, aparentemente, os escritores em atividade antes do advento da internet, por levarem mais tempo na elaboração de suas cartas, eram mais cuidadosos quanto ao estilo: “Isso é verdade até certo ponto. Para escrever bem, até mesmo comunicar-se — pois essa é a principal função da carta, do e-mail — é preciso despender um certo tempo no planejamento do que será escrito.”

Diana Junkes Bueno Martha, da UFSCar, tem a impressão de que a internet cria meios mais ágeis de comunicação. “O e-mail permite, ainda, a manutenção de certo estilo, o que poderia levar a pensar que as cartas continuam sendo trocadas, mas com um suporte diferente”, diz. Já o Facebook e outros modos de comunicação, como, por exemplo, o Skype, de acordo com Diana, tornam a comunicação ainda mais ágil e exigem brevidade.

“Ambos [Facebook e Skype] permitem a comunicação síncrona, como as troca de mensagens ou mesmo as chamadas com vídeo. Não creio, porém, que haja prejuízo em termos dos conteúdos das mensagens. Penso que o teor das informações, a qualidade do texto e os vínculos entre os correspondentes se mantém de modo muito parecido, sobretudo no e-mail. É importante sublinhar que o diálogo permanece, sofrendo, naturalmente, as transformações impostas pelos novos modos de comunicação”, afirma a professora da UFSCar.

       Exigências para editar cartas em livro

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Dia 14 de agosto de 1931, Mário de Andrade enviou uma carta para Câmara Cascudo. Começava da seguinte maneira: “Cascudinho, bom dia. Acabo de devorar o tudo mandado, carta, charuto de Álvares e mais o Ensaio. Este é simplesmente magnífico e fico a me lamber de gratidão.” A correspondência traz outros comentários.

Em 2010, Marcos Antonio de Moraes publicou Câmara Cascudo e Mário de Andrade — cartas 1924-1944, livro que traz a mensagem mencionada anteriormente. Mas, além do texto escrito por Andrade, Moraes também incluiu, ao final da carta, algumas informações: “Carta datada: ‘S.Paulo, 14-VIII-31’; datiloscrito, fita preta; autógrafo a tinta preta; papel jornal; 1 folha; 32,2 X 21,9 cm; rasgamento nas bordas esquerda e direita; rasgamento por oxidação de tinta; furo parte superior.”

Todas as correspondências reunidas na obra trazem informações similares.

“É importante fazer isso, descrever a carta, para que o leitor possa, de fato, ler a correspondência. Se havia um rabisco, é preciso contar”, afirma Moraes. “Trata-se de um esforço para proporcionar o máximo de informações sobre como aquela troca de mensagem aconteceu”, completa.

O professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Alvaro Santos Simões Junior observa que, ao publicar um livro com a correspondência entre dois autores, é necessário entrar em contato com os herdeiros de quem enviou e de quem recebeu as cartas. “Além disso, se houver outras pessoas citadas, elas, ou os seus representantes, deverão ser consultadas antes da publicação”, diz Simões Jumior.

Todo escritor escreve e envia cartas ?

A convite do Cândido, Diana Junkes Bueno Martha, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), responde a pergunta: escrever, e enviar carta, é prática recorrente entre escritores?

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“Não sei se poderíamos dizer que enviar e receber cartas é algo inerente à condição do escritor, mas certamente podemos dizer que são gestos comuns entre muitos escritores e que as cartas constituem parte importante de sua produção, seja por revelarem opções estéticas, preocupações com os caminhos da arte e da própria atividade do escritor, como aspectos de suas biografias.

Praticamente todos os escritores trocaram correspondência, dos mais renomados aos menos conhecidos. As correspondências de Jorge Amado, Clarice Lispector (foto), Guimarães Rosa, Fernando Sabino, por exemplo, são amplamente estudadas. As cartas eram dirigidas para outros escritores, artistas, intelectuais, ou mesmo familiares.

As cartas entre escritores são comuns em toda a literatura. E remontam muito tempo atrás. Padre Antônio Vieira, foi autor de mais de 500 cartas. São importantes as cartas de Cláudio Manuel da Costa, dos escritores românticos e de Machado de Assis. O teor, entretanto, varia. As discussões estéticas são comuns a partir do romantismo, quando a própria ideia da concepção artística como trabalho criativo em detrimento de uma concepção da arte como inspiração passa a ganhar relevância — essa discussão, por meio de cartas, culmina entre os modernistas.”