O personagem em tempos de fragmentação

Diferentemente do que acontecia na literatura até o século XIX, onde havia espaço para heróis e ações grandiosas, atualmente, devido a “configurações contemporâneas da subjetividade”, os personagens aparecem rarefeitos e até mesmo anônimos


Marcio Renato dos Santos

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O leitor pode até não ter lido Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, mas tem alguma ideia de quem é o Cavaleiro da Triste Figura, da mesma maneira que não poucos interessados em literatura sabem, mesmo sem a experiência da leitura da obra, da existência de Capitu, personagem do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, e do Conselheiro Acácio, criado por Eça de Queiroz.

Quixote, Capitu e Conselheiro Acácio são figuras fortes e complexas que estão presentes no imaginário cultural ao lado de outros personagens conhecidos, entre os quais o Bartleby, Godot, Hamlet, Leopold Bloom, Macunaíma, Nelsinho e Tom Sawyer (ver mais entre as páginas 28 e 37).

E no contexto recente? Que personagens contemporâneos podem figurar ao lado de Quixote, Capitu e Conselheiro Acácio?

A professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Ana Cláudia Viegas afirma que a ausência de personagens mais delineados ou a rarefação dessas figuras nos textos atuais diz respeito a um sintoma das “configurações contemporâneas da subjetividade”. E ela não está sozinha nessa percepção.

Mirhiane Mendes de Abreu, mestre e doutora em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e professora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), observa que, antes de começar qualquer discussão sobre a literatura contemporânea, é fundamental abandonar certos paradigmas, entre eles, a ideia de “fortes personagens”. 

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“Nós assistimos hoje a um excesso da narrativa experimental e, ao lado dela, uma maneira diferente de experimentar o tempo e as vivências. Por essa razão, a maneira como homens e mulheres experimentam o mundo não se dá de forma linear e do modo de ‘grandes heróis’, como estávamos acostumados com a literatura enraizada no século XIX”, explica Mirhiane.

A professora da Unifesp acrescenta que, se no século XIX a literatura construía personagens representativos simbólicos do mundo, hoje não há nem representatividade, nem questionamento do princípio da representação — daí a ausência de um personagem- -chave. “Em síntese, não é possível falar em ‘grandes personagens’ na literatura contemporânea porque esta não é a proposta do nosso tempo. Há escritores que ficcionalizam a si próprios e outros que constroem novos horizontes de discussão, como a cidade. O fato é que não há, como característica, uma literatura de construção psicológica densa. E isso é possível, tanto que é isso que estamos constatando. Não estamos aqui discutindo se essa ausência é boa ou ruim, mas constatando o fato de que uma expressão identitária não é o foco, por exemplo, da literatura brasileira hoje em dia”, analisa a estudiosa.


OBRA E ADJETIVAÇÃO

Diante da ausência de personagens fortes na literatura contemporânea, surge uma questão: é possível haver literatura de qualidade sem personagens fortes e complexos? O professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) Audemaro Taranto diz que não. “É possível fazer literatura sem personagens fortes, mas é preciso reparar que, neste caso, trata-se de má literatura”, afirma Taranto, completando que um personagem não é uma entidade que existe sozinha, mas inteiramente vinculada à uma obra: “Quando o leitor se lembra de um personagem ele se lembra também da trama em que transita.” O professor do programa de Pós- -Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Anco Tenório Vieira acrescenta que personagens marcantes da literatura são aqueles que terminaram por se transformar em adjetivos. “Daí porque nos referimos a uma dada personagem como quixotesca, macunaímica e acaciana [em alusão, respectivamente, aos personagens Dom Quixote, Macunaíma e Conselheiro Acácio]. Algumas vezes é o espírito da obra de um dado autor que se torna adjetivo: é o caso de batizarmos uma dada situação como dantesca, machadiana, proustiana ou kafkiana [em referência à obra dos autores Dante Alighieri, Machado de Assis, Marcel Proust e Franz Kafka]”, afirma Vieira.

O especialista da UFPE diz não se lembrar de nenhuma obra, seja ela brasileira ou estrangeira, nem de nenhuma personagem que tenha se inscrito no nosso imaginário nos últimos 20 ou 30 anos, e que tenha deixado de ser apenas e somente um personagem literário para ter se transformado em um adjetivo, em um traço de caráter que defina uma pessoa ou um certo fenômeno, da natureza ou humano. “Sempre é bom considerar que a distância temporal também é um fator importante para a sedimentação desses nomes no imaginário popular”, pondera Ana Cláudia Viegas, professora da UERJ. 


CONDIÇÃO CONTEMPORÂNEA

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O escritor Luiz Antonio de Assis Brasil tem convicção de que hoje, período no qual há, sem exagero, uma enxurrada de obras publicadas diariamente, existem personagens consistentes. “Nesse mare magnum literário contemporâneo há, mundialmente, centenas de obras-primas em circulação, e milhares de personagens tão inesquecíveis como D. Quixote, mas que nunca chegarão a atingir a todo o público leitor. Um fenômeno de época, no qual, aliás, não vejo nenhum problema”, diz Assis Brasil, idealizador de uma Oficina de Criação Literária que funciona há mais de duas décadas na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

O fato de muitos personagens criados por autores contemporâneos, brasileiros e de outros países, serem, por exemplo, praticamente anônimos não é um problema, pelo menos na interpretação do gaúcho Assis Brasil: “Grande parte das personagens não são nominadas, diferentemente do que acontecia antes. Veja o exemplo de Tolstói, que dava nome até ao cocheiro que aparecia uma única vez. Mas para além disso, a inominação, as personagens executam ações aparentemente triviais: é o gari que varre a rua, o motoboy numa fila de banco, é a professora que vara madrugadas corrigindo provas, é o soldado que tira guarda ao sol. Enfim, não há ações ‘grandiosas’, ao estilo antigo; se as houvesse, o leitor desconfiaria.”

Anco Tenório Vieira, professor da UFPE, acompanha a produção contemporânea e percebe que, por exemplo, os romances são — tecnicamente — muito bem escritos. “Mas, ao fim e ao cabo, quando lemos e fechamos a sua última página, ficamos com uma sensação de vazio. Parece que fomos do nada a lugar nenhum”, afirma. Vieira tem a impressão de que os prosadores contemporâneos dominam a linguagem literária, mas, ao mesmo tempo, eles não realizam reflexões verticalizantes sobre o nosso tempo. “Assim, os escritores atuais têm pouco ou nada a dizer, ou revelar, sobre o nosso tempo”, diz.

O estudioso da UFPE cita duas exceções brasileiras: os romances O filho eterno, de Cristovão Tezza, e Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum. A obra de Tezza merece atenção, explica Vieira, por que mostra a luta de um pai em aceitar o filho que, ao nascer, contraria todas as suas expectativas e projeções. Já o livro de Hatoum, no entendimento do especialista, se destaca por problematizar a nossa condição contemporânea: que é a de sermos uns desterritorializados. “Apesar de serem dois temas aparentemente recorrentes em nossa literatura contemporânea, ambos autores nos surpreendem pelas reflexões e pela verticalidade psicológica com que constroem os seus romances e os seus personagens”, argumenta Vieira. 


MULTIPLICIDADE DO HOJE

É a partir da linguagem, lembra o professor da UFPE, que é possível elaborar personagens psicologicamente fortes e complexos: “É por meio da forma irônica que a narrativa de Dom Casmurro revela psicologicamente o personagem de Bentinho. O permanente ruído entre o que é dito e a coisa que é objeto desse dizer revela um homem que tenta provar para si e para o seu leitor que ele foi traído e que a sua ex-amada mereceu o castigo que ele lhe impôs. Fora dessa linguagem tensionada e carregada de significados o que resta é apenas um títere e não um personagem psicologicamente forte e complexo.” 

Se é pela linguagem que a literatura e, por consequência, os personagens existem, Mirhiane Mendes de Abreu, da Unifesp, afirma que, no presente, o personagem é diferente, do que foi no passado — afinal, agora, é um tempo que se revela a partir de outras linguagens e experimentações. “Não quero advogar a favor do fim das personagens. O que gostaria de deixar salientado é que a compreensão da contemporaneidade passa pelo afastamento dos paradigmas tradicionais. Se não abrirmos mão das formas tradicionais de narrativa, não entenderemos o que está ocorrendo hoje. Afinal, se são outros os padrões de pensamento, outras são as formas de narrar”, diz Mirhiane, que completa: “Se não invertermos a expectativa tradicional de representação, ficaremos sempre frustrados em face da multiplicidade do hoje.”