Novela | Juliana Frank

    Ilustração: Guazzelli
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To sempre de quatro, mãe. mas é alcoólico, o amor. foda-se a vida vivida de quatro. eu dou o cu pro Andreas, de vestido airado. é um vestido preto e com rendas vermelhas diáfanas. eu mudo de amor como de espartilho (pra distrair o coração). mas com o Andreas é diferente, com ele o jogo é jogado. e o amor é horrível, mãe. ele apertou meu pescoço e esfregou minha cara no lençol sujo de porra e sangue e... e eu nem lembro mais como conheci esse. por isso eu acho que tento contar. eu salvei esse cara sem salvação, porque dois perdidos não se perdem. salvei dos ucranianos, lá no navio. eu envenenei os inimigos de um homem só para fugir com ele. eram tantos homens, foram, e nunca me importei a salvar ninguém. hoje eu me sento e rezo muito, caladinha no genuflexório. rezo mesmo. por uma mudança. eu peço a Deus. diante da fogueira elizabetana, com minhas joias quebradas. saí do navio e teve um naufrágio. na verdade, eu nunca poderia salvar ninguém do afogamento. ele teria morrido, o Andreas. eu teria escapado, há sempre uma saída de emergência para mim, como se um anjo, um demônio, ou o inferno inteiro vibrassem por mim. mas teve o naufrágio do bote. algo afundou muito, eu nadei nadei e as águas borbulhavam no meu pulmão manchado de café e cigarro. só sei que, quando acordei, estava de quatro de novo, de vestido airado, dando meu cu pro único homem que eu salvei e que apertou meu pescoço. mãe, eu ainda vou contar essa história. essa história começou lá onde os começos se embaralham mais que bijuteria barata. só vi que ele estava sentado no convés do navio, se fodendo como eu mesma poderia me foder, já que venho me fodendo a qualquer custo há priscas eras. estou muito emocionada, mãe. devo estar na argentina agora. ele me perguntou o por que de eu ter salvado sua vida condenada duas vezes. respirei bem fundo um cigarro. passarinho que cala sabe o que pia. vou ficando por aqui. comprar limão e cerveja e chutar mais uns dias, ver o que os malditos deuses reservam para mim. em algum momento eu volto, eu sou aquela que sempre volta, mãe. pode apostar. só eu vou saber como orquestrar essa desgraça. eu estou apenas me esquentando, o corpo todo quente e doendo. desde que saí do navio, tenho graves infecções. o corpo nervoso e desesperado pra sair. então eu dou umas voltas mas acabo sempre voltando. eu sou uma sommelier, não dá pra ficar sem beber. mas foi horrível como eu entrei no crack. acho que um dia eu cheguei na pensão horrenda depois de uma longa caminhada, era lá onde eu me escondia com o Andreas e ele não estava mais. nem um bilhete, nada que enganasse meu coração desbotado já, desde que eu descobri que ele não me amaria. não se casaria comigo nem por livre e espontânea macumba. estava apenas descansando da sua vida arriscada, mas descansando, dormia 20 das 24 horas do dia, por isso tinha uma aparência melhor que a dos gatos. estava apenas dormindo comigo e me fodendo nas horas vagas. agora ele tomou fôlego e ja era hora de voltar a trabalhar com dinheiro e outras perversidades, já estava mais do que na hora de me deixar. e eu fiquei. nada de ostras tailandesas, vinhos portentos ou navios para mim. eu afundaria todos os navios. então, eu até fiquei com saudade. mas essa palavra não cabe agora onde não existe lugar nem para palavras. onde sem você? a menina-bala brotou e em menos de um dia sequestrou o coração tarja preta do único homem que eu pretendia ter. logo aquela piniqueira de pernas flageladas. foi a última notícia que tive do Andreas, que ele foi embora com a menina que vendia chicletes macilentos. não sei por que, ou sei, quando me olho no espelho e sempre tem alguma coisa errada comigo, uma franja desarrumada, que eu tento, inutilmente, arranjar com uma escova, e vou escavando e enrolando na coisa, vou tecendo, como se aquilo pudesse reordenar minha vida, refazer minha cara desgraçada no álcool e no vício, minha cara de anos de ressaca e amores perdidos. e o jeito que ele me olhava, como se eu ja não tivesse mais jeito. tudo acabado, preciso dormir um tanto, mesmo tendo justamente acordado agora, há poucas horas, horas demais por hoje. São Paulo e as ruas cinzeiras. não dá mais. quase perco a meada dos fios. dos cabelos. tão grandes antes do vício. e caem. cairiam de qualquer forma, de aids, de estresse, de tédio. cairiam. mas o vício. o crack começa nas ruas, onde tudo que vale a pena começa. no dia em que as esperanças no acaso, porque só há esperança no acaso, se consomem. por que as minhas não? eram ruas escuras, como eu desejava, há muito tempo, desde que aterrei num navio, desde que o tempo passou e eu tive um emprego que eu já procurei com medo de encontrar. agora eu perdi tudo isso, e as ruas têm cheiro de pele rançosa, como as cadeias. eu acendo um cigarro de crack num dedo, o marlboro no outro, o mal de ouro. meus dedos amarelados e rançosos. talvez eu não consiga mais ter um trabalho de gente. às vezes sonho que queimo joias dentro do meu cachimbo, queimo o que tem, duas ou três pedras. mas eu jamais teria um emprego, uma jaula, uma manhã para me enternecer, um amor, uma mãe que me desse travesseiro. estou expulsa da família e de todo o gênero humano, finalmente. invento movimentos ferinos, olhares fortes de onça enquanto caminho pela cracolândia. mas não existo mais, invisível. eu acendo mais um cigarro de crack e ele me apaga, eu tenho certeza, ele me apaga. e lá se foi meu brilho. eu tenho dinheiro para pagar um quarto, imundície. foi o Andreas que mandou a grana, humilhação. bom, está tudo como sempre esteve, por um fio. então eu me esqueço da vida pregressa, dos meus desejos irresolutos com o Andreas, da mãe que não que eu nunca tive, que nunca teceu caracóis em forma de cachecol para que eu pudesse suportar a pobreza da vida num inverno rigoroso, mas eu nunca quis dizer isso, isso tudo não é culpa dela. é culpa minha, mãe, se estou sempre nua não tem telhado, é culpa minha essa chuva, essa descalça sem fichas ligando do orelhão, essa uma aí que não tem telhado. mas olha as pessoas. elas estão por aí, se refazendo, progredindo, parafernando. e se reproduzem. eu só acendo e puxo. olho as rugas na minha cara se por acaso dou de cara com espelhos, é inacreditável as fendas. e essas criaturas que às vezes nem sei por qual razão estão aqui. tanta gente na salinha de estar, ainda. mas vamos ver quem chegou. e ignorar. me concentrar na minha própria desgraça. deixe o espetáculo da miséria dos outros em paz, Jazz Jolie. não seja, ela me disse, não, mãe, não serei. não se importe em existir. mas, mãe, eu queria ser este. posso ser este estúpido isqueiro amarelo? mas tem amor, como tudo que estraga essa vida. a vida se estraga, invariavelmente. posso ver pelas minhas veias azuis e saltadas demais para quem já quis morrer. saltadas demais para essas agulhas. eu passo e vou passando pelas ruas, fumando o que der e o que me dão. e assim minto que estou bem. que vou melhorar. assim engano a mim mesma, e a lua, que sempre soube a inocente que eu sou.


JULIANA FRANK nasceu em São Paulo (SP), em 1985. Roteirista e escritora, lançou os livros Uísque e Vergonha (2016), Meu Coração de Pedra-Pomes (2013), Cabeça de Pimpinela (2013) e Quenga de Plástico (2011). O trecho publicado pelo Cândido faz parte da novela inédita Cadernos de Viagem da Musa da Cracolândia