Narrativas | Harini Kanesiro

Nada de me dá alívio

[GYMNOPÉDIE Nº 1] 
O rumor da agulha formiga nos instantes mudos que antecipam o início da música. Quando ela principia, o crepitar acompanha as teclas do piano, lent et douloureux — andamento avesso do Allegretto, onde a vitalidade beira a indiscrição.

A melodia é melancólica, feito os sons dos grãos de areia embaixo dos cascos de um cavalo moribundo. Em poucas horas, os cupins, na histeria da luz, começarão a se debater aflitos no hall de entrada. Os que não alcançarem a lâmpada pelas frestas da cúpula, se chocarão uns com os outros, kamikazes inofensivos, até aterrissarem nas nossas cabeças ou ombros. No final do verão, de todo modo, o plafon estará repleto de cadáveres amontoados.

[TRAJETO]
Anda por aí como uma ferida aberta, os olhos tão transparentes que assustam. Alguns caminhos têm dimensão de suspiro, o conteúdo delicado tem sua razão de ser. Mas continua confundindo o querer-algo-delicado com o não-querer-absolutamente-nada.

[SOBRE LITERATURA, PARA LATUF MONKTOY, NUM FINAL DE TARDE BANAL]
Há um poeta, Latuf, que diz que a poesia não passa de evidência da vida. Concordo com ele: literatura não é sublimação. É penetração. Não é um jeito de se elevar, mas de cravar os pés na vida — a experiência humana é oposta a dos vegetais: terminamos no solo, as raízes são o ponto de chegada.

Partir do que existe, do real, do papel e da tinta, mesmo que papel e tinta sejam tão frágeis quanto qualquer outra coisa que existe.

Deito-me na grama do parque num final de tarde banal, quando o silêncio é a instância soberana que começa a preparar a renovação da manhã. A vida que resvala no meu corpo é úmida e talvez eu tenha chorado, Latuf, talvez, é possível que sim, porque tanto a flor como a erva-daninha me iniciam na cultura da vazão.

Escrever: a tentativa de reconhecer a dignidade do momento na grama, sabendo que ele é mais do que a grama em si, mas também não é.

O poente me educa sobre a morte. A literatura recolhe o poente.

[OUTRO HOMEM SÓ]
Às vezes, eu me esqueço de andar e apenas me movo, feito uma formiga afogada boiando na superfície de uma cuia de barro, a água brilhando. Noutras, esqueço de me mover. Não sei bem o que acontece depois, não sei o que faria se achasse o caminho que me leva até mim.

[OCASO 2]
O tempo é o que acontece na ausência do infinito.

[SOBRE OS DIAS NA FERROVIA]
Minha primeira lembrança mais nítida é a imagem de meu pai, suas mãos calejadas encaixando cada pedaço de trilho, martelando e prosseguindo de modo tão mecânico que o suor já nem sequer se prestava a ensopá-lo — evidência de que seu corpo respondia cada vez mais apaticamente ao mundo para se ajustar ao estado de sua alma.

Não saberia dizer com exatidão como ele era antes disso, sinto apenas, intuitivamente, que ele já havia sido diferente. Nesse curta-metragem que roda na minha cabeça num dia e noutro sem que eu tenha escolha de interrompê-lo, parecia ter cinquenta anos ou mais. O sol batia sobre sua cabeça e os raios incidiam penosamente na face, depositando um peso descomunal sobre suas pálpebras, quase que completamente fechadas. Ele olhava para mim, não de vez em quando, como se os momentos fossem espontâneos, mas nos intervalos específicos entre o momento em que pegava o pedaço de aço e o encaixava sobre a dormente. E sempre que o homem de quepe apitava, um chefe que mudava de rosto conforme o tempo, sem que nós soubéssemos de onde ele vinha e para onde o outro havia ido, me perguntava como eu estava indo, ao que eu respondia com um menear de cabeça leve e vertical, de criança que já aprendeu a imitar certos comportamentos adultos.

[QUERIDO D.]
Devo me mudar no começo de agosto, coisa que está me empolgando e devastando em igual medida. Se não me engano na referência, há um momento no Afinidades eletivas em que Goethe escreve que há ocasiões nas quais o temor e a esperança se confundem, mutuamente se anulam e se perdem em obscura insensibilidade. Não me sinto insensível à mudança — o oposto disso, na verdade. Mas a mistura de temor e esperança têm me levado à exaustão, como se eu não tivesse corpo suficiente para sentir tudo o que sinto, e, como resultado, tenho o impulso de fugir — seja lá o que isso signifique. 

Quarta-feira, ao organizar meus livros, acabei trombando com o Cem dias entre céu e mar, do Amyr Klink, e o L’usage du monde, do Nicolas Bouvier. Fiquei desejando não ser quem sou, quem tenho sido há tanto tempo, mas qualquer coisa diferente, alguém que constrói um barco e parte, alguém que se envereda por rotas em que nômades encontram moradas intermitentes, alguém capaz de se permitir extraviar por incertezas sem o coração tão pesado. Como pesa, D. Sinto o músculo repuxado, contorcido. Nada me dá alívio. 


Harini Kanesiro nasceu em São Paulo (SP), tem 22 anos e é formada em História. Cursa o mestrado em Escrita Criativa na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).