Memória literária | Murilo Rubião

É fantástico!

Com apenas 33 contos, Murilo Rubião — considerado o pioneiro da literatura fantástica no Brasil — deixou um legado literário conhecido no circuito acadêmico e por escritores, mas que merece ser mais divulgado, principalmente em 2016, ano de centenário do seu nascimento

Marcio Renato dos Santos

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Murilo Rubião viveu a maior parte de sua vida em Belo Horizonte, trabalhou no serviço público, não casou e, no tempo livre, se dedicou a escrever contos.

Murilo Rubião viveu a maior parte de sua vida em Belo Horizonte, trabalhou no serviço público, não casou e, no
tempo livre, se dedicou a escrever contos.

O nome de Murilo Rubião aparece ao lado de outros autores brasileiros considerados mestres da narrativa breve — dos clássicos Machado de Assis, Guimarães Rosa e Marques Rebelo, aos contemporâneos Dalton Trevisan, Sérgio Sant’Anna, Antonio Carlos Viana, Sergio Faraco e Luiz Vilela. E o escritor mineiro entrou para o cânone da literatura brasileira escrevendo apenas 33 contos. 

Mas o autor quase não é — atualmente — citado em jornais e revistas, apesar de que, de acordo com a professora da Universidade de Brasília (UnB) Ana Laura dos Reis Corrêa, a obra de Rubião é — desde a década de 1970 — continuamente estudada. “Ele é conhecido no meio acadêmico”, diz Ana Laura. 

O professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Charles Kiefer afirma que Rubião não tem a obra tão divulgada, entre outros motivos, pelo fato de ter escrito apenas contos, gênero com menos relevância comercial do que o romance, mas também devido ao alto nível de sofisticação e opacidade de sua prosa. 

“Em literatura, vale uma fórmula que sempre expresso em sala de aula, na PUC ou em minhas oficinas literárias particulares: quanto melhor o texto, menos leitores terá. Vivemos uma nova barbárie, em que o texto raso e insignificante tem a admiração de uma multidão de tolos, enquanto que o texto denso e consistente é lido por uma pequena casta de leitores com capacidade de sentir prazer com a literatura de qualidade”, comenta Kiefer, autor, entre outros, da novela O pêndulo do relógio (1984) e do livro de contos Um outro olhar (1992), obras que conquistaram o Prêmio Jabuti.

Agora em 2016, algumas iniciativas, sobretudo em Minas Gerais, celebram o centenário de nascimento do autor, dia 1º de junho. Ele foi homenageado na Bienal do Livro de Minas, realizada de 15 a 24 de abril em Belo Horizonte. Universidades mineiras devem promover debates a respeito do legado do escritor que publicou os livros O ex-mágico (1947), A estrela vermelha (1953), Os dragões e outros contos (1965), O pirotécnico Zacarias (1974), O convidado (1974), A casa do girassol vermelho (1978) e O homem do boné cinzento (1990). 

Mundo estranho 
O professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) Audemaro Taranto afirma que Murilo Rubião é o único autor brasileiro que elaborou toda a sua obra literária dentro do fantástico, do absurdo, do surreal. E, de fato, basta ler ao acaso qualquer conto dele para se deparar com esse estranhamento que Taranto e outros definem como fantástico. 

Em “O pirotécnico Zacarias”, o leitor não tem certeza se o protagonista está vivo ou morto. “Teleco, o coelhinho” traz um personagem que é um animal falante capaz de se transformar em coelho, girafa ou canguru. Já em “A armadilha”, Alexandre — inesperadamente — torna-se prisioneiro de um local de onde não conseguirá sair, nem em “um ano, dez, cem ou mil anos.” 

O professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Wander Melo Miranda também acredita que é possível classificar como fantásticos os contos de Murilo Rubião. “Afinal, fantástico é tudo aquilo que não existe na realidade, que segue uma lógica diferente daquela que estamos acostumados no dia a dia, que causa surpresa e estranhamento”, explica. 

Mas, Miranda faz questão de salientar, a ficção do contista mineiro é diferente, por exemplo, dos contos fantásticos europeus do século XIX ou da produção literária dos escritores do chamado boom latino-americano, como Gabriel García Marquéz, Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes: “Os contos de Rubião têm uma dicção própria, entre a melancolia e um sentimento forte de solidão. Seus personagens estão sempre a um passo do precipício, num intervalo de uma realidade a outra, à margem da história. Estão mais para Machado de Assis, herdeiros que são do delírio de Brás Cubas.” 

Já Charles Kiefer, da PUCRS, diz que Rubião é o verdadeiro inventor do realismo mágico na América Latina, antes mesmo de Jorges Luis Borges e Julio Cortázar. “Eu chamaria de realismo mágico e não de fantástico. Rubião cria uma outra realidade, que não é deste mundo, mas que respeita completamente a verossimilhança interna, como propôs Aristóteles”, argumenta. 

Sobretudo bíblico 
Os 33 contos de Rubião têm epígrafes bíblicas, com exceção de “Memórias do contabilista Pedro Inácio” que, além de uma frase do livro de Jeremias, também traz a citação de um texto de Machado de Assis. Audemaro Taranto analisa que as epígrafes da Bíblia não esclarecem tanto, mas dão o tom dos contos, “que vão para o trágico”. 

“O lodo” começa com a seguinte frase bíblica: “Tu abriste caminho aos teus cavalos no mar, através do lodo que se acha no fundo das grandes águas.” No conto, o personagem Galateu é diagnosticado com um “imenso lodaçal” interior.

Levando em consideração o comentário de Taranto, para quem as epígrafes dão o tom dos contos, em “O lodo” a citação inicial não apenas sugere o tema como também o rumo — trágico — da narrativa, uma vez que o personagem central recusa o tratamento, mas desconfia que talvez tenha mesmo um problema sério. 

Cariba, o protagonista de “A cidade”, chega — por acaso — em um povoado, é condenado, e preso, pelos moradores do local por ser “a única pessoa que faz perguntas” em um território onde ninguém questiona nada. A epígrafe do conto, uma frase do livro de Eclesiastes, de alguma maneira, antecipa o enredo — e confirma a tese de Taranto: “O trabalho dos insensatos afligirá aqueles que não sabem ir à cidade.” 

Em entrevista a Walter Sebastião, publicada dia 3 de junho de 1988 no jornal Tribuna de Minas, Rubião admitiu ler os textos bíblicos: “Toda vez que estou escrevendo um conto, procuro uma epígrafe na Bíblia e encontro, com facilidade, textos que quase explicam o conto. Eu não tenho uma preocupação com um valor moral da história. Deixo sempre as coisas bem em aberto. O fantástico tem sempre uma característica de ser uma crítica social.” 

Anteriormente, em uma entrevista concedida à professora norte-americana Elizabeth Lowe, publicada na revista Escrita, em 1979, Rubião disse que, em algumas ocasiões, escrevia um conto sem pensar na epígrafe: “Quando chego ao seu final eu vou à Bíblia e acho-a lá, exatamente.” Em seguida, acrescentou que: “às vezes, pensando em fazer determinado conto, encontro imediatamente a epígrafe correspondente na Bíblia. Isso se deve à leitura excessiva, ou à releitura. Eu jamais sei se o meu conto começa ou acaba na epígrafe.”

Machado e Kafka 
Wander Melo Miranda observa que “Memórias do contabilista Pedro Inácio”, único conto de Rubião com duas epígrafes, uma da Bíblia e outra de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, evidencia “implicitamente” a influência do chamado Bruxo do Cosme Velho na ficção do prosador mineiro. A frase pinçada do romance de Machado é: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis.” E o conto, em alguma medida, está sugerido, anunciado e resumido na frase do autor de Dom Casmurro. “A epígrafe de Machado dá um tom humorístico em ‘Memórias do contabilista Pedro Inácio’”, diz Miranda. 

Ana Laura dos Reis Corrêa lembra que as primeiras críticas apontaram para o possível impacto da obra de Franz Kafka na literatura de Rubião. “Na realidade, Machado de Assis, mais do que Kafka, é um dos alicerces do projeto literário de Rubião”, afirma Ana Laura, acrescentando que o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas deixou “elementos latentes” do fantástico na literatura brasileira, “posteriormente desenvolvidos pelo contista de Minas Gerais”. 

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A obra de Murilo Rubião já foi adaptada para o cinema e levada aos palcos. Esta imagem se refere a cena de uma peça O amor e outros estranhos rumores, dirigida por Yara de Novaes, a partir de 3 contos do autor, com Débora Falabella, Maurício de Barros, Rodolfo Vaz e Priscila Jorge no elenco.

A obra de Murilo Rubião já foi adaptada para o cinema e levada aos palcos. 
Esta imagem se refere a cena de uma peça O amor e outros estranhos rumores,
dirigida por Yara de Novaes, a partir de 3 contos do autor, com Débora Falabella,
Maurício de Barros, Rodolfo Vaz e Priscila Jorge no elenco.

Em relação a Kafka, Rubião declarou, mais de uma vez, que conheceu a obra do célebre escritor tcheco anos depois de ter publicado o seu primeiro livro, O ex-mágico (1947). Em entrevista a Alexandre Marino, publicada no Correio Braziliense, dia 27 de agosto de 1989, Rubião comentou o assunto: “No início minha literatura foi comparada com a de Kafka. De fato minha literatura vem nessa linha. Mas se você observar para autores anteriores, verá que outros influenciaram Kafka, e mesmo que não tenham influenciado, usaram linguagem parecida. Na verdade, Kafka não inovou nada. Essa coisa do real transformar- -se em irreal já existia nos contos de fadas. Como as crianças são mais puras, sempre aceitaram isso tranquilamente. A metamorfose está aí, está na mitologia grega. Kafka pode ter tido essas influências, e também do Antigo Testamento, que é leitura obrigatória dos judeus. E também de outros escritores da admiração dele, como Edgar Allan Poe, que é um precursor do fantástico, como outros autores, numerosos, do século XIX.” 

Domínio do conto 
Botão-de-Rosa. Jadon. Aglaia. Zaragota. Gérion. Epidólia. Petúnia. Esses são alguns dos nomes das personagens dos contos de Rubião. Wander Melo Miranda analisa que os nomes dialogam com o universo misterioso da ficção do escritor: “São muito sugestivos, de ressonâncias expressivas inesperadas: cada um é em si mesmo um núcleo de significados, um microrrelato.” 

Ana Laura dos Reis Corrêa afirma que não é possível determinar como o autor elaborou o nomes dos personagens, que podem ter surgido em sonhos ou mesmo a partir da recriação de personagens bíblicos ou de mitologias. O importante, de acordo com a pesquisadora, é o efeito que eles proporcionam. “Epidólia, por exemplo, concentra elementos insólitos e deixa o leitor em suspenso. O nome faz parte, enfim, do mistério ficcional que ele inventou” diz. 

A especialista da UnB ainda comenta que os nomes pouco convencionais, “que não são aleatórios, mas fruto de reflexão e têm simbologias”, também dizem respeito à obsessão do autor em escrever e, mais que isso, em reescrever. Na já mencionada entrevista concedida ao Correio Braziliense, ao ser questionado se escrevia pouco, Rubião comentou o seu processo de trabalho e a sua estratégia de publicação: “escrevo muito e aproveito pouco, e também publico pouco. Observando exemplos passados, percebo que é uma coisa inútil você ter uma obra extensa, que é uma ambição de todo escritor, para mais tarde ficar com apenas um ou dois livros que sejam realmente bons.” 

A literatura de Rubião começou a ter, realmente, visibilidade em 1974, quando a editora Ática publicou O pirotécnico Zacarias, obra indicada para o vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com distribuição e ressonância em âmbito nacional — naquele momento, ele já havia publicado outros três livros. Até o fim da vida, em 1991, publicaria, ao todo, sete títulos — com inéditos e textos reescritos de livros anteriores. “Ele publicou 32 contos, mas no livro Contos reunidos, organizado por Vera Lúcia Andrade em 1998, há mais um, antes inédito: ‘A diáspora’. São, pois, 33 [textos de ficção] no total o legado do autor”, comenta Wander Melo Miranda.

“Como ele não escreveu muito, menos livros de contos do que os dedos das mãos, sugiro aos leitores do Cândido que tomem qualquer conto, e depois leiam outros, e verão a tensão, a intensidade e circularidade sempre presentes em seus textos”, comenta Charles Kiefer, recomendando a leitura dos contos “O mágico da Taverna Minhota”, “O pirotécnico Zacarias” e “O convidado”. “Um dos aspectos mais fascinantes dos contos de Murilo Rubião é que todos eles são absolutamente perfeitos, todos são obras-primas. Que quem não o lê, é como aquele sujeito da fábula que sonhou que encontraria ouro em terras distantes. Vendeu o seu terreno e partiu. E lá, no estrangeiro, ficou sabendo que o comprador de sua casa encontrou um enorme tesouro em seu quintal”, afirma.

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