Memória literária | Morte e vida severina

Poesia retirante

Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, completa 60 anos como texto essencial para a compreensão das contradições sociais do país — e segue inspirando adaptações para teatro, cinema, tevê e música


Kaype Abreu
Divulgação
1


Há 60 anos, Juscelino Kubitschek chegava à Presidência da República com a promessa de construir uma nova capital federal e promover o crescimento do Brasil de maneira exponencial. O discurso desenvolvimentista contrastava com a realidade de um país de dimensões continentais, que tinha uma parcela significativa da população vivendo abaixo da linha da pobreza. É o retrato desse povo, miserável, que João Cabral de Melo Neto (1920 – 1999) traça em Morte e vida severina, sua principal obra. 

O poema, um auto de natal, foi escrito em 1954, a pedido da dramaturga Maria Clara Machado, do grupo Tablado. Narra de maneira direta o trajeto de Severino, um retirante que foge da fome no sertão nordestino. O material, no entanto, foi descartado, pois a companhia avaliou que não tinha condições de transformá-lo em uma peça. Cabral, que na época concluía o livro Duas águas, retirou as marcações teatrais do texto e o incluiu na publicação, lançada em 1956. 

Walmor Chagas e Cacilda Becker foram os primeiros a apresentar Morte e vida severina nos palcos, dois anos depois, sem muito sucesso. Mais tarde, em 1965, o grupo do Tuca (Teatro da Universidade Católica de São Paulo) iniciou sua trajetória com uma encenação do auto, muito bem recebida pela crítica. Chico Buarque, que musicou o poema e já tinha um álbum lançado, ganhou ainda mais notoriedade com o espetáculo. Desde então, o livro já foi reeditado cerca de 100 vezes — e ganhou incontáveis adaptações teatrais. 

2
Cabral acreditava que, por ter sido concebido para o teatro, o poema era acessível para o grande público. Ele tinha razão: a obra é, ainda hoje, o maior sucesso editorial da poesia brasileira. Para o pós-doutorando em cultura contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Roniere Menezes, seu traço marcante é um tom racional que contrastava com a linguagem hegemônica do período. “Havia no Brasil uma influência muito forte da literatura francesa, mais sentimentalista”, diz. “A ida de Cabral à Inglaterra o colocou em contato com uma linguagem mais ‘seca’. Isso é evidente no tom de Morte e vida severina”, completa. 

Segundo o professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília (UnB) Alexandre Pilati, um ponto fundamental do poema é a inversão de palavras no título — feita para, de certa forma, antecipar a história. “Colocar ‘morte’ antes de ‘vida’ tem a ver com a saga do retirante. Ele está fugindo da morte, partindo para onde há esperança”, explica. 

A força de Morte e vida severina ainda é sentida na cultura brasileira. A exemplo de outros grandes clássicos da literatura nacional, o poema de João Cabral de Melo Neto inspirou artistas de diferentes áreas e linguagens. Veja a seguir algumas das principais adaptações de sua obra mais popular.

Reprodução
1
Álbum de Chico Buarque

O LP Morte e vida severina, de 1966, é o segundo registro de Chico Buarque. O álbum tem 13 faixas compostas especialmente para o espetáculo do Tuca (Teatro da Universidade Católica de São Paulo). O artista conta que teve bastante dificuldade para musicar o poema: “Sem o espetáculo, eu jamais musicaria João Cabral. Nunca faria aquelas músicas, porque seria uma coisa seca demais. Muitas ideias nasciam do grupo, à medida que o espetáculo ia saindo”.

A peça do Tuca

Na noite de 11 de setembro de 1965, pouco mais de mil pessoas lotaram o, na época auditório Tibiriçá, em São Paulo, para assistir à estreia do Teatro da Universidade Católica (Tuca). No palco, atores e atrizes interpretavam os sertanejos do poema de João Cabral. O sucesso de público se repetiu em teatros do Rio de Janeiro, Curitiba, Manaus, de cidades do interior paulista e da Europa — onde venceu o Grande Prêmio do Festival Mundial de Teatro Universitário.

Filmes de Zelito Viana e Walter Avancini

Dois longas-metragens foram produzidos com base em Morte e vida… Em 1977, Zelito Viana (produtor de clássicos do cinema brasileiro como Terra em transe, de Glauber Rocha, e Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho) dirigiu um filme que intercalava ficção e realidade. Há depoimentos de sertanejos, imagens de seu cotidiano e as participações de atores como Stênio Garcia e José Dumont. Walter Avancini (responsável por adaptações para a TV de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e Anarquistas, graças a Deus, de Zélia Gattai) também dirigiu um especial da Rede Globo baseado no poema. Exibido em 1981, o programa traz parte do elenco do longa de Viana e uma narrativa mais convencional, sem os trechos documentais.

Severino, álbum dos Paralamas do Sucesso

Lançado em 1994, Severino possui 13 faixas narradas em terceira pessoa, diferentemente do poema. Com um tom politizado, o álbum mostra a oposição entre a elite econômica do país e os severinos, numa tentativa de trazer a narrativa também para o contexto urbano e contemporâneo — há referências ao ABC, em São Paulo, e ao vírus da AIDS, por exemplo.

  Reprodução
6


HQ de Miguel Falcão 

Em 2005, o poema de João Cabral ganhou uma adaptação em quadrinhos assinada pelo artista Miguel Falcão. O projeto, desenvolvido pela Fundação Joaquim Nabuco, foi posteriormente transposto para a televisão — na forma de uma animação 3D produzida em parceria com a TV Escola e distribuída para as emissoras educativas do país. O conteúdo pode ser acessado na íntegra no canal youtube.com/tvescola.

Documentário da GloboNews

O jornalista pernambucano Gerson Camarotti, do canal de notícias GloboNews, percorreu mais de 1,4 mil quilômetros em sua terra natal para produzir o documentário Morte e vida severina — 60 anos depois. O objetivo do projeto era refazer o percurso do Severino do poema de Cabral, mas no sentido inverso: da foz à nascente do Rio Capiberibe. Com exemplares dos livros nas mãos, a equipe de Camarotti conversou com 44 pessoas, que leem trechos do texto ao longo do programa.

Fábula de um arquiteto 

O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto afirmou, em mais de uma ocasião, que não acreditava em inspiração — chegava a trabalhar durante anos em um único texto. Em 1999, em entrevista ao Correio Braziliense, disse que, se acordava no meio da noite com uma ideia, procurava esquecê-la. “Por quê? Não é uma ideia minha. E sim um sonho que veio. Portanto, é eco de alguma coisa. A ideia precisa ser o resultado de um esforço intelectual, da lucidez.” 

Por isso mesmo, João Cabral afirmava que nunca havia se arrependido de ter publicado um texto. Em 50 anos de atividade como escritor, foram 19 obras. A primeira, Pedra do sono, de 1942, é considerada o marco inicial de uma nova fase na literatura brasileira, caracterizada por um antiparnasianismo que influenciou vários outros poetas do país. 

O autor de O cão sem plumas pegou gosto pela leitura aos 17 anos, ao ler o livro Brejo das almas, de Carlos Drummond de Andrade. Também foi influenciado pelos pintores cubistas, apresentados pelo amigo artista Vicente do Rego. Na mesma época, interessou-se por arquitetura, engenharia e pelas teorias de Le Corbusier — arquiteto, urbanista, escultor e pintor de suíço. “Depois li muito Valéry, Mallarmé, Baudelaire, todos esses autores que não acreditam em inspiração. A estrutura de um poema tem que ser arquitetada”, disse. 

Ao longo da vida, Cabral exerceu a profissão de diplomata: atuou como embaixador no Senegal e na Colômbia. E foi justamente nessa fase, fora do país, que a terra natal começou a aparecer com mais força em seus poemas. "Quando morei em Pernambuco, não escrevi sobre Pernambuco. Afinal, eu estava lá dentro, compreende? Já quando morei fora, senti falta. Foi só aí que eu escrevi sobre minha terra. Estava com saudades de certas coisas”, contou. Seu último posto na carreira diplomática foi o de cônsul-geral do Brasil na cidade portuguesa do Porto, em 1985, quando se aposentou. 

João Cabral foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1968 e ocupava a cadeira de número 37. Mas, no fim da vida, pouco visitava o local. Praticamente cego, passou seus últimos dias recluso e deprimido, pois não conseguia ler e apreciar pinturas, outra de suas paixões. Morreu aos 89 anos, de mãos dadas com sua mulher, Marly de Oliveira, rezando. Na época, era cotado para o Prêmio Nobel de Literatura, que não ganhou.