Memória literária | Graça Aranha

Contradições de um homem do século XIX

Nascido há 150 anos, Graça Aranha foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e rompeu com a instituição, participou da Semana de Arte Moderna e posteriormente foi “silenciado” pelos modernistas e, de modo geral, é conhecido apenas por seu livro de estreia, o romance Canaã, de 1902, apesar de ter escrito outras obras

                                                                                                                                                                                                                                                                                                     Ilustrações: Simon Taylor
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Márcio Renato dos Santos

O romance Canaã (1902), de Graça Aranha (1868-1931), é considerado por não poucas vozes como um livro inclassificável na literatura brasileira. O autor, nascido há 150 anos, também teve um percurso incomum. Bárbara del Rio Araújo se interessou pela obra e pelo escritor devido a essas peculiaridades. “Os autores pré-modernistas me chamavam atenção por não ocuparem um lugar definido na tradição literária. Assim, fui em busca das obras de Graça Aranha, Augusto dos Anjos e Euclides da Cunha. Li Canaã por ser o primeiro romance-novela do autor maranhense e o impacto causado, em mim, se deu em função do aspecto filosófico e ensaístico que a narrativa possuía, sendo diverso das obras que eu tinha lido no panorama nacional”, diz Bárbara, autora da dissertação de mestrado “Estudo sobre a composição estética da obra Canaã, de Graça Aranha”, defendida em 2013 na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Andrea Ruocco lembra que Aranha é um daqueles autores associados ao rótulo pré-modernista, dos quais — em média — sabe-se apenas o nome e de quem pouco ou nada se lê. “É um autor que produziu algo que ninguém sabe exatamente o quê, mas se sabe que foi antes dos modernos”, comenta. Ela só foi, de fato, ler Aranha em sua segunda graduação, em História, no contexto em que buscava compreender a produção de romances de formação durante a Primeira República (1889-1930). “Lí Canaã na intenção de identificá-lo ou não como um bildungsroman”, conta Andrea, autora de uma dissertação de mestrado sobre Graça Aranha — trabalho acadêmico aprovado em 2017 na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

A exemplo de Andrea Ruocco, Debora Graeff também conheceu o livro de estreia do escritor maranhense durante a graduação, em História. “Um professor trabalhou com algumas considerações de Aranha a respeito da identidade nacional”, conta. Inicialmente, o que despertou a atenção de Debora foi a maneira como Aranha, em Canaã, representou uma colônia de imigrantes alemães, onde — aparentemente — se formou uma comunidade. “Tratava-se de uma sociedade excludente. A forma que as ideias são expostas foi um estranhamento inicial. Há imensos monólogos filosóficos”, comenta Debora, autora de uma dissertação de mestrado sobre Aranha, concluída em 2017 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Renovação estética
O interesse de Bárbara del Rio Araújo, Andrea Ruocco e Debora Graeff por Graça Aranha não é exceção. Há dezenas de trabalhos acadêmicos sobre o legado do autor. A professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Mirhiane Mendes de Abreu explica que Canaã conquista interesse do público em geral porque a narrativa esboça os apontamentos do modo de pensar do século XIX (que ainda vigoravam), ao mesmo tempo em que a obra divulga formulações propostas pela arte do século XX: “É uma espécie de síntese das hesitações intelectuais daquele período”.

Mirhiane afirma que, em Canaã, a posição do narrador é clara quanto aos debates mais calorosos da época. “As ideias sobre a sociedade brasileira — corporificadas nos dois protagonistas alemães, Milkau e Lentz — traduzem em termos ficcionais o nacionalismo e o racismo, caracterizados como princípios científicos da época”, teoriza. A professora da Unifesp acrescenta que, em um país recém-egresso dos movimentos a favor da abolição, Canaã vai ao cerne do debate do seu tempo, mesclando ao tema a chegada dos imigrantes ao país — motivo igualmente de muita polêmica.

Bárbara del Rio Araújo acredita que Canaã inaugura um projeto de Aranha sobre renovação estética — a proposta, de acordo com a estudiosa, é fundamentada nos ensaios “Estética da vida” (1921) e “O espírito moderno” (1924). “No entanto, em Canaã, essa preocupação filosófica está em gérmen e em forma narrativa, fato que fez a crítica desconsiderar muito o livro. A despeito dos problemas estéticos, como um narrador didático e forçoso a desempenhar a filosofia panteísta de Aranha, Canaã é sim uma obra ímpar na medida em que revela uma tentativa de mudança em busca de um modernismo, que chegou depois”, argumenta Bárbara, professora de língua e literatura portuguesa no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG).

Andrea Ruocco tem a impressão de que Canaã é um romance ímpar por apresentar, em 1902, experimentalismos entre forma e conteúdo, além de trazer uma denúncia social não recorrente em outras obras do período e apresentar um ornato diferenciado — que José Paulo Paes define como art nouveau na literatura. “Sob tal perspectiva, descobri que, sob uma linguagem germanista, uma gama de vocábulos, entre estes adornos e ornatos artenovistas, Aranha transitava por temporalidades de um mundo utópico a outro distópico, e questionava a validade de um projeto restrito ao racial que culminaria em uma proposta de branqueamento da população brasileira”, diz Andrea. 

O mundo é inimigo
Apesar de ter escrito outras obras, incluindo o texto de teatro Malazarte (1911), Graça Aranha é, de modo geral, relacionado apenas a Canaã. De acordo com Bárbara del Rio Araújo, outros títulos do autor, como o romance A viagem maravilhosa (1929) e o texto autobiográfico O meu próprio romance (1931), não tiveram destaque, sobretudo, pela comparação com aquilo que Canaã, de 1902, e os ensaios “A estética da vida” (1921) e “O espírito moderno” (1924) já haviam apresentado anteriormente: “Tanto os ensaios quanto a obra inaugural do escritor vinham com a pretensão de divulgar uma filosofia particular e antenada com as vanguardas e com o modernismo. Depois de a proposta já ser conhecida, os outros livros perderam a verve e o sentido inicial”.

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Andrea Ruocco lembra que Canaã foi um livro bem recebido não apenas no Brasil, mas também na França. “Elogiado por críticos e pensadores brasileiros e franceses, imediatamente após o lançamento foi negociada uma nova edição”, pontua a especialista. Em pouco tempo, continua Andrea, Canaã foi traduzido para outros idiomas, entre os quais espanhol, francês e inglês.

Já o romance A viagem maravilhosa (1929) não animou os leitores que anteriormente saudaram Canaã. A narrativa, de acordo com Andrea Ruocco, coloca em prática o projeto “modernista” de Aranha: há paisagens cariocas, festas populares, a relação entre negros, brancos e mestiços — e o texto traz um diálogo, principalmente, com obras de Balzac, Goethe  e Nietzsche. “A crítica negativa de vários escritores que levantavam o baluarte do modernismo, ou melhor, que reivindicavam o modernismo para si — e esta é uma questão que mereceria uma discussão mais alongada e que menciono em minha dissertação — é uma das hipóteses para que essa produção tenha caído em esquecimento”, comenta Andrea. 

Debora Graeff acredita que uma das possíveis razões dos demais livros de Aranha não serem comentados tem relação direta com a falta de reconhecimento e divulgação pelo grupo de escritores validados no período, além da construção posterior que realizaram do movimento e da participação de Aranha na Semana de Arte Moderna. “Em textos, entre outros, de Mário e Oswald de Andrade, Aranha é referido por emprestar o nome e o prestigio ao movimento e à Semana de Arte Moderna, sem o destaque para sua influência e produção”, afirma Debora, que estuda as disputas entre Oswald de Andrade e Graça Aranha em sua tese de doutorado, que teve início neste ano na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). 

Impasses de um diplomata
Em 13 de fevereiro de 1922, Aranha participa da Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, com a palestra “A emoção estética na arte moderna”. Apesar do relacionamento do maranhense com artistas modernistas, Bárbara del Rio Araújo salienta que, de acordo com estudiosos, Aranha foi apenas patrocinador financeiro do evento — e os especialistas que defendem o ponto de vista não reconhecem nele diálogo estético com os modernistas. “No meu entendimento, o ponto de contato [entre Aranha e os modernistas] estaria no patrocínio [da Semana de Arte Moderna] e na tentativa de uma renovação estética pautada nos ensaios, no romance e no discurso durante a Semana de 1922”, afirma Bárbara. 

Mirhiane Mendes de Abreu, da Unifesp, analisa que o discurso de Aranha na Semana da Arte Moderna foi interpretado pelos seus pares como “repleto de verbosidade acadêmica, obscuridade quanto aos conceitos filosóficos e indefinido em relação à estética do movimento, sem compreender o sentido de ‘arte moderna’”. “Tal imagem levou a crítica, que posteriormente se especializou no movimento modernista, a reproduzir jargões sobre ele e o incluíram no rol dos intelectuais chamados de ‘passadistas’”, explica a professora.

Apesar de ter atuado como diplomata, especialmente em países europeus, o relacionamento de Aranha com grupos literários não foi dos mais tranquilos.

Em 1897, Aranha participa da fundação da Academia Brasileira de Letras (ABL), titular da cadeira número 38, com um detalhe: é o único dos fundadores a entrar na instituição sem ter nenhum livro publicado, o que contraria o estatuto. Vinte e sete anos depois, em 19 de junho de 1924, ele apresenta na ABL a conferência “O espírito moderno”, em que afirma: “A fundação da Academia foi um equívoco e foi um erro”. A resposta é dada pelo confrade Coelho Neto: “O brasileirismo de Graça Aranha, sem uma única manifestação em qualquer das grandes campanhas libertadoras da nossa nacionalidade, é um brasileirismo europeu, copiado do que o conferente viu em sua carreira diplomática, apregoado como uma contradição à sua própria obra”.

Após a conferência, Aranha envia um projeto de reforma para a Academia, sugerindo que a instituição aceitasse apenas obras com temas nacionais e editasse um dicionário de brasileirismos. O projeto é recusado e, em 18 de outubro do mesmo ano, Aranha se desliga da ABL: “A Academia Brasileira morreu para mim, como também não existe para o pensamento e para a vida atual do Brasil. Se fui incoerente aí entrando e permanecendo, separo-me da Academia pela coerência.”

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Debora Graeff analisa que essa atitude de Aranha em relação à ABL pode ser interpretada como uma tentativa do autor de se afirmar no movimento modernista. “Provavelmente, ele se desligou da Academia para demarcar o seu afastamento de uma instituição do século XIX, que defendia um ideal artístico criticado pelos modernos de 1920, com o objetivo de interromper as críticas que recebia, afirmando-se como moderno”, teoriza.

Mirhiane Mendes de Abreu salienta que a figura pública de Aranha tem valor de estudo inestimável para se conhecer o papel do intelectual do seu tempo e a heterogeneidade do modernismo brasileiro, movimento, segundo ela, constituído por múltiplas faces: “Por essa mesma razão, tanto o intelectual quanto sua obra possuem, aos meus olhos, interesse semelhante porque expressam de vários modos os impasses vivenciados nos anos de modernização cultural do país nas primeiras décadas do século XX”. 

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Spoiler

Se for para resumir rápida e brevemente Canaã, é possível dizer que o romance é construído a partir do confronto de ideias entre dois personagens alemães que fixam residência no Espírito Santo. Milkau simboliza a esperança na vida, nas possibilidades de convivência entre os diferentes e, principalmente, no futuro do Brasil. Lentz, por sua vez, defende teorias racistas e acredita que os brasileiros, miscigenados por definição, devem ser comandados por raças supostamente “superiores”.

Parte significativa do romance, de fato, se dá por meio do diálogo entre Lentz e Milkau. Foi a maneira que Graça Aranha encontrou para, pela via da ficção, estabelecer um debate sobre a presença do imigrante no Brasil, incluindo, evidentemente, temas polêmicos — como o ponto de vista, hoje possivelmente definido no mínimo como “reaça”, de Lentz. Mas há outros trechos de alta voltagem na narrativa, por exemplo, quando “homens da lei” decidem o futuro de colonos e, principalmente, quase no fim da narrativa, no momento em que Milkau se aproxima de Maria, personagem que passa por adversidades e se fortalece no infortúnio. Há ainda inúmeras descrições da natureza — confira no fragmento publicado na página 18.

“Tudo o que vês, todos os sacrifícios, todas as agonias, todas as revoltas, todos os martírios são formas errantes da Liberdade.” Eis uma frase que antecede o ponto final desta obra de José Pereira da Graça Aranha, maranhense que estudou Direito e trabalhou no interior do Espírito Santo, cenário da produção literária que carimbou seu passaporte para a posteridade.

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Obras de Graça Aranha que não obtiveram o mesmo reconhecimento de Canaã


Trecho de Canaã

Ao amanhecer de um dia de nevoeiro, a paisagem perdera o seu contorno exato e regular. As linhas definitivas dos objetos confundiam-se, as montanhas enterravam as cabeças nas nuvens, a cabeleira das árvores fumegava, o rio sem horizonte, sem limite, como uma grande pasta cinzenta, ligava-se ao céu baixo e denso. O desenho apagara-se, a bruma mascarava os perfis das coisas e o colorido surgia como a sombra numa sublime desforra. Por toda a parte manchas esplêndidas se ostentavam. E sobre a campina esverdeada, vaporosa, uma dessas manchas, ligeiramente azulada, movia-se, arqueava-se, abaixava-se, erguia-se e se ia lentamente dissipando. O sol não tardou a vir, e a Natureza sacudiu-se, a névoa fugiu, o Céu espanou-se e dilatou-se em maravilhosa limpidez.