Memória literária | Fernando Pessoa

O verdadeiro imperador da língua portuguesa

Fernando Pessoa modernizou a poesia e a prosa do nosso idioma com um legado de 30 mil “papéis”, fragmentando a própria autoria em 136 nomes — conteúdo que só passou a ser conhecido e celebrado após a morte do artista

Marcio Renato dos Santos

Nascido há 130 anos, Fernando Pessoa (1888-1935) é uma voz literária incontornável, sinônimo de modernidade. A professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Maria Lúcia Outeiro Fernandes afirma que não é possível entender a poesia moderna e contemporânea portuguesa sem passar pela produção pessoana. “Todos os que se dedicaram ao ofício poético em Portugal, e nos países de língua portuguesa em geral, tiveram que se defrontar com a onipresença esfíngica de Fernando Pessoa. Era preciso decifrá-lo antes de entender o que significava ser poeta moderno em língua portuguesa e, principalmente, em Portugal”, diz. 

E o legado de Pessoa é, sem exagero, monumental. Um dos mais respeitados especialistas na obra do autor, Jerónimo Pizarro, professor da Universidade dos Andes, na Colômbia, e do Instituto Camões, com sede em Lisboa, afirma que o artista português deixou 30 mil papéis. Pizarro calcula que uma obra completa de Pessoa teria, por exemplo, 100 volumes, cada um com 300 páginas. Além disso, o legado conta — a partir do levantamento mais recente de Pizarro — com 136 “autores fictícios”, uma vez que Pessoa fragmentou sua obra, assinando textos com nomes variados. Os 3 heterônimos mais conhecidos são Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

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Fernando Pessoa no bar Abel, em Lisboa

A professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Ermelinda Maria Araújo Ferreira cita, entre os diversos nomes criados por Pessoa para assinar textos, Alexander Search, autor de poemas ingleses e ficção policial, António Mora, um filósofo internado na Casa de Saúde de Cascais, Barão de Teive, aristocrata sem uma perna e o astrólogo Raphael Baldaya.

No entanto, salienta Ermelinda, nem todos esses autores podem ser alçados à categoria de heterônimos: “Segundo Pessoa, os heterônimos não eram meros pseudônimos seus, mas autênticas personalidades, com datas de nascimento calculadas em mapas astrais por ele mesmo traçados, aparências físicas e fisionômicas, assinaturas próprias e autênticas”.

Já o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Eduino Orione observa que é importante discutir o que vem a ser a heteronímia, enquanto procedimento literário moderno. Uma possibilidade, sugere, reside naquilo que alguns estudiosos de literatura chamaram de despersonalização. “Trata-se de um processo que parece ter se iniciado com Charles Baudelaire, e que se caracteriza por um distanciamento do poeta em relação ao seu próprio poema. No texto que escreve, o poeta moderno tende a ceder a voz a um outro sujeito (fictício) que não ele próprio. Isso é o contrário, por exemplo, do modelo romântico, no qual a voz que fala no poema costuma ser a do próprio poeta. Daí a chamada poesia confessional romântica”, comenta.

O teor poético moderno é, continua Orione, diverso de tal confessionalismo: “Talvez não seja absurdo dizer que a poesia se torna moderna quando o poeta, conscientemente, ‘sai’ do poema”. De acordo com o pesquisador da Unifesp, o poeta romântico se fazia muito presente no próprio texto, que tendia a ser autobiográfico. “No caso de Pessoa, a matriz baudelaireana é levada ao extremo, pois, com ele, a poesia moderna nem seria mais a poesia do ‘outro’ (enquanto a romântica era a poesia do ‘eu’), e sim, a poesia de ‘outros’ (os diversos heterônimos)”, argumenta Orione. 

Sinais de uma estrada
Vivo, Fernando Pessoa publicou em revistas e viu impressa uma parte mínima de sua produção, a exemplo do livro Mensagem (1934). Portanto, seus 30 mil papéis são, na definição de Jerónimo Pizarro, apenas “projetos”. Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Marcus Motta observa que há mais projetos do que realizações editoriais. “O fenômeno editorial dos seus livros é resultado dos jeitos de outros que arrumaram os seus papéis e os publicaram”, pontua.

Em diálogo com o discurso de Jerónimo Pizarro e Marcus Motta, Eduino Orione acrescenta que, até recentemente, ainda havia inéditos sendo editados. “Diante disso, não há como saber, ao certo, se Pessoa organizaria, caso tivesse vivido mais tempo, a sua produção em livros no formato tradicional, ou seja, como obras acabadas, com títulos definidos”, avalia.

Por outro lado, continua o professor da Unifesp, o mais correto talvez seja entender que o caráter assistemático e fragmentário dos textos pessoanos e a maneira como eles chegaram até nós, com todas as consequências, deve-se à especificidade literária da obra dele, que é a heteronímia. “Esta, por si só, levanta problemas insolúveis de fragmentação e de inacabamento. É difícil pensar que o destino ‘editorial’ de Fernando Pessoa pudesse ser outro, dado o próprio teor de uma escrita necessariamente interminável, fragmentária e plural — tal como o sujeito humano moderno que ela representa tão bem”, argumenta.

Já Marcus Motta analisa que a produção poética de Pessoa, no sentido genérico do termo, são entradas que se propõem como aberturas apartadas. “Cada uma delas inclui um rastro do seu legado até que uma outra a detenha e se abra, como se fosse um sinal, por exemplo, do que é um fazer poético. Seria melhor considerar o seu legado como sinais de uma estrada: um número finito de escritas, cuja infinitude se estende simultaneamente em todas as direções dos segmentos de um todo que não se pode possuir”, teoriza.

De tudo e mais um pouco
O professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Jorge Vicente Valentim diz que o autor de Mensagem escreveu praticamente a respeito de tudo. “Da saudade ao pessimismo, do furor elétrico desenvolvimentista ao despojamento campesino, da solidão à angústia de não conseguir captar sozinho a realidade que o cerca, enfim, não gosto de roubar o prazer da leitura. Basta ler”, comenta, mencionando que, há alguns anos, ouviu um veterano colega de magistério dizer em sala de aula que só a poesia de Fernando Pessoa equivale a uma literatura inteira. “Imagine o que aconteceria, se somássemos também a sua produção em prosa e a dramática?”, completa.

Professor da Universidade de Brasília (UnB), Edvaldo A. Bergamo destaca outros assuntos a respeito dos quais Pessoa escreveu: crítica literária, filosofia, cultura, história, política, turismo, finanças, etc. “Há de tudo e mais um pouco. Mas a referência principal cabe, sem dúvida, ao poeta e ao prosador inconfundíveis, no tocante ao conhecimento da memória-arquivo literário e à capacidade de renovação do cânone ocidental”, afirma. 

Jerónimo Pizarro ainda lembra que Pessoa não só escreveu sobre todos os assuntos — “embora sobre alguns, como o erotismo, timidamente” —, como, principalmente, leu sobre todos os assuntos: “Temos a sua biblioteca particular como prova máxima”.

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Livros de Fernando Pessoa, parte de seu legado de 30 mil papéis

Antes e depois dele
Jorge Vicente Valentim cita Eugénio de Castro, Camilo Pessanha, António Nobre e António Patrício como algumas das vozes que compõem a tradição poético-literária lusitana anterior a Pessoa. Edvaldo A. Bergamo acrescenta Antero de Quental e Cesário Verde aos antecessores do — na definição do próprio Bergamo — autor-labirinto.

O advento-Pessoa, no entanto, alterou, definitivamente, a poesia e a literatura de e em língua portuguesa. O tradutor e professor Luciano de Souza, autor de uma tese de doutorado, defendida na Universidade de São Paulo (USP), a respeito das manifestações do satânico na literatura pessoana, chama atenção para o fato de que, desde jovem, Fernando Pessoa tinha a ambição de se tornar o maior poeta da língua portuguesa, o chamado Supra-Camões — informação que pode ser comprovada em documentos descobertos após a morte do autor. 

Jerónimo Pizarro salienta que, antes de Pessoa, a poesia de Portugal era muito lírica, por vezes espiritualista, ainda pouco aberta ao mundo anglo-americano: “Depois dele (e de outros autores, como Eça), temos uma literatura portuguesa mais universal”. 

Apesar disso, destaca Edvaldo A. Bergamo, Fernando Pessoa sabia reconhecer e valorizar os “mestres do passado”. No livro Mensagem (1934), Pessoa define o Padre Antonio Vieira como o “imperador da língua portuguesa”. “Vieira é uma referência incontornável em língua portuguesa, uma ‘máquina de estilo’. Por isso, ele inclui uma instigante homenagem ao mestre no livro Mensagem”, explica Bergamo.                                                                                                                                                                                                                                                                            
Jerónimo Pizarro acredita que Fernando Pessoa procurou escrever o melhor português do seu tempo e ser um novo imperador da sua língua. “Procurou aquela grande certeza sinfônica que teria descoberto, ainda criança, quando leu um texto de Vieira”, diz. Pizarro salienta que Pessoa, em apontamentos soltos, afirmou que Vieira que tinha um conhecimento “alquímico” ou “angélico” da língua portuguesa, que o seu domínio do português “tinha qualquer coisa de imperial” e que conjugava um “supremo sentimento da língua e do império”.

A partir dessas elaborações, Eduino Orione propõe o seguinte: “Vieira seria, então, o imperador da língua portuguesa clássica, e Pessoa, o imperador da moderna língua portuguesa”. Afinal, argumenta Orione, ambos conseguiram dar à língua portuguesa a sua expressão literária máxima, mas em épocas e estilos bem distintos.

Sempre relevante
A principal característica do legado de Fernando Pessoa, de acordo com Eduino Orione, é a já citada heteronímia: “Uma produção singularíssima de vozes poéticas plurais”. Luciano de Souza tem o mesmo ponto de vista de Orione, e faz a seguinte análise sobre a produção pessoana: “Versos redigidos em cadernos de juventude e ensaios amadurecidos por anos em gavetas de escrivaninhas parecem ter sido escritos por indivíduos distintos, apartados não só pelo tempo, mas por convicções e (des)crenças irreconciliáveis em uma só pessoa, o que dá ao leitor a impressão de que a escrita do poeta é fundada, não sem doses elevadas de ironia — outro atributo da escrita pessoana — em contradições e incoerências”. 

Jorge Vicente Valentim observa que uma poesia — e uma obra, enfim — multifacetada e complexa como a de Fernando Pessoa não comportaria apenas uma marca, mas muitas, diversas. Uma delas, destaca Valentim, é a mesma apontada por Eduino Orione e Luciano de Souza: a fragmentação do “eu”, ou seja, o processo de despersonalização daquela entidade egocêntrica (eu), e até então — antes da produção pessoana — considerada una e indivisível, e a sua pulverização descentralizadora. “Este fenômeno foi, talvez, um dos maiores impactos dentro do cenário das vanguardas poéticas, e como Pessoa levou este trabalho estético até às últimas consequências com o processo de criação heteronímica”, afirma o estudioso.

Já Edvaldo A. Bergamo analisa que a produção do escritor e poeta português, especialmente a poesia, sempre comunica algo relevante: “Porque é a ‘fala’ de um ser humano extraordinário para seres humanos atentos ao enigma existencial insolúvel, uma voz lírica, enfim, que sempre revela alguma perplexidade, algum assombro perante o incognoscível da vida corrente”.

E Ermelinda Maria Araújo Ferreira sugere que a marca inconfundível do legado pessoano é o paradoxo. Afinal, a pesquisadora lembra, o poeta e prosador confessou: “O paradoxo não é meu, o paradoxo sou eu”.

Desassossego permanente
A maioria dos especialistas consultados pelo Cândido cita o Livro do desassossego, seleção de textos em prosa, atribuída a Bernardo Soares e publicada em 1982, como a obra mais importante de Fernando Pessoa. Para Eduino Orione, o conteúdo desnuda, como poucos, o que é a vida do homem contemporâneo. Edvaldo A. Bergamo tem a impressão de que o Livro do desassossego é um dos títulos mais complexos da língua portuguesa, uma obra aberta, inacabada e interminável, que consumiu Pessoa por toda a vida: “É um dos principais ‘romances’ do século XX europeu”.

No entendimento de Luciano de Souza, o Livro do desassossego é um compêndio da literatura de Fernando Pessoa. “Se alguém não leu o autor, recomendo começar por esse livro”. Jerónimo Pizarro acredita que o Livro do desassossego e o poema “Tabacaria” fazem de Pessoa um “imperador”.

Mas, apesar da visibilidade de versos e frases de Fernando Pessoa, por exemplo, em redes sociais, especialmente nos países em que se escreve e fala em língua portuguesa, Jerónimo Pizarro considera que a obra pessoana ainda é pouco conhecida. “Basta pensar que há 40 anos, ou menos, era ainda muito desconhecido e que não é em três ou quatro décadas que ficamos a conhecer um legado, até porque se o legado é o espólio (as célebres arcas), esse espólio ainda está por conhecer em toda a sua vastidão e profundeza”, diz, ponderando que uma aparente “onipresença” de Pessoa deve-se mais às redes sociais e a um eventual merchandising do que a leituras muito completas da obra já publicada.

Possível biografia resumida


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      Pessoa na Infância
1888 — Em 13 de junho, nasce Fernando António Nogueira Pessoa, em Lisboa.

1895 — Escreve o primeiro poema, “À minha querida mamã”. 

1905 — Após viver alguns anos em Durban, na África do Sul, retorna à Lisboa e inscreve-se no curso de Letras.

1907 — Desiste do curso de Letras. No ano seguinte, começa a trabalhar em escritórios comerciais. 

1914 — Estreia como poeta nas páginas da Revista Renascença

1920 — Conhece Ophélia Queiroz, com quem vai namorar e romper no mesmo ano. 

1927 — A Revista Presença aponta Pessoa como o mestre da nova geração de poetas portugueses. Durante a década, publica em várias revistas, entre elas na Atena

1929 — Publica fragmentos do Livro do desassossego, creditando-o a Bernardo Soares. Retoma o relacionamento com Ophélia. 

1934 — Finaliza Portugal, que será publicado neste ano com novo título: Mensagem

1935 — Escreve carta, a Adolfo Casais Monteiro, em que relata a gênese dos heterônimos. Morre no dia 30 de novembro. 

1940 — A obra de Pessoa começa a ser conhecida, de fato, a partir desta década.

Moderno eterno


Fernando Pessoa escreveu a respeito de tudo e mais um pouco. Há frases e versos dele, ou atribuídos a ele, nas redes sociais e no imaginário, especialmente, de quem lê e escreve em português. O Cândido selecionou algumas das mais conhecidas frases e também versos do artista.

Todo começo é involuntário. 

Toda boa conversa deve ser um monólogo de dois. 

Escrever é esquecer. 

A humanidade é uma revolta de escravos. 

O que não tem limite não existe. 

Toda obra tem que ser imperfeita. 

Pensar é errar. 

Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena.

Intertextualidades

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A convite do Cândido, o professor da UFSCar Jorge Vicente Valentim comenta um aspecto do impacto-Pessoa.

O mais interessante, ao se pensar a reverberação da obra pessoana, é que ela não ficou circunscrita apenas nas intertextualidades encontradas nos poetas posteriores a ela. Também na ficção, a sua figura retorna com uma força e uma vitalidade impressionantes. Quem não se lembrará, por exemplo, de Os últimos três dias de Fernando Pessoa (1994), do escritor italiano Fernando Tabucchi?

Seja em Portugal, seja no Brasil, a obra de Fernando Pessoa ressoa não só na poesia, mas também na ficção. Recordemos, aqui, apenas três transformações de Pessoa em personagem ficcional. A mais conhecida, talvez, seja a belíssima homenagem que José Saramago [foto] faz ao poeta, em O ano da morte de Ricardo Reis (1984). Antes dele, porém, Agustina Bessa-Luís já esboçava em Álvaro Carmo, personagem do romance O susto (1958), um espelho muito bem construído de revisitação a Fernando Pessoa e à construção dos seus heterônimos. 

Há outros exemplos que poderiam ser, ainda, mencionados, como a novela Boa noite, Senhor Soares (2008), do português Mário Cláudio. No Brasil, há um caso digno de nota. Elisa Lucinda, com Fernando Pessoa — o cavaleiro de nada (2014), recupera o nome da criatura pioneira do poeta (o “Chevalier de Pas”, mencionado em carta a Adolfo Casais Monteiro), e investe numa biografia ficcional do escritor português extremamente emotiva e sensível. 

Diálogos neste lado do Atlântico


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A professora da Unesp Maria Lúcia Outeiro Fernandes, a pedido do Cândido, cita poetas brasileiros que dialogam com o legado de Fernando Pessoa: Cecília Meireles [foto], Patrícia Galvão (Pagu), Paulo Leminski, Ana Cristina César, Régis Bonvicino, Armando Freitas Filho, Carlito Azevedo [foto], Geraldo Carneiro, Paulo Henriques Britto, Iacyr Freitas e Fernando Fiorese. “Dialogam no sentido de que a poesia de Fernando Pessoa e seus heterônimos desencadeiam outras criações poéticas, que configuram desdobramentos, críticos ou não, de aspectos temáticos, estéticos e formais presentes na obra do autor de Mensagem”, observa a pesquisadora.