Making Of | O Grande Gatsby

O outro lado do paraíso

Retrato mais fiel já realizado dos loucos anos 1920, O grande Gatsby, terceiro romance de F. Scott Fitzgerald, foi um fracasso comercial de início e enfrentou resistência de parte da crítica

Guilherme Magalhães

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Fitzgerald e Zelda: o casal viveu a todo vapor os anos 1920 e pagou um preço alto pelos excessos da “Era do Jazz”.

Estou cansado de ser o autor de Este lado do paraíso e quero começar de novo”. A frase, dita por F. Scott Fitzgerald (1896-1940) ao seu editor, Maxwell Perkins, em 1924, reflete o estado de espírito do escritor americano nos meses que antecederam a escrita daquela que é considerada sua obra-prima, O grande Gatsby, publicado em abril de 1925 e por vezes apontado como o grande romance americano do século XX. Este lado do paraíso, seu livro de estreia, teve boa acolhida da crítica e do público, fato replicado com o romance seguinte, Os belos e malditos, ainda que em menor escala. Scott, porém, queria mais do que ser um romancista que sobrevivia do dinheiro pago pelos contos que publicada em revistas.

O escritor começou a trabalhar em sua terceira narrativa longa em julho de 1923, poucos meses após a publicação de O vegetal, peça de tom surrealista. A primeira incursão de Fitzgerald no texto dramático acabou se revelando também no seu primeiro fracasso. O casal Fitzgerald — Scott casara-se com a também escritora Zelda Fitzgerald três anos antes — viu-se em sérias dificuldades financeiras, motivadas pela extravagância dos gastos da dupla.

O fiasco teatral abriu os olhos de Scott para o fato de que ele não poderia mais gastar e beber desenfreadamente. A fim de saldar as dívidas, teve que escrever mais e mais contos para revistas, inclusive alterando detalhes para torná- -los mais vendáveis, o que chocava seu amigo e escritor Ernest Hemingway, que Fitzgerald conheceu em Paris. O autor de O velho e o mar costumavachamar tal prática de “aputalhamento”. Fitzgerald precisava se reinventar e se reafirmar ao mesmo tempo.

TEMPORADA NA RIVIERA
Com as dívidas quitadas, em maio de 1924, os Fitzgerald deixam os Estados Unidos rumo à França. Após uma breve parada em Paris, os dois fixam residência na Riviera francesa, onde ele de fato escreveria o romance, entre junho e outubro daquele ano. Joseph Conrad, autor do clássico O coração das trevas, é um dos autores que mais o influenciaram nesse período. Scott teria dito ao crítico americano H. L. Mencken que aprendera muito com Conrad e havia imitado seu estilo de forma consciente.

Scott confessou à Hemingway que o prefácio que Conrad escreveu para seu próprio romance O negro do Narcissus lhe ensinou que a ficção “deve apelar para os prolongados efeitos posteriores na mente do leitor”. Fitzgerald relia o livro enquanto escrevia O grande Gatsby, que é marcado justamente pela sutileza ao retratar um período tão exacerbado como foram os anos 1920, os “anos loucos”, “a orgia mais cara da história”, como ele mesmo descrevia a “Era do Jazz”. A trama do romance se desenrola nos subúrbios de Nova York, região onde o casal Fitzgerald viveu entre 1922 e 1924, na península de Great Neck, representada por West Egg no livro e que abrigava os novos ricos. Do outro lado da baía, moravam os aristocratas tradicionais de Port Washington (East Egg na ficção). Tal oposição constitui o cerne da história.

A construção dos personagens do romance foi influenciada tanto pela observação de Scott acerca da dicotomia moral e visual presente na vizinhança, quanto por acontecimentos da vida do próprio escritor. A bela Daisy da narrativa tem um pouco de Zelda e um pouco de Ginevra King, debutante de Chicago que Scott conhecera nos tempos de faculdade, em Princeton. Seu marido, o riquíssimo Tom Buchanan, foi inspirado em Tommy Hitchcock, jogador de pólo, de perfil atlético e aristocrata, além de principal amigo do escritor nos dias de Great Neck. A própria forma como Tom reconquista Daisy na ficção lembra a maneira como Scott reconquista Zelda, após ela se envolver com um aviador da marinha francesa, Édouard Jozan, durante a escrita do romance.

RECEPÇÃO MORNA
As críticas mostraram-se indecisas e muito distantes da unanimidade da qual O grande Gatsby desfrutaria décadas mais tarde. Isabel Paterson, do New York Herald Tribune, afirmou: “O que nunca foi vivo não pode muito bem continuar a viver, então este é um livro para a temporada apenas”. A escritora e crítica Edith Wharton classificou o livro como um avanço em relação aos títulos anteriores de Fitzgerald, porém fez duras ressalvas ao protagonista: “Para fazer Gatsby realmente grande, você devia ter nos mostrado o início da carreira dele (não desde o berço, mas desde sua primeira visita ao iate, se não antes), em vez de um pequeno resumo. Isso teria situado Gatsby e teria transformado sua tragédia final em verdadeira tragédia, ao contrário de fait divers para os jornais”, escreveu Edith.

H. L. Mencken, um dos críticos mais mordazes dos anos 1920, por sua vez, queixou-se da trivialidade da história. “Mas Deus o perdoará por isso”, comentou. Dentre as impressões positivas, Hemingway, que raramente elogiava seus contemporâneos, disse se tratar de “um livro de primeira ordem”, enquanto o poeta T. S. Eliot foi além: “Parece- me ser o primeiro avanço da ficção americana desde Henry James”. A revista de Eliot, The Criterion, chegou a publicar duas resenhas elogiosas de Gilbert Seldes e Conrad Aiken, ambos críticos americanos. Scott, no entanto, se sentiu decepcionado após a primeira recepção da crítica, afirmando que, “de todas as resenhas, mesmo as mais entusiasmadas, nenhuma teve a menor ideia de sobre o que era o livro”.

As livrarias trariam notícias ainda piores para o escritor. Durante o período em que Fitzgerald esteve vivo, ou seja, até 1940, O grande Gatsby vendeu nos Estados Unidos apenas 25 mil exemplares, número muito aquém dos dois primeiros romances do escritor. Na época, Scott mantinha uma espécie de caderno de finanças, que hoje está preservado, assim como seus diários, no acervo F. Scott Fitzgerald’s Ledger da Universidade da Carolina do Sul, nos EUA. Ele escreve que, no ano de lançamento de Este lado do paraíso, em 1920, as vendas do livro lhe proporcionaram 6.200 dólares. Os belos e malditos, lançado em 1922, lhe rendeu 12.133 dólares naquele ano. Gatsby, porém, passado o ano de lançamento (1925), trouxe míseros 1.981 dólares para os bolsos de Scott.

Após o fracasso comercial, ele disse a Maxwell Perkins, seu editor, que continuaria como romancista caso o livro lhe sustentasse. “Caso contrário, vou parar, volto para casa, vou para Hollywood e aprendo a trabalhar para o cinema. Não posso reduzir nosso padrão de vida e não suporto essa insegurança financeira”, desabafou. O resultado foi a volta do escritor às histórias comerciais até que tivesse juntado dinheiro suficiente para escrever seus romances — Suave é a noite, seu próximo livro do gênero, sairia somente em 1934. Scott atravessou os anos 1930 sendo gradualmente esquecido em Hollywood, onde trabalhou como roteirista até sofrer um ataque cardíaco fatal e falecer aos 44 anos.

RENASCIMENTO

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), cerca de 155 mil cópias de O grande Gatsby foram distribuídas aos soldados americanos. De fato, é no período de guerra que o romance passa a ser visto com olhos renovados pela crítica americana. O crítico Edmund Wilson foi o grande responsável por resgatar a reputação de Fitzgerald após sua morte, em 1940. Wilson publica uma nova edição do romance em 1945, com introdução do acadêmico Lionel Trilling, que atesta: “Fitzgerald está agora começando a tomar seu lugar em nossa tradição literária”. No início da década de 1950, surgem as primeiras dissertações e teses sobre o livro. E se antes vender era um problema, hoje não mais. O romance de Fitzgerald vende em média 500 mil exemplares por ano em todo o mundo, e está traduzido em 42 idiomas.

Ao terminá-lo, o próprio autor enxergara falhas. Admitiu não saber quem era Gatsby e em que atividades criminosas o personagem estava envolvido, e disse que a combinação de origens de seu protagonista tornaram-no confuso e desigual: “Nunca, em nenhum momento, eu mesmo o vi com clareza, pois ele começou como um homem que conheci e depois se converteu em mim mesmo — o amálgama nunca ficou completo em minha mente”. Muito se escreveu sobre o narrador de O grande Gatsby, Nick Carraway, ser o alter ego de Scott. Contudo, através da história de Jay Gatsby e sua (frustrada) tentativa de entrar para o mundo dos ricos e viver o sonho americano, Fitzgerald acabou contando sua própria história.