Making Of | Catatau

Leminskíada

Romance experimental, Catatau nasceu de um conto e sua gestação, que durou oito anos, ajudou a estabelecer a aura cult do livro e de seu criador


Schneider Carpegiani
Foto: Dico Kremer

Foto que Dico Kremer fez para a divulgação de Catatau, do seu amigo Paulo Leminski, em 1975.

Para os adolescentes dos anos 1990, Paulo Leminski era uma espécie de relicário, que apaziguava a ansiedade em relação ao futuro, o avanço das espinhas e outros hormônios menos cotados. Algum gênio editorial teve a ideia brilhante de usar alguns dos seus poemas mais famosos numa linha de cadernos e agendas escolares. Em todos eles, um texto em especial sempre era reprisado (e com razão): aquele que fala que a adolescência, ou seja, a irresponsabilidade, o estou-aí-para-a-vida, pode ser eterna. Então esqueça as ameaças e amarras de um curso de Direito qualquer, porque viver é livre docência.

Lembro que escapava das aulas batendo os olhos irremediavelmente nos versos de “Quando eu tiver 70 anos” e tudo voltava a (quase) fazer sentido outra vez. Leminski era um samurai malandro que nos levava a crer em sua cartilha de liberdade.

Esse “meu” Leminski foi o mesmo que emergiu em meados de 2013 num laranja catatau, best-seller da Companhia das Letras que reuniu sua obra poética. Apesar de estarmos falando de um autor múltiplo, que trafegou por quase todos os gêneros, foram justamente suas frases de efeito e palavras de ordem em relação a uma vida onde ninguém paga meia que tomaram conta das redes sociais (as “agendas escolares” de hoje). Apesar de se vangloriar de trazer um “Leminski completo”, a edição ainda assim trazia apenas uma certa “ideia” de Leminski, parcial e perfeita para consumo imediato.

FALTAVA ALGUMA COISA...
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E falta: no caso, um outro catatau, o romance Catatau (1975), obra ambiciosa em que o autor, desta vez como um James Joyce malandro, imaginou René Descartés — chamado no livro de Cartesius — trafegando pelos trópicos, como membro da tropa de Maurício de Nassau, que desembarcou no Brasil no século 17. Apesar de ter recebido algumas edições nas últimas décadas — a mais recente pela Editora Iluminuras, em 2010 —, Catatau precisa ser descoberto pelos neo-leminskianos fascinados pela concisa sedução dos seus poemas. Em haicais ou em prosa, existe uma unidade de pensamento aguda no escritor. Leminski jamais se afasta de ser Leminski. “Acho que os leitores que entram em contato com a poesia de Leminski vão apreciar muito o Catatau. O fato de ele ter se tornado um best-seller é que demonstra isso. Veja, os milhares de leitores foram buscar na poesia de Leminski o lirismo, o encantamento, a profundidade da visão existencial dele, e além disso, a rebeldia, a inteligência a serviço de uma visão de mundo menos convencional e careta. Um rebeldia literária e de vida, portanto. Nesse sentido o Catatau tem tudo para encantar e agradar os leitores. O Catatau é um romance sofisticadíssimo, um romance filosófico na mesma tradição de Rabelais, Swift, Defoe. O Catatau também é um livro delirantemente alegre, tropicalista, e que agradará o leitor que se dispuser a lê- -lo aos poucos, pois como todo livro experimental, impõe uma leitura diferenciada”, aponta o dramaturgo Maurício Arruda Mendonça, que defendeu dissertação de mestrado sobre o encantamento de Catatau.

O romance talvez sofra do ranço de “livro cult”, misterioso e cifrado, com que tem sido tratado desde seu lançamento. Leminski acreditava que Catatau seria sua obra máxima, em que a História, a dos livros oficiais, receberia sua visão bastante sui generis: o seu Cartesius fumava erva e delirava, assustado com visões aterradoras, que os leitores dos anos 1970 acreditavam ser uma metáfora dos perigos de um país achatado pela ditadura.

De tão orgulhoso da obra síntese que produzia, Leminski carregava o livro para cima e para baixo por todos os lugares por onde andava. Catatau, vejam só, era o seu relicário.

“O Leminski tinha uma relação quase física com esse livro, levava seus originais por todos os lados. Essa é uma lenda real”, ressalta o biógrafo Toninho Vaz, autor de Paulo Leminski — O bandido que sabia latim. “Do ponto de vista técnico, sabemos que o texto (de Catatau) era originalmente um conto chamado Descartés com lentes, que depois acabou virando um romance, ainda tendo o filósofo francês como personagem narrador, Renatus Cartesius. O livro chegou a se chamar Zagadka (Enigma em russo-polonês) mas acabou com o nome de Catatau, exatamente porque se dizia: ‘Lá vem o Leminski com aquele catatau em baixo do braço’. Do ponto de vista histórico, vemos uma homenagem do autor a Joyce (de Finnegan’s Wake) e Guimarães Rosa (de Grande Sertão), com uma pitada de Galáxias, de Haroldo de Campos. Ele mesmo explicava esta linhagem”, continua Vaz.

Tamanha relação física com Catatau é compreensível: o livro levou quase oito anos para ser finalizado. O início da sua fabulação coincide com o período em que o escritor tomou contato com os grandes nomes da poesia vanguardista do Brasil, como os irmãos Campos e Décio Pignatari. Para eles, Leminski era o “mascote do grupo”. Apesar da associação, o livro nasce justamente do seu desejo de negar grupos ou instituições, da sua vontade de ser uma espécie de “bloco-do-eu-sozinho”. Em 1967, quando começa a escrita da obra, funda o Grupo Áporo, que pretende lançar mísseis contra o “provincianismo cultural de Curitiba”.

No ano seguinte, inscreve a primeira versão da história, Descartes com lentes, no I Concurso Nacional de Contos do Paraná. Apesar de finalista, não ganha o prêmio. Frustrado, decide radicalizar ainda mais na estrutura da sua fábula envolvendo o criador da filosofia moderna. Esse processo de radicalização ajuda a gerar a lenda não apenas do livro em gestação; também do homem. Ao longo dos anos 1970, no meio literário todos sabiam que Leminski estava às voltas com a produção de uma obra ambiciosa. Em todo encontro literário que participava, fazia questão de distribuir “teasers” com trechos do romance.

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Em 1975, o livro é finalmente lançado, com 2 mil cópias (muitas delas distribuídas pelo próprio escritor via correio) financiadas pela agência publicitária P.A.Z., onde trabalha, que aceita a empreitada após acordar que abateria o custo do salário do poeta em suaves prestações. A imagem de divulgação do romance é a mais icônica da carreira de Leminski: uma foto sua nu, com a palavra CATATAU, em maiúsculas, sobre a sua cabeça. Nascem aí dois mitos: criador e criatura.

“Encontrei com Leminski poucas vezes enquanto ele escrevia o Catatau. Só começamos a nos encontrar para conversas intensas, na casa dele em Curitiba, depois que ele publicou o romance. Tanto que, quando pernoitei na casa, no sótão, ele falou: ‘Você vai dormir rodeado de uma obra-prima’. Eram as pilhas do Catatau que ele guardava no sótão e iria distribuindo ao longo dos anos”, aponta o escritor Domingos Pellegrini, que está em processo de re-escritura da sua biografia do poeta paranaense.

Segundo Maurício Arruda Mendonça, Catatau se sustenta ainda hoje para além da sua lenda de cult, dos experimentalismos dos anos 1970 ou mesmo independente da figura icônica do seu criador: “Se Leminski deu grande contribuição para a poesia brasileira, Catatau é, sem dúvida, a sua grande contribuição para o romance brasileiro. Para mim, o livro serviu como a grande oficina de criação de Leminski, que inovou radicalmente na prosódia, criando sons e ritmos em suas frases como nenhum outro autor havia experimentado. Catatau é, sem nenhum favor, uma obra-prima de invenção da língua portuguesa, dialogando com autores barrocos lusitanos como Jorge Ferreira de Vasconcellos e Dom Francisco Manuel de Mello, como assinalou muito bem o maior estudioso de Dom Francisco no Brasil, Jaques Brand.”