Making Of

Dentro do tempo voraz

Escrito em 1975 durante o exílio de seu autor em Buenos Aires, Poema sujo, publicado em 1976, é considerado a afirmação da maturidade poética de Ferreira Gullar

Márcio Renato dos Santos

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Exilado, sem perspectiva de retornar ao Brasil e com medo de ser assassinado, Ferreira Gullar escreveu uma obra que atravessa o tempo acumulando leituras críticas, leitores e não poucos elogios. Mais que isso. O longo poema que ele produziu em Buenos Aires, em 1975, é considerado por Antonio Callado, Clarice Lispector, Otto Maria Carpeaux, Paulo Mendes Campos — entre outros autores e também por especialistas em literatura — como uma das realizações máximas da poesia brasileira.


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“Turvo turvo/ a turva/ mão do sopro/ contra o muro/ escuro/ menos menos/ menos que escuro.” Eis o início do Poema sujo, obra lida, relida e estudada no meio acadêmico. Rosane Pires Batista é autora de Ferreira Gullar: memórias do exílio, tese de doutorado defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Durante quatro anos, a pesquisadora estudou o Poema sujo, para ela, o momento mais interessante do ponto de vista da criação artística e literária do poeta.


“As imagens construídas no Poema sujo são feitas no momento de maior choque vivido por Gullar [em exílio durante a ditadura militar]. São imagens que revelam a São Luís de sua infância. As reminiscências do passado podem ser lidas como um momento privilegiado de resistência política do poeta, pois os impactos da experiência traumática do desterro lhe impuseram uma necessidade de retorno às lembranças da infância e da adolescência para recuperar a própria noção de identidade perdida no exílio”, comenta Rosane. 


De fato, em território estrangeiro, diante de uma adversidade que parecia não ter fim, Gullar reinventou a sua cidade natal, São Luís (MA), por meio de imagens, palavras e sonoridades que tendem a arrebatar o leitor. Acima de tudo, não há nenhuma gota de pieguismo. “Não seria correto dizer/ que a vida de Newton Ferreira/ escorria ou se gastava/ entre cofos de camarões, sacas de arroz/ e paneiros de farinha-d'água/ naquela sua quitanda/ na esquina da Rua dos Afogados/ com a Rua Alegria.” Newton era o pai do autor, que ele contextualiza em uma cidade que não existe mais no momento da escrita — mas que se faz urgente em seu imaginário. “A cidade no entanto poderás vê-la do alto praticamente a mesma/ com suas ruas e praças/ por onde ele caminhava”, escreveu o autor, em um dos trechos da obra.

Pela mãos de Vinicius
O processo de escrita do Poema sujo envolveu Gullar de maio a agosto de 1975. Ele ainda levou mais um tempo, antes de encontrar o desfecho: “O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade.” O poeta mostrou e leu a obra para alguns interlocutores, entre os quais Vinicius de Moraes. “Após essa leitura, Vinicius, comovido, pediu-me uma cópia do poema, queria levá-la para o Brasil. Finalmente, decidimos que seria melhor gravá-lo numa fita, o que foi feito já no dia seguinte. No Rio, Vinicius reuniu um grupo de amigos em sua casa para ouvir o poema. Nas circunstâncias, ouvi-lo dito por mim, poeta exilado, era certamente emocionante e isso fez com que as cópias do poema se multiplicassem e outros grupos se formassem para escutá-lo”, escreveu Gullar, no texto “A história do poema”, que acompanha as edições recentes do livro.


O poeta receberia um convite de Ênio Silveira, da editora Civilização Brasileira, para publicar o Poema sujo — a primeira edição chegaria nas livrarias em 1976. Durante a década de 1980, a obra migrou para a José Olympio — selo que foi adquirido pelo Grupo Record em 2002. No momento, a José Olympio prepara novas edições dos livros de Gullar, incluindo o Poema sujo.


Aos 82 anos, Gullar é considerado um dos mais importantes poetas da literatura brasileira. Em 2010, recebeu o Prêmio Camões. Seu mais recente livro, Em alguma parte alguma (2010) conquistou o Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Poesia e Melhor Livro do Ano em 2011. Maria Amélia Mello, editora de Gullar na José Olympio, comenta que, além desses prêmios formais, o poeta conquistou o reconhecimento do povo brasileiro. “Ele é ativo, escreve com muita propriedade todo domingo na Folha de S.Paulo. Ver as pessoas cumprimentando o Gullar nas ruas é comovente, e prova a admiração que as pessoas têm pelo autor e sua obra”, afirma a editora.

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Ferreira Gullar e a sua editora Maria Amélia Mello em São Luís, capital do Maranhão, em um café, na década de 1990.

Mas em 1976, a realidade estava desfavorável, apesar de ele ter publicado livros como A luta corporal (1954) e Dentro da noite veloz (1975) — hoje considerados referências na cultura brasileira. Amigos do autor, jornalistas e escritores, solicitaram ao governo militar que Gullar retornasse ao país sem sofrer represálias. O pedido foi negado. O poeta voltou, foi submetido a interrogatório e sofreu ameaças. Enfim, conseguiu permanecer no Brasil e — como afirma no texto “A história do poema” — “devo ao Poema sujo o fim antecipado do meu exílio.”

Tradução de muitas vidas

A doutora Rosane Pires Batista chama atenção para o fato de o Poema sujo marcar o amadurecimento da linguagem poética de Ferreira Gullar. “Neste poema, é possível descortinar toda sua trajetória poética. Do lirismo ao concretismo, dos cordéis novamente ao lirismo pode-se perceber uma busca que o levou à construção de uma linguagem poética própria que se deu por meio de um movimento de experimentações de sintaxes e como resultado do próprio contexto social e político no qual o poeta estava inserido. Nesse sentido, pode-se encontrar nas filigranas deste poema uma biografia que corrobora na construção de uma dicção particular dentro da poesia brasileira”, afirma Rosane.

O poema de Gullar é, na análise de Maria do Socorro Pereira de Assis, uma intervenção estética e política no mundo, na realidade brasileira. Mais que isso: “É um golpe de linguagem e tema.” Doutora pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com tese sobre a obra de Gullar — Poema sujo de vidas: alarido de vozes, Maria do Socorro acredita que o Poema sujo toca encontra, de fato, ressonância nos brasileiros. “Sei que estou no Poema sujo; que todos estamos naquele Poema. Percebo que é uma poesia que deseja ser lida e revelada aos seus agentes: o povo brasileiro. O Poema sujo é a mais comprometida referência à atual poesia brasileira e ao Brasil”, diz a estudiosa.

Obra de arte que é, o Poema sujo permite inúmeras leituras — e isso acontece há mais de 30 anos. Maria do Socorro acredita que essa obra de Gullar continuará despertando interesse ad infinitum, em qualquer “espaço-tempo”. “Não sei quantas lições, ensinamentos, sensibilizações, experiências ainda poderemos retirar da leitura do Poema sujo. Acredito que inumeráveis como o são as histórias das vidas brasileiras que 'sujam' o Poema, mas, disso somente saberemos quando cada sujeito personagem do Poema puder efetivar o seu processo hermenêutico sobre a mágica e dura leitura do Poema sujo como assim o quis o seu primeiro leitor no Brasil, Vinícius de Moraes.”


Ilustração: Suely Avelar