Making of

Em busca de Juliana Klein, em busca de Curitiba

Marcos Peres escreve sobre Que fim levou Juliana Klein?, seu segundo romance, em que a capital paranaense serve de pano de fundo para a trama

guilherme pupo

Foto: Guilherme Pupo

O José Flauzino que deu a ideia: o Oscar (Nakasato, também maringaense, autor do romance Nihonjin, prêmios Benvirá e Jabuti de literatura) mandou um conto para a seção “Em busca de Curitiba”, do jornal Cândido. “Por que você também não se aventura?”, inquiriu meu amigo. Pensei e decidi que tentaria mandar meu delegado maringaense, Irineu de Freitas, para resolver um caso intrincado na capital. “Mandar um delegado maringaense para a capital” foi uma estratégia deliberada para resolver dois problemas que desde o início estavam propostos: 1. O delegado já havia dado as caras aqui em Maringá e, portanto, eu não poderia narrá-lo como se fosse curitibano, desde sempre: seria uma incoerência com a identidade deste personagem; 2. O cenário do conto — como indica o nome da seção do jornal — precisava evocar Curitiba. Invoquei problemas com contingente de delegados da subdivisão da capital, pressão da opinião pública por resultados, competência extraterritorial corroborada por supervisores da Polícia Civil em seus invisíveis castelos kafkianos e, por essas e outras, Irineu de Freitas desembarcou no Aeroporto Afonso Pena, em 2005. Desembarcou na capital do Paraná com uma difícil missão: investigar os motivos da morte de uma professora da PUC, Tereza Koch, executada por Salvador Scaciotto, marido de Juliana Klein, da UFPR.

O crime, ocorrido no famoso Teatro Guaíra, deflagrou — nos noticiários, nos círculos acadêmicos e no falatório da Boca Maldita — a existência de duas famílias antitéticas, rivais, com justificadores antigos para tanto ódio.

Aí entra o pobre delegado de Maringá, incauto em filosofias, insensível ao histórico belicoso dos protagonistas do livro, tentando compreender desesperadamente as nuances de um local em que se sente um organismo estranho, prestes a ser eliminado.

O conto ficou pronto, com um enorme problema: ficou extenso, impossível de ser publicado no formato do jornal. Após tentativas de podá-lo, decidi que minha tarefa não seria frutífera. Minha busca por Curitiba se mostrava fracassada. Engavetei o projeto, mas não consegui arquivar a capital — como sempre. A Curitiba que viajo, a mítica e miraculosa metrópole da infância — dos shoppings, do passeio público, da vina e gasosa, das palavras novas que me eram apresentadas, misturadas com um mundo ainda crescente, por nascer. A capital da juventude — dos vestibulares, das universidades, das baladas e dos porres longe da estrita observância dos pais. A Curitiba reencontrada na maturidade — dos vampiros, poetas e notívagos, todos mestres; a Curitiba das diferenças: no futebol, no sotaque e no costume e, ainda assim, a Curitiba das proximidades, dos biarticulados, da organização, do orgulho irrestrito de ser paranaense. Curitiba que me viaja, desde sempre.

Com esses pensamentos, marinei a ideia do conto até decidir transformá- -la em um romance. Tracejei o caminho oposto de podar o escrito e formatei- -o em capítulos, estendendo-o, realçando detalhes da cidade, gravados em minha mente.

Com a ideia do romance, um problema inicial parecia resolvido: não necessitando ambientar o enredo em um local específico, poderia muito bem deixar Irineu aqui, quietinho, na 9º SDP de Maringá, sem saídas mirabolantes para fazê-lo investigar estado afora, como um cão farejador sem rumo.

Por muitos dias, pensei em como poderia transportar o cenário para cá, mantendo a núcleo da história e alterando nome de universidades, de ruas, de sotaques. Não consegui. Que fim levou Juliana Klein? pedia Curitiba. Curitiba se transformara de mero receptáculo a organismo vivo, imprescindível para o correr do romance. Justifiquei para meus editores o estratagema e prossegui: a metáfora do delegado bronco do interior que tenta fugir, mas que tem todos os seus caminhos destinados a Curitiba calhou para o romance, como sempre calhou para minha vida. Escrever sobre a cidade, no fim das contas, era entender- me com ela. Era uma homenagem pequena que fazia a um local que sempre foi parte de mim — da mesma maneira que homenageei Borges colocando- o como um possível precursor do nazismo. Escreve-se certo por linhas tortas, sabe-se. Escreve-se de Curitiba sendo um maringaense, também.

Mas não fui negligente: como Irineu de Freitas, apeei no Afonso Pena e fiz o mesmo trajeto que meu personagem fez para chegar ao Batel. Com um caderninho, perambulei pelo centro anotando nomes de bares, detalhes das fachadas, menus expostos, o petitório rascante dos mendigos. Sentei-me na praça Santos Andrade e observei atento como as brumas, lentamente, invadiam o Guaíra e o imponente prédio da Federal. Entrei em alguns botecos do centro e percebi como a garoa insistia em cair nos finais de tarde curitibanos. Saber o trajeto, mirar o que meus personagens viram, saber a distância percorrida entre um aeroporto e uma residência, o clima, as variações de humor do atendente de um estabelecimento, cada um destes pequenos detalhes funcionou como uma viga do romance — uma viga, portanto, do universo que eu estava pleiteando construir.

Pode ser que não reste explícito para o leitor que o garçom não gostava de seu ofício ou que o antagonista odiava as alterações climáticas, mas, para o autor (ao menos para este autor), estes detalhes foram vitais, necessários para a sua pessoal crença nos personagens e, consequentemente, necessários para a árdua tarefa de fazer com que os leitores acreditassem na plausibilidade daquilo que pretendia escrever. Deambular pela cidade fotografando, anotando e pensando foi uma maneira de reconhecer o solo e, assim, conseguir escrever.

Não sei se é uma fórmula geral, e também não tenho a intenção de escrever sobre uma teoria da escrita. Mas digo sem nenhuma dúvida que, no meu caso, escrever é conhecer — a si mesmo, as suas raízes, a sua aldeia. Por isso retornei: ao que fui, ao que li, ao que vivi em Curitiba.

E, agora, com Que fim levou Juliana Klein? pronto, ainda no forno, vejo orgulhoso a capa do romance com uma foto noturna da capital — da mesma maneira que vi Poty, Dalton e Curitiba, em tantas capas, em tantas linhas, em tantos sonhos. Vejo um rol grande de mestres, todos em minha cabeceira, vejo uma cidade que me recrimina e me afaga, vejo as tentativas de, escrevendo, tentar compreender o que sou. E, nesta contínua tentativa, nessa incessante ânsia de escrever, de conhecer, de desbravar, olho para o romance e para a foto noturna e sinto imensa gratidão. Curitiba em passinho floreado do grande Ney Trapple, Curitiba das conferências positivistas, do Rei Candinho, Curitiba de todas as viagens, de todas as idades, de todas as minhas buscas, deixo consignado meu muitíssimo obrigado.

 

Marcos Peres nasceu e vive e Maringá (PR). É autor de O evangelho segundo Hitler (2013), livro que venceu o Prêmio São Paulo de Literatura 2014 na categoria Autor Estreante com menos de 40 anos. No segundo   semestre a editora Record lança seu segundo romance, Que fim levou Juliana Klein?.