Making Of

Cervantes e o falso Quixote

O escritor Antonio Cescatto recupera as pegadas de Miguel de Cervantes antes, durante e após o processo de escrita que resultou em Dom Quixote, considerado o primeiro romance moderno


Na batalha de Lepanto, em 1571, decisiva na luta entre o império cristão e o otomano (e, para muitos, decisiva para a história do ocidente), Miguel de Cervantes (1547-1616) era, antes de escritor, um soldado. Mesmo tendo publicado alguns poemas na juventude, era como membro da liga organizada pelo papa Pio V para conter o avanço dos inimigos que ele buscava a glória e a consagração, lutando com bravura e movido por ideais de nobreza guerreira e defesa dos princípios da cristandade.

No fragor da batalha, porém, um incidente mudou seu percurso: atingido por uma explosão causada por bala de canhão, Miguel sofreu graves ferimentos no peito e perdeu os movimentos da mão esquerda, fazendo com que, por muito tempo, Cervantes fosse conhecido como o “Manco de Lepanto”. Mais tarde, capturado na Argélia, então aliada aoimpério otomano, amargou longos anos de cárcere, tornando-se líder de muitas revoltas, até ser libertado e conquistar o direito de retornar para sua Espanha.

De volta para Castelas, sua terra, o soldado sentia-se no exílio. Não haviam mais as batalhas, nem as grandes causas para se lutar. Não haviam mais otomanos para combater. Ele era um soldado, apenas, incapaz para a vida prática. Restava-lhe aquilo que sabia e pretendia fazer: escrever.

Depois de casar-se, muda para um pequeno povoado de La Mancha, local em que começa a escrever suas primeiras peças, entre as quais Galatea, um romance no estilo pastoral que alcança relativo sucesso.

Na época, um gênero dominava o incipiente ambiente literário: as éclogas e elegias ao heroísmo, representadas pelos romances de cavalaria, praticados não só por escritores mas por potentados, reis, rainhas, gente da corte e frades, muitos e muitos frades escritores.

Com o surgimento de um romance inusitado, o Lazarilho de Tormés, de autor anônimo, um novo gênero, revolucionário para o período, se insinua, inspirado por um humor ácido e corrosivo, cujo alvo era a sociedade da época, seus costumes, hábitos e excentricidades.

Vivendo como ex-soldado e aspirante a escritor, Don Miguel sobrevivia com dificuldades, dependendo sempre (o que o acompanharia até o fim da vida) de doações de alguns amigos nobres, admiradores da arte narrativa do escritor.

No meio dessa batalha (a verdadeira batalha, bem diferente daquela do herói-escritor, o Mein Kampf de que fala o extraordinário contemporâneo de Cervantes, Karl Owe Knausgaard), um novo livro começou a surgir.

Pouco a pouco, da pena do ex- -soldado, começava a tomar forma um personagem que transitava entre os romances de cavalaria e o perfil picaresco de Lazarillo de Tormés. Doce e patéticoao mesmo tempo, o anti-cavaleiro era um pequeno estancieiro obcecado pela leitura desmedida dos romances de cavalaria e pelos sonhos que dela adviam. Um homem assombrado pelo sonho da razão. Pela beleza da loucura. Dom Quixote de La Mancha.
quixote

Ao redor dele, um universo multi- constelado de personagens se desenhava, do espelho invertido (Sancho Pança) à imagem projetada (Dulcineia de Toboso), passando por todo tipo de damas, cavaleiros, donos de castelos, vagabundos, em narrativas delirantes e encantadoras. Nelas, cada vez mais delirante, o herói sempre perdia — mas com que graça, com que leveza e humor.

Em menos de dois anos, em 1605, a primeira parte do Quixote foi publicada. Um estrondo. Devorada por todos que podiam ter acesso à ela, a obra causou um frisson imediato na corte e na intelectualidade do reino. Todos se viram retratados nas peripécias do Cavaleiro de Triste Figura e nos personagens com os quais ele compartilhava suas estranhas e malucas aventuras. Não foram poucos os indignados, nem pouca a força com que reagiram contra a aquilo que consideravam uma infâmia.

Don Miguel permaneceu indiferente a tudo. Tinha relações na corte, mas não queria depender delas. O romance era o que era, não havia o que mudar. O que ele não esperava foi a reação engendrada para combater o efeito do livro.

Quase um ano depois do surgimento da primeira parte, surgiu a segunda parte do Quixote. Dessa vez, porém, assinada por um certo Avellaneda, um fadre dominicano que, tomando as dores dos injuriados, tentou transformar, à sua maneira, o personagem tão perigoso.
Interrogado sobre o seu ato, e porque havia se apropriado da obra deum outro escritor, o frade teria declarado: “Esse Cervantes está mais velho que o castelo de Cervantes” (um dos mais antigos de Espanha), “E, ainda por cima, manco”.

O que era uma mentira. Miguel de Cervantes havia perdido o movimento da mão, não a mão propriamente dita. Quanto ao fato de acusá-lo de “velho”, dom Miguel foi sucinto: “Não tenho como parar o tempo. Mas, de uma coisa eu sei: com o tempo, o entendimento só cresce.”
Dito isso, decidiu escrever a segunda parte do seu Quixote, a grande obra-prima do escritor (assim como a segunda parte de Aventuras de Tom Sawyer, o Huckleberry Finn é o grande livro de americano Mark Twain, um grande quixotesco).

Não foi preciso muito tempo para que ninguém lembrasse mais das garrujices do pobre frade dominicano. Avellaneda entrou na história pela porta dos fundos e foi por ela também que saiu. Cervantes, enquanto isso, mesmo vivendo uma vida de penúria e dificuldades, só via sua glória aumentar.

Tão impressionante foi a presença e a influência do Quixote, que, depois de lançadas as duas partes — a segunda parte do romance aparece por volta de 1615, os romances de cavalaria, publicados às pencas nos últimos cem ou duzentos anos, simplesmente desapareceram de circulação. Ninguém tinha mais coragem para escrevê-los.

Antonio Cescatto é escritor. Autor do romance O mundo não é redondo (2010) e das novelas Preponderância do pequeno (2011) e Cloaca (2012). Nasceu em Curitiba (PR), onde vive.