Livro e Leitura

A biblioteca da escola: silêncios e burburinhos


Nilma Lacerda

Livro e Leitura

Para jovens moradores de cidades periféricas de Paris com altos registros de violência e prognósticos de vida limitados, a frequência a bibliotecas tem desvendado outras vidas possíveis, descortinadas no deslocamento propiciado pelas ficções, que acenam com riscos diversos para as existências pessoais. Michèle Petit, em Os jovens e a leitura, pesquisa desenvolvida com recursos públicos, leva-nos ao coração da biblioteca. Em seu pulsar, podemos auscultar algumas cenas.

A cena antológica em Asas do desejo, filme de Wim Wenders
Dois anjos sobrevoam Berlim Ocidental, no final dos anos 1980. Transitam invisíveis por entre os humanos, observando seus comportamentos, conferindo o consolo de um toque corporal — tudo o que podem fazer. Ao sobrevoar a Biblioteca de Berlim, ouvem o burburinho singular, que os leva a entrar e ver os leitores debruçados sobre os livros abertos, ruminando suas leituras, ouvindo as vozes que emanam das obras.

Apesar de Proust nos dizer que a leitura não é uma conversa, a metáfora da voz em silêncio dentro de um livro, e libertada no momento da leitura, é bastante forte na cultura ocidental e alimenta o imaginário do leitor, tal qual a representação do cineasta Wim Wenders evidencia.

A cena do castigo escolar
No corredor de um colégio há três meninos de castigo. Um deles chora. A jovem universitária, que aí desenvolve um projeto de leitura de literatura, pede licença ao inspetor para levá-los para a biblioteca, e começa a ler para eles um texto sobre poesia, castigos escolares, amizades juvenis. O garoto que chora diz que não quer saber de nada. Ela compreende, mas continua a ler para os outros que não só gostam de ouvir a leitura, como, evidentemente, preferem essa situação àquela de ficar em pé no corredor. De repente, um dos garotos critica a forma como a moça lê, você está representando muito, diz. Devia ser mais natural, continua. E vai tecendo considerações que são interrompidas pelo colega que não queria saber de nada. Gosto como ela está lendo, deve ser desse jeito, com emoção — disse, sustentando a conversa, trazendo outros elementos para fundamentar sua opinião.

Na creche, os monstros dentro dos livros
São três crianças, entre quatro e cinco anos, na biblioteca da creche de uma universidade pública. Duas estão sentadas em um banco, outra de pé, mas todas com livros nas mãos ou sobre as pernas. Livros de monstros. A criança que está de pé aponta os monstros de seu livro para os colegas: risos, gritinhos, cara escondida, medos. (Os livros, com seus monstros, continuam abertos.) O pequeno bibliotecário estava entusiasmado e falava alto, dava pequenos gritos.

A bibliotecária a postos vem, então, conversar com ele. “Você não acha que está fazendo muito barulho? Sabe onde nós estamos? Então? O que é que podemos fazer? Não acha que pode falar mais baixo?” — intervém.

Olhei em volta: na biblioteca estávamos as três crianças, a bibliotecária, uma auxiliar e eu. Quem se incomodava com os gritinhos dos dois e a voz exaltada do narrador? Como ler os monstros sem fazê-lo em voz alta, bem alta, exorcizando-os? Como ver as coisas terríveis sem rir de nervoso, gritar de medo?

De frente para as cenas, construindo sentidos
Em um dos filmes mais importantes do final do século XX, Wim Wenders investe na imagem da biblioteca como espaço de vozes que se entretecem, numa alegoria à polifonia presente na leitura, desejável e possível apenas em tempos de democracia e liberdade. Essas muitas vozes que se cruzam em efeito harmônico podem mostrar-se na época em que a cidade de Berlim está prestes a se reinventar. Com a derrubada do Muro, a biblioteca pode liberar os burburinhos que sempre estiveram lá e não podiam se manifestar.

A liberação do controle de comportamento na biblioteca encontra no último quarto do século XX um espaço de discussão, provocando mudanças nas maneiras de ler. A partir da análise de obras de Norbert Elias sobre civilização dos costumes, Roger Chartier observa como, entre os séculos XVI e XIX, se efetuou a regulação e o controle sobre os comportamentos nas bibliotecas. Se o “[....] lugar de leitura deve ser separado dos lugares de um divertimento mais mundano — aqueles onde se pode beber, conversar e jogar” (CHARTIER, 1999, p. 78), a história das práticas de leitura a partir dos anos 1700, mostra uma história de liberdade na leitura, por meio de representações iconográficas em que o leitor não mais aparece imóvel e isolado no ato de ler.

Muitos comportamentos e perspectivas se modificam, grandes conquistas e grandes perdas são realizadas no curso da história e, nesta segunda década do século XXI, estamos discutindo a biblioteca escolar, em seus valores e comportamentos, considerando sua existência e apropriação por parte de crianças e jovens, condição essencial para uma educação de qualidade.

Da humilhação e mágoa do menino posto de castigo, na segunda cena, à participação na atividade e avaliação da metodologia de leitura, que percurso percebemos e que relações se mostram possíveis, a partir do espaço da biblioteca?

Evidencia-se a relação de apropriação com o espaço, seja pela ação da bibliotecária, seja pelas leituras que a jovem e suas colegas realizam costumeiramente. A biblioteca está, portanto, bem contornada como lugar de fruição de um patrimônio comum. Aí se podem tomar livros, jornais ou revistas emprestados, pode-se ler em momentos livres, pode-se ouvir a leitura de livros. Mas a modificação acontecida no menino ultrapassa essa percepção. A leitura, obviamente, tira a atenção focalizada na humilhação, e provável injustiça, e leva-a para uma narrativa em que, não por acaso, há descrição de castigos escolares semelhantes àquele de que o menino fora vítima. Quando o colega interrompe a leitura para discutir a maneira pela qual é feita, ele sente-se completamente inserido não apenas na dinâmica do ato de ler ou de ouvir uma leitura, mas descobre-se também posto em relação interpessoal com os presentes. Percebe ser um eu no outro, que solicita de forma indireta a resposta dele.

O processo de inserção — o eu em outro —, é fruto do deslocamento causado por aquilo que podemos chamar, com licença poética, de viagem por universos da ficção, ou, se nos ativermos à identificação com os personagens, essa possibilidade de ver-se apanhado e salvo nos dilemas e peripécias de um ser construído de palavras. Este menino humilhado participa, sem o saber, do pensamento de John Adams, coletado por Hannah Arendt: “Se Crusoé tivesse a biblioteca de Alexandria em sua ilha, e a certeza de que nunca mais veria a face de um homem, será que ele jamais abriria um volume?”

É a certeza do rosto humano a nos mirar que incita ao ato de ler, que permite no outro o reconhecimento do eu como humano. A cena é riquíssima: ciente do rosto humano, sentindo-se um eu no outro, ele se insere na dramatização de uma representação do real, dada pela leitura que ouve, e é chamado a avaliar o nível dessa representação.

Se nossa conversa se alongasse, traríamos o pensamento de Chartier em relação aos constrangimentos presentes na ordem dos livros, mas também a certeza de que o leitor acaba sempre por burlar esses controles. Traríamos pensamentos de educadores que nem sei e que justificam medidas de controle sobre todos os espaços da escola, inclusive e principalmente sobre a biblioteca. Traríamos outros pensamentos de história da leitura para melhor contornar a biblioteca escolar, de que tratamos aqui. De um espaço presente e futuro, como o é todo espaço, além de passado. Do lugar em que muito se pode encontrar, garantido pela única figuração do universal, a letra, no dizer de Kant. É a letra que assegura a transmissão de um pensamento através de todas as dimensões temporais, de todas as dimensões espaciais. Nela se encontra o humano, como enfatiza Jean Rostand, um biólogo que, no início do século XX, se empenhou na divulgação do conhecimento, e que enfatizou em seus escritos o fato de que a civilização humana não reside nas pessoas enquanto seres biológicos, mas está nas bibliotecas, nos museus, nas universidades, como construção de um projeto social.

Nilma Lacerda é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, pesquisadora em leitura e escrita e especialista em literatura para crianças e jovens. Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Ilustração: Rita Solieri