Literatura em Cena | Belo Horizonte

Muitos escritores à procura de leitores

Berço de renovadores da literatura brasileira como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e Murilo Mendes, Belo Horizonte continua a gerar bons autores, mas sofre com a falta de leitores interessados na produção local


Marcelo Miranda

Foto: Divulgação

Carlos de Brito e Mello iniciou sua carreira publicando pela editora Scriptum, de BH, mas depois migrou para a Companhia das Letras, que publicou seu segundo livro, o romance A passagem tensa dos corpos.

Todos os sábados pela manhã, a Savassi — região comercial na zona sul de Belo Horizonte — recebe variados lançamentos de livros, atraindo dezenas de pessoas que circulam pelo “corredor livreiro” que inicia na rua Fernandes Tourinho, passa pela avenida Cristóvão Colombo e se completa na rua Paraíba. Poesia, prosa, infantil, ilustração, revista, jornal: tem espaço para todo gênero e conceito. O grande mistério, porém, permanece: onde estão os consumidores da literatura produzida em Minas Gerais?

A questão talvez seja o grande entrave literário do Estado atualmente. Em Belo Horizonte, onde se concentram autores, editores e livrarias, falta, em âmbito geral, a parte final da equação: o leitor. “A ficção brasileira hoje no Brasil não é consumida”, afirma o crítico literário e produtor Afonso Borges, usando como principal medida de argumento as listas de títulos mais vendidos no país. “Dê uma olhada em qualquer lista dessas. Não há autores brasileiros, porque falta interesse pela nossa literatura”. Mesmo o best-seller que se tornou Toda Poesia, reunião da obra poética do paranaense Paulo Leminski, é a típica exceção que apenas reforça um dado concreto, conforme aponta Borges.

Se a situação é assim em âmbito nacional, em Minas Gerais o reflexo tem sido ainda mais forte. Berço de renovadores da literatura brasileira até hoje estudados e incensados — Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Murilo Mendes, Fernando Sabino, Pedro Nava, para citar apenas alguns mais óbvios —, a literatura mineira vem de uma tradição que, se continua mobilizando novos autores, não encontra respaldo na produção contemporânea. “A literatura perdeu muito de seu espaço nas últimas décadas em comparação ao prestígio que acumulou até meados do século XX. Em Minas, isso não é diferente”, diz o crítico, jornalista e poeta Fabrício Marques. “Ao mesmo tempo, vejo crianças lendo com interesse livros de coleções de aventura. Precisamos, portanto, descobrir formas de atrair o interesse.”


“Acho que Minas tem hoje uma cena literária muito viva e variada, tanto na poesia quanto na prosa.

Não me atrai pensar em uma literatura ‘mineira”,

 Ana Martins Marques, poeta.


Na opinião de Afonso Borges, alguns dos principais autores mineiros em plena atividade no cenário nacional — entre eles, os poetas Mário Alex Rosa e Ana Martins Marques e os romancistas Carlos de Brito e Mello, Jeter Neves e Carlos Herculano Lopes — acabam deixados de lado pelo que ele aponta como desinteresse, tanto dos leitores em geral quanto de professores e acadêmicos. “A universidade há muito abandonou a literatura brasileira. As novas gerações estão sem referência, os novos autores ficam sem apoio e as editoras, dando tiros no escuro, acabam por parar de publicá-los.”

Param ou, no caso de empresas como a Scriptum — há oito anos publicando livros em Belo Horizonte —, abrem caminho para autores que posteriormente vão encontrar abrigo em casas editoriais de maior porte fora de Minas Gerais. Aconteceu com os citados Carlos de Brito e Mello (cujo volume de contos O cadáver ri dos seus despojos saiu pela Scriptum em 2007, dois anos antes de ele publicar seu primeiro romance, A passagem tensa dos corpos, pela Companhia das Letras), Ana Martins Marques (A vida submarina pela editora mineira em 2009, Da arte das armadilhas pela Companhia em 2011) e Mário Alex Rosa (Ouro Preto na Scriptum em 2012, Via férrea pela Cosac Naify este ano).

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Nessa “intensa aventura” de publicar em Minas, como define Welbert Belfort, editor da Scriptum, há também outras editoras, de catálogos variados — como a Crisálida e a Autêntica — e também algumas ligadas a instituições, casos da Editora UFMG e da Funalfa (esta, em Juiz de Fora).

“Temos muito orgulho de chamar atenção para alguns autores e vê-los publicando em editoras de outros Estados, pois infelizmente o leitor mineiro ainda valoriza apenas aquilo que é reconhecido lá fora”, comenta Belfort. “Nunca gostei desse tipo de reclamação, mas constatei ser verdade: o reconhecimento para aquilo que é ‘legitimado’ em outro Estado ou país é real em Minas. Isso cria um círculo vicioso, pois os autores buscam editoras fora de Minas porque só assim vão ser lidos por seus conterrâneos, e os leitores mineiros ignoram os autores de seu estado enquanto eles não publicam fora”.

A poeta Ana Martins Marques (foto) prefere olhar para a literatura sem delimitações de espaço. “Acho que Minas tem hoje uma cena literária muito viva e variada, tanto na poesia quanto na prosa. Não me atrai pensar em uma literatura ‘mineira’”, diz ela. “Me interessa mais tentar observar como a literatura feita em Minas se conecta a outros contextos e tradições, num processo de elaboração que não se contém nas fronteiras do Estado.”

Num contexto em que a demanda por publicar segue cada vez mais alta, alguns outros nomes que se destacam na literatura mineira contemporânea já têm trajetórias sedimentadas, mas permanecem um tanto à margem da atenção da grande mídia justamente por permanecerem editando no Estado, como Ricardo Aleixo, Antonio Barreto, Libério Neves, Adão Ventura, Edimilson de Almeida Pereira e Sebastião Nunes, entre outros.

PUBLICAÇÕES E INCENTIVOS
Em termos de espaços para divulgação da literatura, Belo Horizonte conta com a Bienal do Livro de Minas, evento cuja próxima edição está prevista para 2014. Trata-se de típica feira literária, composta por estandes de editoras, programação cultural, lançamentos, mesas de debates e espaços de discussão. É ainda a principal iniciativa do gênero na capital. No interior, a Flop — Fórum das Letras de Ouro Preto, realizado pela UFOP (universidade federal), teve sua primeira edição em 2005 e, desde então, anualmente tenta seguir os moldes da Flip (Feira Literária de Paraty) na maneira de se organizar e apresentar a programação, realizando debates temáticos, leituras e homenagens.
 
“Eu acredito em um modelo de evento experimental e inovador como foi a Bienal de Poesia em 1988, que teve apenas uma edição e trouxe grandes nomes para BH, gerando espaço fértil de discussões, poderia ser um contraponto ao modelo estritamente comercial das feiras de hoje”, diz Fabrício Marques. “Não acho que as feiras precisem acabar, mas o poder público tem que oferecer biscoitos finos e investir na formação de leitores, na formação de autores, no fomento de produção de nomes já estabelecidos, na divulgação de editoras pequenas, no estímulo à crítica literária, entre outras ações.”

Nas publicações, o único periódico regular de literatura produzido em Belo Horizonte é Suplemento Literário de Minas Gerais, fundado em 1966 por Murilo Rubião e ainda hoje um espaço para ensaios, ficção, poesia, resenhas, artigos e trabalhos de experimentação. Editado pela Secretaria de Estado de Cultura, tem como superintendente o contista Jaime Prado Gouvêa. Com nova edição a cada dois meses (formato jornal tabloide) e dois especiais anuais (formato revista), o Suplemento possui distribuição gratuita para assinantes, escolas, livrarias, universidades e secretarias de educação. Entre os jornais diários, apenas o Estado de Minas mantém um caderno semanal dedicado à literatura e à reflexão cultural aprofundada, intitulado “Pensar” e publicado aos sábados.

Ana Martins Marques chama atenção para o Chão da Feira, outro periódico — virtual, recente e de caráter intercontinental. “É uma publicação independente com um pé em Lisboa e outro em Belo Horizonte. Além de colocar no ar, a cada mês, um ‘Caderno de Leitura’ online, lançou no ano passado o primeiro número impresso da revista Gratuita, com ensaios, ficção e poesia”, destaca a poeta. “Acho que o Chão da Feira revela bem como, hoje, é possível fazer projetos plurais, com conexões que abarcam não apenas duas cidades e dois países, mas também tradução e criação, pensamento e poesia, impresso e digital.”

Para incentivar a escrita literária no Estado, dois editais governamentais se destacam. Um é o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, de caráter nacional, administrado pela Fundação Municipal de Cultura. Criado em 1947, na celebração dos 50 anos de fundação da capital mineira, foi suspenso em 2011 e retomado recentemente, para alívio da classe literária. Na recente edição, cada uma das quatro categorias (conto, dramaturgia, poesia e romance) oferecia R$ 50 mil ao trabalho escolhido.

Em nível estadual, o Prêmio Governo de Minas Gerais — que em 2013 vai distribuir R$ 212 mil — é organizado por uma diretoria do Suplemento Literário. Com concursos anuais desde 2008, reconhece autores de qualquer parte do Brasil nas categorias de prosa (conto ou romance, que se alternam a cada ano) e poesia; a categoria de jovem escritor é exclusivamente para autores mineiros, ou residentes no Estado, com idade entre 18 e 25 anos; e há ainda o prêmio por conjunto da obra, dado a grandes nomes da literatura brasileira a partir da escolha de um júri formado especialmente para a tarefa. Desde quando criado, os nomes agraciados nesta categoria foram Antonio Candido, Sérgio Sant’Anna, Luis Fernando Verissimo, Silviano Santiago, Affonso Ávila e Rui Mourão.