Literatura Paranaense | Anos 1980

Criar Edições – ou: o Besouro Voador

A partir da experiência como editor da Criar Edições, o romancista Roberto Gomes relembra como era o cenário editorial dos anos 1980 em Curitiba, época marcada pelo cooperativismo de autores

O que acontece no setor editorial em Curitiba tem seu começo nos últimos anos da década de 1970. Ali encontramos duas iniciativas pioneiras. As editoras Beija-Flor e CooEditora estão de alguma forma na origem do que ocorrerá na década seguinte.

É sabido que Curitiba é e sempre foi — sempre será? — um terreno estéril para iniciativas editoriais. Antes da década de 1970 só encontramos uma iniciativa editorial de verdade, a Editora Guaíra, nos anos 1940 e 1950. No mais, aqui saiam edições do autor com selos fantasia, não raro em fatiotas gráficas amadoras.

                             Kraw Penas
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Wilson Rio Apa foi um grande agitador cultural desde o final do anos 1950. Escreveu livros 
de contos, romances e textos para teatro, além de ter fundado um grupo de teatro amador 
chamado Capela.

Até mesmo Dalton Trevisan, antes de ser lançado pela Civilização Brasileira, imprimia seus livretos — em formato assemelhado aos livros de cordel — na Gráfica Vicentina. Depois, ele os distribuía de mão em mão a amigos e conhecidos na Boca Maldita. E não deixava de enviá-los aos melhores críticos literários da época — esclareço: na época existiam críticos literários. Hoje os livretos do Dalton são preciosidades caçadas por bibliófilos e pelo próprio autor, que destrói edições ou textos dos quais não gosta mais.

A experiência da Beija-Flor foi a primeira tentativa editorial. O escritor Werner Zotz, que a dirigiu, veio a ser também editor da CooEditora. Na Beija Flor foram editados livros hoje infelizmente esquecidos. Dou alguns exemplos. De Fernando Nogueira, Os amigos da noite. De José Angeli, um romance muito interessante, A cidade de Alfredo Souza, prejudicado pela edição desastrosa, cheia de defeitos. Além disso, a Beija-Flor encontrou seu best-seller num livro infantojuvenil chamado O anãozinho do paletó verde, de L. Romanowski, que andou por várias edições.

A experiência da Beija-Flor foi a primeira tentativa editorial. O escritor Werner Zotz, que a dirigiu, veio a ser também editor da CooEditora. 

Na Beija Flor foram editados livros hoje infelizmente esquecidos. Dou alguns exemplos. De Fernando Nogueira, Os amigos da noite. De José Angeli, um romance muito interessante, A cidade de Alfredo Souza, prejudicado pela edição desastrosa, cheia de defeitos. Além disso, a Beija-Flor encontrou seu best-seller num livro infantojuvenil chamado O anãozinho do paletó verde, de L. Romanowski, que andou por várias edições.

Era a hora da ditadura

É preciso lembrar que eram anos de ditadura. Entre 1978 e 1979 vivíamos a passagem de poder entre dois ditadores: Figueiredo sucedia a Geisel. Viveríamos ainda anos de terror e perseguição. No entanto, aquele foi um período de grande ebulição cultural. Havia um desejo de vencer o antigo e criar o novo.

Bem ao estilo da época, quando o cooperativismo parecia uma alternativa política e social para o Brasil, cerca de doze escritores reuniram-se na CooE ditora. De memória, cito alguns em ordem alfabética: Alencar Furtado, Airo Zamoner, Cristovão Tezza, Fernando Nogueira, José Angeli, Wilson Rio Apa, Werner Zotz e eu.

Com todas as deficiências de um empreendimento quixotesco, foi a primeira vez que se falou em tiragens de mais de mil exemplares, em adoção em escolas e universidades, em distribuição nacional, em divulgação nos principais jornais do país, em pagamento de direitos autorais. 
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De Alencar Furtado, deputado federal cassado em 1977, foi publicada uma coletânea de artigos, Órfãos do talvez, e, de Almino Afonso, deputado federal cassado em 1964, foi editado Espaço entre farpas (1980). Tezza publicou A cidade inventada, em 1980. Rio Apa, no mesmo ano, publicou um alvoroçado Manifesto do povo. Fernando Nogueira, os contos de Os desaparecidos. Eu publiquei o romance Alegres memórias de um cadáver. Títulos e autores que mostram as tensões políticas do momento. 

Faço esse registro rápido e que terá lacunas graves, para alertar que havia um grande movimento literário e cultural no Brasil e em Curitiba. Uma grande inquietação e desejo de mudança. Portanto, a experiência editorial da Criar Edições surge nesse caldo, em 1980.

Criar edições 

A Criar teve como sócios fundadores, além de mim, Cristovão Tezza e Iria Zanoni. O nome da editora foi encontrado depois de gastarmos uma tarde levantando sugestões. Lá pelas tantas, coloquei no papel o CR de Cristovão, o IA do final de Iria e o R de Roberto. Lá estava o nome que buscávamos: Criar. 

Não chegou a ser uma grande editora, mas em 1986 ela atingiu o 50º lugar no ranking das cem maiores editoras brasileiras. Para os íntimos, a Criar recebeu o apelido de Besouro Voador. Como se sabe, o besouro é um bicho cuja aerodinâmica não permite voar. No entanto, voa. Na primeira fase (de 1980 a 1989), lançou mais de cinquenta títulos e, em um segundo momento (de 2000 a 2006), somou outros quarenta e tantos. 

Na primeira fase contou com uma estrutura bastante profissional. Estabeleceu um padrão editorial rigoroso, uma linha de publicações, fossem ou não de autores paranaenses. Estabelecemos editoração profissional, com equipe de revisão, de programação visual, dados técnicos da obra. Além de lançamentos dos livros, inclusive em feiras e bienais do livro. 

Os autores editados, além de mim, foram, entre outros: Cristovão Tezza, Luiz Galdino, Sérgio Faraco, Alice Ruiz, José Eduardo Degrazia, Iria Zanoni, Dinorath do Valle, Eglê Malheiros, Helena Kolody, Paulo Leminski, Sidônio Muralha, Antônio Manoel dos Santos Silva, Jorge Lescano, Valêncio Xavier. Além de duas antologias: Contos cubanos e Feiticeiro inventor, essa última reunindo poetas paranaenses. Numa segunda fase, novos autores. Almir Feijó, Antonio Godino Cabas, João do Rio, João-Francisco Duarte Jr. E o poeta Walmir Ayala. Várias obras de linguística foram editadas. Autores: Sírio Possenti, Haquira Osakabi, Domenique Maingueneau e Carlos Alberto Faraco. Em literatura, as crônicas de Carlos Dala Stella. E foi a primeira editora a publicar Jamil Snege em livro. Como é sabido, Jamil tinha horror a editores, mas cedeu ao convite que fiz. 

Autores e premiações

Grande alegria foi lançar Helena Kolody. Ao receber o convite, ela reagiu com a pergunta clássica de autor curitibano: quanto teria que pagar pela edição do livro? Explicamos que ela não pagaria nada. Ao contrário, receberia 10% de direitos autorais. Não acreditou. 

Helena custeara a publicação de todos os seus livros, desde o primeiro, de 1949. Professora do Instituto de Educação, economizava seus trocados, comprava papel e levava ao chefe da gráfica da Escola Técnica do Paraná, que imprimia o livro a bom preço e com cuidados de antigo tipógrafo. Assim publicou durante 36 anos. Fazia tiragens de cem ou duzentos exemplares, tantos quanto suas economias permitissem, e os distribuía a amigos, alunos, colegas de magistério. 

Dela publicamos Sempre palavra (1985) e Poesia mínima (1986). Em 1988, saiu uma reunião de suas obras. Helena releu todos os seus livros durante um mês, me deixou atordoado com tantas emendas, eliminou poemas dos quais não gostava, reescreveu outros, cortou aquilo  que julgava excessos de juventude. Viagem no espelho se tornou um sucesso. 

Quando do lançamento, uma jornalista me perguntou por que editar Helena Kolody. Respondi:

— Porque Curitiba precisa amar alguém. 

Frase que circulou com algum sucesso. 

Feira do livro 

Os anos 1980 contaram também com várias edições de uma feira do livro, na Praça Osório, que reunia livreiros, distribuidores, editores e autores de Curitiba. Foi difícil vencer a resistência de livreiros locais, que condicionavam a participação à eliminação de algum livreiro concorrente. Como se sabe, toda província tem suas capitanias hereditárias. Foi preciso muita diplomacia para dobrar vaidades e teimosias.

Chegamos a fundar uma efêmera Câmara Paranaense do Livro. Mas reunir a classe não era tarefa possível. Isso perdura até hoje. Curitiba não tem uma feira do livro organizada localmente, a exemplo da magnífica feira de Porto Alegre, iniciada em 1955 e chegando, em 2016, a sua 62ª edição. Aqui temos apenas “feiras do livro” que são empreendimentos comerciais alheios a qualquer significação cultural. Talvez o provincianismo seja invencível. 

Entre autores e livros editados, cerca de oitenta e poucos, a Criar fez um bom trabalho. É verdade que não gerou uma indústria editorial com várias casas editoriais, como desejávamos. É de lamentar. 

O que fizemos foi com esforço próprio. Nunca dependemos de verbas de governo, nunca pedimos favores a governantes — não por arrogância, mas porque a edição de livros, para ter um papel cultural sério, deve ser assim: aventureira, livre e sujeita a chuvas e trovoadas. Fora das asas do Estado. 

Na primeira fase, a Criar foi derrotada pelos desacertos dos governos Sarney e Collor, bem como pela inflação galopante que ceifou editoras médias e pequenas. Voltamos no ano 2000 e editamos por mais seis anos. Mas encontramos outro mundo. Um mundo que não tem desejos de mudança, que lê cada vez menos, um mundo do qual as livrarias sumiram, restando esses elefantes brancos tocaiados em shoppings com seus best-sellers inúteis e autores plastificados, poucos deles bons, mas todos muito bonzinhos, se me entendem. 

Mas ter convivido com tantos escritores e ter viabilizado a publicação de tantas obras foi uma alegria insuperável.


Roberto Gomes nasceu em Blumenau (SC), em 1944, e reside em Curitiba. É autor de romances, contos, crônicas, livros infantis e de filosofia. Foi professor universitário, aposentado em 1998 pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), e editor da Editora da UFPR e da Criar Edições.


Legado literário fundamental

Da redação

Alguns dos autores paranaenses atualmente conhecidos em âmbito nacional (uns mais, outros menos) já estavam em atividade na década de 1980. Paulo Leminski (1944-1980), Jamil Snege (1939-2003), Alice Ruiz, Manoel Carlos Karam (1947-2007), Valêncio Xavier (1933-2008), Wilson Bueno (1949-2010) e Luci Collin são algumas das vozes que, há mais de três décadas, escreviam e publicavam — naquele contexto, inicialmente com ressonância local.

A partir da criação do jornal Nicolau, em 1987, os escritores paranaenses conseguiram atingir leitores em diversos pontos do país. Viabilizado pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná (Seec), o suplemento dirigido por Wilson Bueno fez História abrindo as páginas para nomes da literatura brasileira, como Luis Fernando Verissimo, Ferreira Gullar e Milton Hatoum, e também aos expoentes locais, em especial, aos citados no parágrafo anterior.

Leminski, Snege, Alice, Karam, Xavier, Luci e o próprio Bueno publicaram os seus textos inventivos no Nicolau, que circulou com distribuição gratuita até 1996, quando foi extinto — recentemente, a Seec, por meio de seu Núcleo de Edições, publicou a reedição fac-similar dos 60 números do suplemento literário.

Outros paranaenses, como Rodrigo Garcia Lopes, Marília Kubota, Roberto Prado, Sérgio Rubens Sossélla (1942-2003) e Antonio Thadeu Wojciechowski também tiveram oportunidade de publicar no Nicolau e, ainda na década de 1980, já começavam a chamar a atenção de leitores devido aos seus trabalhos artísticos. Outros nomes que também se destacaram no período foram Walmor Marcellino (1930-2009), Regina Benitez (1934-2006), Leopoldo Scherner (1919-2011) e Nelson Padrella.

Vale ressaltar que, naquele contexto, alguns escritores paranaenses — coincidência ou não — sem contrato com editoras comerciais — puderam, e conseguiram, experimentar na linguagem, principalmente Snege, Karam, Xavier e Bueno.

A atitude do quarteto frutificou. 

No século XXI, prosadores conhecidos nacionalmente, como Joca Terron, Marçal Aquino e Marcelino Freire, entre outros, demonstrariam interesse no legado de Snege, Karam, Xavier e Bueno. Autores do Paraná que estrearam a partir do ano 2000 também encontraram nas obras do quarteto experimental, e também na poesia de Leminski e Alice Ruiz e na prosa de Luci Collin, matériaprima e ponto de partida para a aventura no mundo literário.