Ideia pra conto

O cenário é uma casinha charmosa num sítio na Mantiqueira. Bob tá lá escondido, junto com a amante. Levou consigo 2 millhões de dólares em duas estufadas malas de rodinha. O ervanário é fruto de corrupção no departamento de compras de uma estatal, agência governamental, fundação, instituto, secretaria, departamento ou bosta oficial que o valha. É só abrir o jornal de ontem, de hoje ou de amanhã que os exemplos de maracutaias desse tipo escorrem em abundância das páginas.

Esse Bob é tido como gente fina, grande amigo dos amigos, inteligente, bem formado intelectualmente, com MBA em finanças públicas na GV e bons contatos no mundo político, o que tem lhe valido indicações para postos estratégicos na administração pública, nos quais tem sido possível desviar não poucas verbas. Casado, com filhos, esse Bob contou pra mulher que precisava sair de circulação por conta de uma sindicância na, digamos, Fudesp, onde ocupa uma diretoria. Ele diz que pediu licença do cargo, o que é verdade, até que seus advogados consigam fazer baixar a poeira das denúncias de que é alvo.

A mulher entende a situação, pois sabe que o marido anda implicado em transações bem pouco ortodoxas lá na porra da Fudesp. O que ela não sabe é que o maridão levou pra Mantiqueira uma amante, a Celina, sua secretária. O sítio pertence a um amigo do Bob, que, por segurança, prefere manter o endereço em segredo, segundo diz à esposa.

Então, lá estão Roberto e Celina, sua amante, aconchegados no acolhedor chalé de montanha, sem sinal de internet nem de telefone celular. O propinório está guardado em sacos de esterco seco num paiolzinho nos fundos do terreno crivado de araucárias, às margens de um romântico riacho de águas límpidas.

O reluzente e chamativo Audi S5 vermelho do Bob, de 500 mil reais, está estacionado debaixo de uma árvore, bem ao lado do chalé. A caranga de luxo é um dos xodós de sua vida. O outro é a bela Celina, a quem Bob fez vagas promessas de um casamento futuro, o que pode ou não ser verdade, vai saber. Confiando na boa índole do povinho miúdo da roça, Bob sente-se perfeitamente seguro ali. Nenhum caipira vai roubar um sedan esportivo alemão último tipo que dá na vista em qualquer lugar por onde passe. Ou sua deliciosa companheira. Povo ali é muito respeitador. Tampouco alguém teria a ideia de ir fuçar nos sacos de esterco do paiol, usados pra adubar a terra. Quem é que haveria de querer roubar bosta seca de vaca e boi?

E é assim que, entre fondues, vinhos caros e trepadas ao pé da lareira, o tempo passa numa boa pro casalzinho apaixonado, sem sobressaltos de qualquer natureza. Até que a realidade vem mudar a escrita dos planos do Bob, sob a forma de dois bandidelhos de fora da pacata região que passam casualmente num velho fusca roubado pela estradinha de terra e avistam o carrão vermelho ao lado do chalé, numa noite chuvosa. São dois pés-de-chinelo, muito jovens e meio patetas, que acabaram de roubar umas galinhas de um sítio vizinho. Sim, são ladrões de galinha, mas têm uma pistola automática e decidem faturar um trôco bão assaltando quem quer que esteja dentro daquele chalé, com fumacinha saindo da chaminé. Em poucos minutos sairão dali com grana viva no bolso e a bordo do carrão do bacana ali hospedado. Se não conseguirem vender o carro, pelo menos darão umas bandas com ele “por aí tudo”. Com uma máquina dessas vai ser muito fácil “de pegá muié”.

Mas eis que Bob e Celina ouvem lá fora um ‘Ó de casa!’ Eles veem pela janela um capiau segurando uma galinha viva debaixo dum guarda-chuva. É um tipo simplérrimo e nada ameaçador. De robe de chambre, Bob abre a porta pra ver do que se trata, no que é rendido pelo comparsa do garoto da galinha, de berro na mão. Ele e Celina são amarrados com fios que acham por ali.

“E então?”, diz o mais velho dos intrusos. “Cadê a grana, cadê a chave do bólido lá fora, cadê as jóia?”.

Bob diz que as chaves estão “naquela gaveta ali”, junto com sua carteira, recheada de cartões de crédito e débito, mais uns mil e tantos reais. A dupla resolve engrossar. Acham que tem mais dinheiro escondido em algum lugar. Ameaçam torturar o casal se não abrirem o jogo. Antes, porém, tomam a providência de estuprar Celina, primeiro um, depois o outro. Bob a tudo assiste, morrendo de medo, mas com indisfarçável tesão. Depois de muito refocilar no corpinho da secretária, um deles apanha da lareira um pau com a ponta em brasa e ameaça marcar o rosto do Bob. Bob chora, jura que não tem mais dinheiro com ele, mas que poderia tirar mais grana com os cartões na primeira cidade com um banco Itaú com caixa eletrônico 24 horas. Ele poderia lhes dar as senhas dos cartões. Enquanto um fica ali no chalé tomando conta do casal, o outro poderia tratar de sacar o dinheiro num caixa eletrônico. “Pode ir com o Audi. É um tremendo carro. Só me deixem a menina em paz, pelo amor de Deus.”

Há uma discussão entre os dois assaltantes, que divergem sobre o que fazer. Um quer cair logo fora com a carteira do Bob, mais as poucas jóias de Celina e o carrão do homem. Mas o outro encasqueta: “Tô sentindo cheiro de grana grossa. Vamo barbarizá até esse corno abrir o jogo”.

O outro parça concorda, mas diz: “Di primêro, vamo dá uma geral aqui na casa e naquele paiolzinho lá no fundo do terrreno. Se a gente achar alguma coisa, eu mesmo dô um pipoco no meio das ideia desse corno”.

Ouvindo isso, Bob tem um insight. E manda, com voz de desespero:

“Se vocês acharem alguma coisa de valor que eu esqueci de falar, eu mesmo me mato na frente de vocês. Palavra de homem.”

Celina grita: “Não, Bob! Não! Não! Não!” Etc.

Os malas resmungam mas saem revirando a casa toda, quebrando taças, pratos, elementos decorativos, além de tomarem no gargalo o caro Chateau Petrus que o casalzinho degustava em boa paz. Um dos assaltantes sai lá fora pra revistar o paiol. Alumiando a escuridão com uma lanterna achada na casa, o garotão rasga os sacos de esterco com seu canivete e topam com o tesouro em espécie acondicionado em sacos plásticos rescendendo a bosta seca.

O mais esquentado da dupla diz mais ou menos assim: “Vamo detoná a mioleira do pleiba espertinho aqui, antes de fudê mais uma vez essa belezinha pendurada nele. Fudê inté enjoá. Ou o contrário: vamo dexá ele assisti a última fodelança da muiezinha dele. Daí, apagamo ela na frente dele. Daí, apagamo ele”.

O comparsa lembra da promessa do homem: “O corno aí num falô que se matava se a gente topasse com grana escondida? Então. Vamo vê se ele tem culhão. Dá o cano pra ele. Se o corninho não tivé culhão de se estorá, a gente corta os culhão dele e joga na lareira. Deixa ele sangrá até morrê”.

Bob é desamarrado e empalma a .357, objeto que pesa fatal em sua mão trêmula. Aperta os olhos, aponta a arma pra têmpora, dedo no gatilho. Parece que vai, que vai mesmo rolar o suicídio anunciado. O bacana tá se cagando de medo. Mas tenta enfrentar a barra de se autoaniquilar, verbo que não ocorre a ninguém ali, mas pelo qual esperam atentos os dois galetos, que nunca devem ter visto um suicídio ao vivo.

Tudo vai mal, mas, eis, porém, que, de repente... num gesto rápido e preciso ele aponta a arma pra testa do rapazola à sua frente. Bang, ferida, sangue, corpo que cai. Antes desse aí cair total, pá-pá-pá, chumbo novo no outro, no comparsa, que ainda tenta avançar sobre o diretor licenciado da diretoria de relações propinológicas da Fudesp, grande Fudesp, inesquecível Fundação do Desenvolvimento de São Paulo, mas cai feito um zumbi exaurido depois duma saraivada de balas. Celina desmaia, com a competente mocinha- -mártir que é. Bob tenta recobrar o fôlego. Resolvida a parada.

Duas horas depois, com a grana mocozada em outro lugar e os cadáveres acomodados no fusca, que por sua vez é lançado do alto de um precipício numa curva qualquer da estradinha da roça, os pombinhos sobrevivem à larga na cama, celebrando com vinho e sexo garantido a grande sacada do falso suicídio que salvou a pele dos dois.

Falta só pegar esse argumento e escrever um conto, roteiro, o que for.


REINALDO MORAES nasceu em São Paulo, em 1950. Estreou com Tanto faz, em 1981. Quatro anos depois lançou Abacaxi. Passou 17 anos sem publicar ficção, até lançar o romance juvenil A órbita dos caracóis (2003), os contos de Umidade (2005), a história infantil Barata! (2007) e o romance Pornopopéia (2009), este último considerado um dos principais livros brasileiros dos anos 2000. Em 2018 Moraes lançou Maior que o mundo, primeiro volume de uma trilogia de romances.