Gratidão a Wilson Martins

André Seffrin
wilson


André Seffrin escreve sobre sua relação com a obra de Wilson Martins e o legado literário do autor, morto há dois anos



Em 1962 Wilson Martins se transferiu para Nova York, quando deu início à doação de grande parte dos livros acumulados no exercício da crítica para o acervo da Biblioteca Pública do Paraná, prática que não abandonou ao longo dos anos. Sim, “os [livros] que não posso guardar doo à Biblioteca Pública”, disse ele em entrevista a Miguel Sanches Neto em 1997. Exemplares com anotações de próprio punho, com dedicatórias de escritores de todos os cantos do país e do exterior, e por vezes edições raras que despertariam o delírio de qualquer bibliófilo. Ao que tudo indica, Wilson não supervalorizava dedicatórias, e raridades bibliográficas só lhe interessavam como ferramenta de trabalho. Mas, como se sabe, e ele sabia, dedicatórias contam uma história secreta da literatura, também fascinante.

Menos de vinte anos depois, em 1981, na biblioteca do Colégio Estadual Professor Loureiro Fernandes, em Curitiba, onde fui aluno de Vicente Ataide e cursei os antigos ginásio e científico, encontrei um exemplar de O modernismo, ensaio paradigmático de Wilson Martins, e os cinco volumes iniciais de História da inteligência brasileira. Adolescente, encarei aqueles livros como uma imensa catedral do conhecimento. E Vicente, em aula, alertou para a monumentalidade daquela História, “o maior livro das Américas, vejam bem, escrito por um único autor”. Foi o que bastou para, entre meus 16 e 17 anos, dar início a uma série de leituras a partir de O modernismo, da História da inteligência brasileira e das dezenas de títulos que Wilson Martins elogiava em sentenças críticas por vezes reproduzidas em capas, contracapas e orelhas das edições da José Olympio, Globo ou Civilização Brasileira, mais constantes na referida biblioteca do colégio.

Nesse período, li obsessivamente, sem qualquer método, poesia, ficção, crítica, ensaio, teatro. Eram páginas e mais páginas de livros e cálculos que me habituei a fazer, doentiamente, a fim de cronometrar livros lidos e tempo restante de vida para ler todos os livros de todas as estantes, como se a vida comportasse o absurdo. Febre de leitura que era júbilo e vertigem e fatalmente alterou significados e valores. Tanto que a bibliotecária do colégio, atenta à insidiosa frequência do aluno, não demorou a fornecer o endereço de um dos maiores sebos da cidade e, é claro, o da Biblioteca Pública do Paraná, onde encontrei o mapa do tesouro. Que eram dezenas de livros com anotações de Wilson Martins, com sua marca de posse, sua assinatura ou dedicatória de autores nacionais. Por quatro ou cinco anos, apartado do rumor das ruas, no silencio catedralesco daquela biblioteca, dediquei-me à tarefa destrambelhada de ler tudo quanto fosse para alcançar, quem sabe, o segredo da grande máquina chamada História da inteligência brasileira ou dos sucessivos artigos publicados por Wilson Martins em O Estado S. Paulo e no Jornal do Brasil, que nessa época eu já acompanhava de maneira esporádica.

Quando me transferi definitivamente para o Rio de Janeiro, em fevereiro de 1987, procurei reeditar, sem sucesso, A palavra escrita. Wilson ainda morava em Nova York quando iniciamos uma correspondência. E logo nos encontramos pessoalmente numa tarde de sol do verão de 1989, no Hotel Ouro Verde, em Copacabana, onde acompanhei sua entrevista ao Jornal de Letras. Em 1998, compareci à sua posse no P.E.N. Clube do Brasil, realizada no palco do Instituto Histórico e Geográfico, quando pude cumprimentá-lo após a cerimônia e ouvir seus comentários bem humorados. No mais foram conversas telefônicas, poucas, e cerca de três dezenas de cartas ou cartões, recados eventuais, não raro ligados a trabalhos, até o último semestre de 2009.

Um tanto dispersas ou esgarçadas nos quatro parágrafos anteriores, estas recordações recompensam minha decisão de, desde cedo, viver entre livros e profissionalmente de literatura, como mais tarde aconteceu. Tudo afinal se justifica porque uma parte do que sou devo a Wilson Martins. Dos nossos poucos críticos que resistem às releituras, ele é de fato o mais lido, consultado e imitado por admiradores e detratores — estes, em geral confusos e ressentidos. Julgá-lo crítico taciturno, superado e sem emoção é hoje lugar-comum. Ao contrário, suas severas atividades de crítico militante e historiador são multifacetadas e de linhagem generosa.

Para compreendê-lo melhor é necessário ler o que escreveu sobre um encontro com Monteiro Lobato, página reveladora de sua paixão pela literatura e pelas figuras que a representam: “Eu tinha dezessete anos quando, empurrado por essa grande criadora de talentos que é a Necessidade, me vi secretariando um pequeno jornal na cidade paranaense de Ponta Grossa” (Pontos de vista, v. 1, p. 435). O resumo do que foi a entrevista que realizou com o “idolatrado” Lobato da campanha do petróleo traz o emblema de um apaixonado do ofício, pois daquele encontro ele “guardou para sempre o que muitas pessoas mais importantes jamais puderam obter”, isto é, um abraço de amizade. Esse fator humano, altaneiro, encontramos em todas as linhas e entrelinhas da História da inteligência brasileira. E em A palavra escrita, em que o humanista Wilson Martins tratou da censura e da civilização eletrônica, tocando as franjas de uma paisagem sombria: “Não é apenas o livro que se encontra ameaçado de desaparecer: é o próprio homem, no que tem de mais caracteristicamente seu, naquilo que o define e distingue na escala zoológica”.

Wilson Martins criou além disso um estilo de crítica baseado na honestidade consigo mesmo, de quem conhecia as limitações humanas e a precariedade dos juízos. Ao conceber a crítica como criação, atuou com coragem, franqueza, independência, pluralismo e fidelidade, capacidades inerentes a um mestre do seu ofício. Frente ao espetáculo da vida, soube ler o sentido oculto das coisas com despretensiosa ironia. Como estilista da literatura e escritor no sentido largo do termo, admitiu que o crítico ideal é “animal tão raro quanto o legendário licorne da mitologia”, e “a discordância e a concordância” são “pólos orgânicos da vida nacional”, em cuja oscilação nos desenvolvemos literária e politicamente. Impossível medir o bem que nos fez e faz, confirmando em nós o compromisso de ler melhor e certamente nos reconhecer melhor no que lemos, “em nome de um ideal mais alto que é a dignidade profissional da literatura”.

Nesta minha breve memória de juventude, na marca dos dois anos de sua ausência, e com a imperdoável pretensão de falar por todos, chego ao fim como no início, Wilson, “descobrindo o que me destes sem saber que o davas” — com que expresso meu tributo a você em versos de Drummond, nosso maior inventariante de bens e sangue.

André Seffrin nasceu em Júlio de Castilhos (RS) e reside há vinte e cinco anos no Rio de Janeiro. Organizou, entre outros livros, Contos e novelas reunidos, de Samuel Rawet (Civilização Brasileira, 2004), Roteiro da poesia brasileira: anos 50 (Global, 2007) e Poesia completa e prosa, de Manuel Bandeira (Nova Aguilar, 2009).

Ilustração: Ramon Muniz