Especial | A estratégia do olhar

A voz que conduz o texto 

Em tempos de autoficção, escritores e estudiosos discutem o uso da primeira ou da terceira pessoa em narrativas literárias


Marcio Renato dos Santos

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Altair Martins tem a opinião de que é mais fácil e ao mesmo mais arriscado escrever em primeira pessoa. “É fluida e perigosa: nela o ficcional se confunde com o confessional”, diz.

Altair Martins acredita que escrever em primeira pessoa é mais fácil e, paradoxalmente, mais arriscado. “A primeira pessoa permite extravasar nosso conteúdo lírico. É fluida e perigosa: nela o ficcional se confunde com o confessional”, diz o autor, entre outros, de A parede no escuro (2008), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2009 na categoria primeiro romance. 

Martins observa que, “como hoje há essa catástrofe do protagonismo geral”, do interesse pela vida privada, o banal como a narrativa de alguém abrindo uma embalagem de escova de dentes se converte em poderosa literatura pelo avesso. “Não há nada mais a ser narrado, e o que restaria à literatura seria registrar justamente a banalidade da vida do século XXI. Por que então não descrever meu dia a dia em primeira pessoa?”, questiona. 

Em diálogo com o discurso de Martins, Carlos Eduardo de Magalhães comenta que, por vivermos numa época em que o “eu” é tão central e predominante, há uma predominância de textos em primeira pessoa. “É mais fácil [escrever em primeira pessoa], apesar de esta facilidade deixar o autor exposto a um maior perigo do texto desandar: o narrador pode ficar muito à vontade, confessional, engraçadinho, sem conseguir desvincular sua figura da do autor”, afirma Magalhães, autor, entre outros, do romance Super-homem, não-homem, Carol e os invisíveis (2015). 

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Carlos Eduardo de Magalhães prefere narradores em terceira pessoa, mas, à medida em que escrevia O primeiro inimigo (2005), mudou o texto da terceira para a primeira pessoa. “Voltei e mudei a voz, trocando todos os verbos, e aí o livro andou”, conta.

Carlos Eduardo de Magalhães prefere narradores em terceira pessoa, mas, à medida em que escrevia O primeiro inimigo (2005), mudou o texto da terceira para a primeira pessoa. “Voltei e mudei a voz, trocando todos os verbos, e aí o livro andou”, conta.

Magalhães prefere narradores em terceira pessoa — a maior parte de seus 10 títulos ficcionais são narrados dessa maneira. No entanto, a sua obra mais extensa, O primeiro inimigo (2005), começou a ser escrita em terceira pessoa e, com mais de 30 páginas, ele percebeu que a narrativa só teria continuidade com um narrador em primeira pessoa. “Voltei e mudei a voz, trocando todos os verbos, e aí o livro andou. O narrador em primeira pessoa se impôs ao autor”, conta. 

A tal da autoficção 

A professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Rejane Rocha analisa que atualmente há um interesse maior, por parte da crítica, em descrever e discutir a narrativa em primeira pessoa como um sintoma de uma época que valoriza o “real” — por isso o apelo de biografias, autobiografias, documentários e reality shows. 

“Some-se a isso o fato de que o escritor, na atualidade, não é mais aquele sujeito que trabalhava recluso, diante de sua máquina de escrever, atormentado apenas com suas escolhas estéticas. Na verdade, talvez nenhum escritor tenha sido tão recluso assim, mas era uma imagem que se construiu”, observa. Hoje, acrescenta Rejane, o escritor é uma figura pública, que frequenta as redes sociais, vai a feiras e festivais, emite suas opiniões políticas, dá entrevistas, enfim, tem visibilidade. 
Kraw Penas
De acordo com Rejane Rocha, da UFSCar, o romance Passageiro do fim do dia (2010), de Rubens Figueiredo [foto], traz uma oscilação entre um ponto de vista onisciente e um ponto de vista mais restrito, adotado por personagens da trama.

De acordo com Rejane Rocha, da UFSCar, o romance Passageiro do fim do dia (2010), de Rubens Figueiredo [foto], traz uma oscilação entre um ponto de vista onisciente e um ponto de vista mais restrito, adotado por personagens da trama.

A professora da UFSCar insiste em dizer que, ao invés de problematizar que há uma predominância de textos escritos em primeira pessoa, o que existe é um investimento crítico na compreensão do que seja escrever em primeira pessoa em um momento como esse, de retorno do realismo, de ampliação da esfera pública, do escritor como celebridade. 

Rejane lembra que o conceito de autoficção, criado pelo professor de literatura francês Serge Doubrovsky, na década de 1970, surge para dar conta dessa complexidade que é um texto que se coloca em uma posição deslizante entre o real e o ficcional, entre a expressão da experiência do escritor e a criação de uma performance autoral.

O todo é uma miragem 

O professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Gustavo Bernardo não acredita que, atualmente, há um excesso de textos de autoficção, mas sim atenção exagerada ao fenômeno. “A emergência de muitos textos em primeira pessoa me parece ter outra razão. Configura uma espécie de reação à onipresença dos narradores oniscientes em terceira pessoa, característica do paradigma realista do século XIX”, argumenta Bernardo, autor de 11 romances, entre os quais O gosto do apfelstrudel (2010) e Nanook (2016). 

O narrador onisciente, explica Bernardo, supõe a possibilidade, ainda que apenas hipotética, da onisciência, isto é, da possibilidade de saber não menos do que tudo sobre tudo e todos. “Esta possibilidade faz sentido tão somente ou no contexto religioso, que pressupõe um Deus onisciente, onipresente e onipotente, ou no contexto deslumbrado dos primórdios da revolução científica, quando se acreditava que a ciência e seus cientistas estavam muito próximos do conhecimento absoluto”, completa. 

Há muito tempo, continua o escritor e professor da Uerj, se sabe que a verdade é não-toda e que nada nem ninguém pode saber tudo. “Ninguém sabe sequer o que é o tempo, logo, não pode saber de nada todo o tempo. Mesmo a melhor teologia sabe que a onisciência, a onipresença e a onipotência são contradições em termos. A constituição do narrador onisciente correspondeu ao sonho da onisciência e ao desejo de que existisse pelo menos um ser onisciente. Entretanto, nem no texto sagrado Deus pode ser onisciente, sob pena de congelar sua própria criação num grande nada. Por isso, Ele (ou Ela) não sabe sequer onde Adão se escondeu, depois do pecado original”, afirma Bernardo, salientando que a atual emergência do narrador em primeira pessoa, portanto, atende menos à autoficção e muito mais à necessidade de abalar o poder do narrador em terceira pessoa — mostrando página a página a impossibilidade da onisciência.

A potência de cada qual 

O professor da Universidade de Brasília (UnB) Alexandre Pilati afirma que um texto se modifica completamente se construído em primeira ou em terceira pessoa. “A necessidade do uso de uma ou outra pessoa tem a ver com muitas questões, mas, ao crítico literário, é preciso compreender se a escolha responde a certa eficácia estética. Poderia dizer que uma boa utilização da primeira ou da terceira pessoa é aquela em que, através da potência estética do seu narrador, o autor se livra da fetichização da sua narrativa. Ou seja: não se cai nem no subjetivismo nem no objetivismo”, diz.

Douglas Machado
Luiz Antonio de Assis Brasil não sabe, ao certo, o que leva um autor a utilizar a primeira ou a terceira pessoa, mas afirma que o uso da terceira pessoa acontece num estágio mais avançado da vida e da maturidade literária.

Luiz Antonio de Assis Brasil não sabe, ao certo, o que leva um autor a utilizar a primeira ou a terceira pessoa, mas afirma que o uso da terceira pessoa acontece num estágio mais avançado da vida e da maturidade literária.

Pilati cita alguns exemplos de textos exemplares narrados em primeira pessoa: Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, e Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa. “A vida dessas narrativas, e o fato de elas terem entrado para a história, se deve ao excelente trato com a narração em primeira pessoa, com implicações estéticas e políticas muito próprias do país”, avalia, destacando ainda, entre obras recentes narradas em primeira pessoa, O irmão alemão (2014), de Chico Buarque. 

Já Altair Martins observa que a primeira pessoa pressupõe uma vantagem, “a do eco interior”. É aí, acrescenta, que narrar num “eu” ou “nós” se torna imprescindível, pois se trata de mergulhar numa abordagem do sujeito consigo mesmo: “Angústia (1936), de Graciliano Ramos, é ótimo exemplo do conflito do sujeito com o mundo e consigo mesmo. Mas pensemos o que nos restaria narrar de A paixão segundo G.H. (1964), tivesse a Clarice Lispector escolhido, teimado, talvez, escrever em terceira pessoa?”. 

Rejane Rocha, da UFSCar, destaca, entre os textos recentes da literatura brasileira em primeira pessoa, o desfecho de Nossos ossos (2013), o primeiro romance de Marcelino Freire. “Não se trata de contar o fim do romance, mas é inegável que a opção por um narrador em primeira pessoa, que conduz o leitor, submetendo-o a suas recordações, suas experiências de vida e suas escolhas, é o que garante o seu desfecho a um só tempo tão inesperado e comovente”, diz Rejane. 

Questões da terceira pessoa 

A professora da UFSCar chama a atenção para o romance Passageiro do fim do dia (2010), de Rubens Figueiredo, pelo fato de a obra ter um narrador em terceira pessoa que acompanha o personagem Pedro e, predominantemente a partir de seu ponto de vista, também acompanha a rotina de outros personagens, mais ou menos próximos dele. 

“Algo interessante deve-se assinalar a respeito desse romance e que diz respeito ao narrador em terceira pessoa: nem sempre a narrativa em terceira pessoa adotará a onisciência. Muitas vezes o que ocorre, como neste romance de Rubens Figueiredo, é uma oscilação entre um ponto de vista onisciente, aquele que confere ao narrador uma posição demiúrgica em relação aos fatos e personagens, e um ponto de vista mais restrito, adotado, como no caso em questão, de um dos personagens — ou de vários — implicados na trama”, teoriza Rejane. 

Em Passageiro do fim do dia, argumenta a especialista, quando o narrador em terceira pessoa adota o ponto de vista de Pedro, o distanciamento analítico é reduzido: “Assim, no caso deste romance, o leitor é convidado a estar próximo de Pedro, viajando com ele naquele ônibus, habitando aquele bairro, circulando por aquelas ruas, entrando em contato, a partir do recorte subjetivo do personagem, com a realidade que o cerca.” 

Para Altair Martins, a terceira pessoa é o foco das relações interpessoais: “Aí se permitem incursões pelos elos, falsos ou verdadeiros, que se interpõem entre cada negociação da vida. Pressupõe lidar bem com o espaço.” Também na terceira pessoa, continua, “onisciente ou não”, a narrativa pode desviar, distorcer, variar e, por vezes, ter uma carga de ironia que habita o circuito de vida entre os personagens: “Como seria A metamorfose (1915), de Franz Kafka, em primeira pessoa? Não perderíamos certa carga de angústia que é reforçada pela indiferença geral da casa de Gregor Samsa?”. 

Alexandre Pilati, da UnB, considera O filho eterno (2007), de Cristovão Tezza, um bom exemplo de obra recente narrada em terceira pessoa. No que diz respeito a textos literários que já fazem parte do cânone, o estudioso destaca Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos, no qual o relato da vida dos personagens é, no entendimento dele, uma questão ética levada às últimas consequências pelo autor: “O texto [de Graciliano Ramos] é magnífico porque se afasta da terceira pessoa descomprometida, isolacionista e objetiva. É uma terceira pessoa que se imiscui nos dilemas do outro de classe e os entrega à vivência humana equivalente do leitor.” 

Pontos de vista 

No entendimento do especialista da UnB, o romance Submissão (2015), de Michel Houellebecq, “ganharia um sabor diferente” se fosse narrado em terceira pessoa: “Ali, me parece, há um risco iminente de que a gravidade do cenário político descrito, ou seja, a derrocada da democracia clássica à europeia, seja relativizada demais pelas idiossincrasias do narrador.” 

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Em 1977, o francês Serge Doubrovsky publicou Fils, longa narrativa ficcional em que o personagem-narrador tem o mesmo nome do autor. Assim, surgiu o primeiro romance considerado autoficcional.

Em 1977, o francês Serge Doubrovsky publicou Fils, longa narrativa ficcional em que o personagem-narrador tem o mesmo nome do autor. Assim, surgiu o primeiro romance considerado autoficcional.

Pilati também analisa que a opção narrativa de Fernando Bonassi no romance Luxúria (2015) poderia ser outra: “Embora ache um texto muito instigante e tecnicamente bem feito, a terceira pessoa é, a meu ver, desestruturante da integridade estética que exige a matéria narrada, ou seja, o complexo fenômeno da ascensão das classes sociais pelo consumo tresloucado. Em terceira pessoa, a voz do narrador fica judicativa demais e difícil de se estruturar em credibilidade crítica profunda.” 

Luiz Antonio de Assis Brasil pondera que, sempre que um livro é publicado, ele parece que nasceu “pronto”, e não poderia ser escrito de outra maneira. “Eu não entenderia o Werther (1774), de Goethe, na terceira pessoa, nem Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert, na primeira pessoa, seria um absurdo”, diz o escritor, autor, entre outros, do romance O pintor de retratos (2002). 

“Com meus alunos de criação literária, faço exercícios de troca de narradores, com avaliação do que ficou melhor. Mas nunca chegamos à unanimidade”, acrescenta Assis Brasil, desde 1985 professor da oficina de Criação Literária do Programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). 

Em relação ao uso da primeira ou da terceira pessoa em uma narrativa, ele tem a impressão de que a resposta para a questão talvez esteja situada em um território extraliterário. “Teria algumas hipóteses, mas seriam sensivelmente inferiores às respostas de um psicanalista. Ocorre-me apenas uma constatação: o uso da terceira pessoa acontece num estágio mais avançado da vida e da maturidade literária”, diz.