Especial | Romance Histórico

Todo romance é histórico

Autor de romances que rementem ao passado do Rio Grande do Sul, Luiz Antonio de Assis Brasil defende a ideia de que é impossível dissociar história e ficção e que os gêneros literários estão pulverizados no século XXI


1. Falar em romance histórico é abrir uma discussão sem fim, a começar pelo seu conceito. Confesso que nenhum conceito me convenceu até agora, e possivelmente cada leitor terá o seu. Essa amplidão semântica, longe de ser um problema, é uma solução, pois me permite dizer, com alguma ponta de cinismo e descaramento, que jamais escrevi um romance histórico, embora seja esse o meu rótulo habitual e, talvez, tenha sido essa a razão do simpático convite para escrever este texto. Parto do princípio de que é muito difícil definir o âmbito temporal da própria História e, por consequência, o adjetivo que lhe faz referência. Vamos ver: quando começa a História? Outro dia encontrei um aluno da universidade, do curso de História, recolhendo alguns papeis do chão. Perguntei-lhe do que se tratava e por que ele recolhia. Era um panfleto político, novo, impresso talvez no dia anterior. E ele explicou: “Tudo isso é História, professor”. Ora bem: não temos como determinar o início da História; muito pior será classificar um romance de “histórico”. Um romance que se passe na era Collor, por exemplo, é histórico? Não seria melhor dizer, portanto, que todo romance é histórico?

2. Não sou tolo o suficiente para negar que alguns de meus romances apresentam uma perspectiva que remete ao passado, isto é, suas tramas situam-se no século XIX. Não que seja uma fatalidade, pois poderiam situar-se no século XXI (como o que estou escrevendo agora) ou mesmo no futuro: a natureza humana é a mesma desde sempre, e os conflitos não têm idade nem época. Interessa-me o sentir das personagens, que vem a ser a recuperação da mundividência e o caráter de suas emoções; se eu quisesse categorizar esses romances, diria, com mais propriedade, que são intimistas.

3. Mas então, há uma pergunta pedindo para ser feita, e plenamente lícita: o que, diabos, me faz situar algumas de minhas tramas no século XIX? Tenho duas respostas: uma é mágica e outra sensata. A mágica: o passado tem as emoções mais fortes, as paixões mais epidérmicas, os desejos mais rubros e as ideias mais sublimes. Tudo isso é falso, claro, mas isso anima a minha criação e serve de um bom impulso criativo. Agora a razão sensata, e na qual acredito mais: o passado me dá maior liberdade ficcional. Os referenciais do tempo presente são balizadores de qualquer literatura “realista”, e inafastáveis por si mesmos: se eu disser que o tempo de voo entre Porto Alegre e Curitiba (imaginando que minha personagem esteja no avião) é de dez horas, o leitor vai largar o livro. O escritor, quando escreve no tempo atual, deve obedecer a essas imposições concretas, sob pena de comprometer-se a verossimilhança. Já o passado é um vale-tudo muito interessante, e permite as maiores aberrações; o passado pode ser inventado, de acordo com as necessidades internas do romance. Mas isso acontece também com o romance de ficção científica que se passe, por exemplo, em 2085.
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4. O “verdadeiro leitor”, entretanto, aquele que frui o texto como uma peça de arte, não deveria se interessar em saber se a história que lê “de fato aconteceu”, ou se determinada personagem “real” disse ou não disse aquilo que está no livro. O “verdadeiro leitor” deve estar acima essas perguntas menores que vão de encontro ao jogo ficcional, pois o “verdadeiro leitor” sabe que, se quiser conhecer “como de fato aconteceu aquilo” vai à busca de um livro de História, e não de um romance — e assim mesmo, vai com muita cautela, pois sabemos que lavra uma crise tremenda entre historiadores sobre a possibilidade de “contar a História”. Daí porque se entende o paradoxo de Umberto Eco [cito de memória]: sobre a morte de Mme. Bovary, num romance, ninguém tem dúvida de que aconteceu; já sobre a morte de Napoleão, um fato histórico, só há dúvidas. Conclusão: a literatura é mais crível que a História. Trata-se de um paradoxo, com sua ponta de sofisma, mas serve para mostrar a dimensão que o assunto pode tomar.

5. Há o caso especialíssimo de obras que deliberadamente queiram narrar um fato histórico através da palavra literária. Nada contra. É uma questão de gosto; não tenho esse gosto, mas respeito quem o tem. E admito, inclusive, que se escreveram obras de muito interesse para o grande público, e não só. E admito, ainda, que gosto de lê-los, quando bem escritos. Não, não pensem em Guerra e paz, pois não se trata de um romance histórico tout court, mas de uma soberba análise psicológica e social dos efeitos da guerra. Mas pode-se pensar, por exemplo, em La maladie du roi, de Christian Carisey, publicado em 2013, que trata de uma doença peculiar de Luís XIV, sob a perspectiva de um romance, ou Bison, de Patrick Grainville, saído agora, em 2014, que recupera a estada de George Catlin entre os Sioux. Talvez esses romances possam ser chamados de “históricos”.

6. O fato é que hoje em dia não há mais gêneros literários definidos, o que vejo de maneira muito positiva. Com o advento da internet, essa saudável confusão se espraiou por todo mundo letrado. Lemos um texto e apenas por um obsessivo espírito sistemático podemos nos fazer perguntas: isto é um relato autobiográfico? É uma crônica? É umareportagem? É um romance, é o quê? Estamos voltando àquele feliz estágio inicial da literatura, em que um grego podia ler [os pouquíssimos que tinham essa capacidade] Homero sem jamais se inquietar com a pergunta se aqueles fatos realmente tinham acontecido. Ele lia porque gostava das aventuras de Aquiles, Pátroclo, Príamo, Ulisses, e pronto. Com as histórias de cavalaria acontecia o mesmo: quem, na Idade Média, iria perder tempo com a dúvida sobre a existência do Cid Campeador, Rolando ou Rei Artur? O surgimento da História “como ciência” é que veio como um espírito de desmancha-prazeres para o leitor de literatura, gerando uma série infindável de mal-entendidos — pura perda de energia, que poderia ser destinada a algo bem mais agradável. O leitor de hoje, entretanto, começa a retomar aquela “ingenuidade” grega ou medieval, e faz muito bem.

7. Para concluir. O que realmente importa num romance [aliás, em qualquer texto literário!] é sua densidade cultural e estética; o resto são qualificativos, de interesse puramente acadêmico, e que não melhoram nem pioram qualquer livro.

Ilustração: Caco Galhardo

Luiz Antônio de Assis Brasil é romancista, autor de 19 livros, entre eles Concerto campestre (1997) e O pintor de retratos (2001) . Também é professor da PUC-RS, onde há 30 anos coordena a Oficina de Criação Literária. Atualmente “está” Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul. Vive em Porto Alegre (RS).