Especial | Poesia Paranaense

A antropofágica poesia paranaense contemporânea

Organizador da Antologia de Poetas Paranaenses que a Biblioteca Pública do Paraná lança no primeiro semestre deste ano, o poeta e crítico Ademir Demarchi traça um panorama da poética contemporânea feita no Estado


Josely


Uma das características mais interessantes dos poetas paranaenses hoje é a prática tradutória. Há um número expressivo de escritores motivados a deglutir poetas e culturas, numa forma de busca de contaminação e complexização desse eu poético que se manifesta agora.

Sem intenção de esgotar a questão, pode-se apontar que o movimento Simbolista foi pródigo em buscar diálogos, especialmente com os europeus, chegando até mesmo a publicar poemas em francês sem traduzi-los. Nos anos 1940, Dalton Trevisan, com a revista Joaquim, além de traduções (Eliot, Hughes, Rilke, Icasa), publicou originais sem tradução (Tzara, Lorca, Gide); a editora Guaíra criou uma coleção de ficcionistas americanos, inaugurada com o mexicano Gallegos, traduzido por Jorge Amado; José Paulo Paes, saído da revista ideia, tornou-se pródigo tradutor.

Depois, nos anos 1960, Leminski se empolgou com a prática concretista da transcriação que o levou ao estudo de línguas e à tradução de Joyce, Lennon, Beckett, Jarry, Mishima, Petrônio, John Fante e outros, lançados nos anos 1980, com destaque, com Alice Ruiz, para a tradução de japoneses e disseminação do haicai. Estava-se já sob nova onda de diálogos com outras línguas no Paraná, especialmente num esforço tradutório que começaria por se expressar nas páginas do Nicolau, com Josely Vianna Baptista (tradutora dos ameríndios e hispânico-americanos), Rodrigo Garcia Lopes, com os norte-americanos (primeiro os beats, depois Sylvia Plath, Ashbery, Whitman) e japoneses (estes com Maurício Arruda Mendonça, com quem traduziu Rimbaud), Jaques Brand (em seu único e ótimo livro Brisais), o grupo OSS, com Antonio Thadeu Wojciechowski, Alberto Centurião, Edilson Del Grossi, Marcos Prado, Roberto Prado, Sergio Viralobos (no Nicolau ou em livros peculiares como Um Fausto, de Goethe, e Os catalépticos, com textos de Dante, Yeats, Rimbaud, Shakespeare, Mickiewicz Baudelaire, Poe e até Camões). Esse grupo, caracterizado por poesia marcantemente musical, declamativa, perdeu ímpeto e rareou a publicação de livros originais pelo conteúdo e tratamento artístico/publicitário, hoje raridades, mas tem em Thadeu o escritor mais atuante, na internet, onde diariamente publica poemas versificados e em tom vitalista.

Thadeu
Josely Vianna Baptista, com Francisco Faria, além de se firmar como uma das melhores e premiadas tradutoras hispânicas do país, criou a página (reunida em livro) Musa Paradisíaca, de 1995 a 2000, focada na discussão com interlocutores nacionais e estrangeiros e assuntos que vão da cultura Ameríndia à tradução e reflexão sobre escritores das Américas. Sua poesia encontrou um tom original na expressão de inspiração neobarroca hispânica, que evoluiu para um mergulho nas linguagens indígenas, resultando em seu livro mais recente, Roça barroca, em que mescla o resgate tradutório de textos guaranis e escrita poética inspirada nessa experiência.

Também com inspiração nas culturas indígenas, ou etnopoesia, conforme prefere, depois de um contato inicial com a imagética simbolista e sempre priorizando a performance (com livros, CDs, declamações, identidades e revistas fundadas na poesia como Medusa, Oroboro e Bólide e muitas traduções, com destaque para a de Arturo Carrera), Ricardo Corona vem realizando um trabalho original, cujo livro mais recente, Curare, registra esse experimentalismo de linguagem em sua mais aprofundada complexidade e reflexão.

Rodrigo Garcia Lopes, também performático (com shows, CDs, revistas e agora romance), vem compondo uma obra poética peculiar pelas experimentações de conteúdo e forma, com imagética inquietante. Seus recentes livro e CD Estúdio Realidade são sintetizadores dessas vertentes, mantendo o forte diálogo com a cultura norte-americana, aqui sinalizada por remeter a Burroughs, e agudizando um interessante tom crítico que se associa ao modo como compõe os poemas, criando “realidades” visuais. Essa sua atuação se combina na revista Coyote (um dos marcos da resistência da poesia no Paraná), que edita com Ademir Assunção e Marcos Losnak e remarca a vitalidade cultural existente em Londrina, com expressivo número de poetas e vocação globalizante transcendente. Losnak, também poeta, publicou apenas um livro, com poemas de forte imagética metafísica, caracterizada por lirismo de negatividade poética. Assunção faz da poesia um libelo de insatisfação contra o mundo contemporâneo artificializado pelo consumo moldado pela cultura de massa norte-americana. A inquietação está também no livro Faróis do caos, onde dá voz a vários poetas críticos. Sua poesia é urbana, altamente oralizada, feita para declamar, daí a aproximação com o rock, na formação da banda Fracasso da Raça e no CD que agora promove, Viralatas de Córdoba, que se soma ao seu último livro, A voz do ventríloquo (Prêmio Jabuti de Poesia 2013).

Maurício Arruda Mendonça, com a experiência da tradução de poetas clássicos chineses, do japonês Nenpuku Sato ou dos beats, aos quais soma traços da tradição, de Poe a Heráclito, em sua poética reverbera o senso de observação sutil da natureza, da memória e da cidade. Pelo mesmo caminho segue a poesia de Nelson Capucho. Mário Bortolotto ressoa em poemas de pegada blues a violência urbana e a marginalidade, afeito à estética beat, contra a sociedade de consumo representada por seu submundo fantasioso de super-heróis falidos, jazz, cinema, gibis, com estrangeirismos da cultura norte-americana e resquícios da contracultura dos anos 1970 em seus livros Para os inocentes que ficaram em casa e Um bom lugar pra morrer.

Domingos Pellegrini, que começou com uma poesia militante e muito crítica nos anos 1970, continua firme, variando sua temática que vai de um livro de sonetos primorosos como Gaiola aberta, a coletâneas como Poesiamorosa e O tempero do tempo, em que se comunica com o leitor com uma linguagem simples e eficiente e com característico senso de humor.


Nova geração


Divulgação
Os novos poetas que estão começando a publicar se destacam pela escrita refinada, denotando a prática tradutória significativa a que me referi. Guilherme Gontijo Flores traduziu nada menos que as Elegias, de Sexto Propércio; as Odes, de Horácio; As janelas, seguidas de Poemas em Prosa Franceses, de Rilke, em parceria com Bruno D’Abruzzo; e A anatomia da melancolia, de Robert Burton, em 4 volumes. Expressando refinamento, lançou recentemente seu primeiro livro de poemas, Brasa enganosa. Com ele se soma Adriano Scandolara, que traduziu ingleses românticos como Shelley. Scandolara publicou Lira de lixo, seu primeiro e corrosivo livro, que traz um olhar para a vida urbana. Somando-se a Bernardo Lins Brandão e Vinicius Ferreira Barth, sediados em Curitiba, Scandolara e Gontijo Flores criaram o site Escamandro, agora transformado também em revista de tradução impressa. Com eles, somam-se os trabalhos de Ivan Justen Santana e Rodrigo Madeira, de pegada variada e prolífica na tradução e com uma poesia que combina escrita elaborada, com senso de humor irônico, em nada lembrando a típica poesia de anos anteriores. Assim como eles, é importante mencionar o trabalho de Caetano W. Galindo, que ganhou o Jabuti 2013 pela tradução do Ulysses, de James Joyce. E, sem esgotar a lista, há os ingleses e irlandeses traduzidos por Luci Collin e os norte-americanos mais recentes (Bukowski e Leonard Cohen) vertidos ao português por Fernando Koproski. Diante dessa profusão de tradutores, pode-se imaginar o impacto que essa prática poderá ter na nova poesia parananese. Luci tem experimentado mais a prosa, não uma prosa qualquer, mas remarcada por uma escrita que se contamina de poética. Com marcante lirismo amoroso e irônico, Fernando Koproski, em livros de poemas e letras de músicas, demonstrou domínio e sutileza de escrita cujo desdobramento causa curiosidade após a passagem por Bukowski e Cohen.

Situa-se nesse cenário a produção apurada de poetas como Jussara Salazar, que explora a memória com lirismo refinado e expressão barroca percorrida por discreta metafísica; Mauro Faccioni Filho, cuja poética passou pelos clássicos gregos e chegou a uma dicção medida e racionalizada em que a incomunicabilidade se transparece na condição de “duplo dublê” do homem contemporâneo; Marcelo Sandmann, que concebe músicas e poemas de fina ironia e crueza, regidos por apuro formal e concisão, fazendo leitura crítica e dialogando com a obra de escritores tão variados quanto João Cabral, Leminski, José Paulo Paes, Dalton Trevisan e outros; Marília Kubota,
Prado
que combina memória, paisagem e metafísica no registro de cruezas da vida solitária globalizada, com estranheza em relação aos semelhantes, agregando mais recentemente um tom crítico e irônico que se consolidou no seu recente livro Esperando as Bárbaras; Miguel Sanches Neto, com poética marcante, que vai da autobiografia ficcionalizada à biografia dum outro na barroca Ouro Preto, em tons trágicos, no ótimo livro Venho de um país obscuro, além de conceber um senso de humor distinto na reunião Pisador de horizontes; Rodrigo Madeira, que registra a cidade e a vida urbana com densidade e múltiplos referenciais, no ótimo livro pássaro ruim; Edson Falcão, com uma poesia impactante, entremeada de surpresas pela forma como observa e escreve, nos três ótimos livros cujos títulos já são por si instigantes: As musas do canal Belém, O ossário de um ferreiro e A fachada e os fundos; Mario Domingues, tradutor de Lucrécio, Ovídio, Propércio e um cummings indicado ao Jabuti, os quais, com outros referenciais, interagem na imagética poesia de paisagem transitória e musga; a poesia irônica de Helio Leites, a marginal de Batista de Pilar; o experimentalismo caótico com a linguagem esvaziada de sentido e ressignificada nos livros de Amarildo Anzolin, assim como também na de Ricardo Pedrosa Alves, em registros distintos; a revitalização bem humorada do haicai em Álvaro Posselt (que está também nos “haicaipiras” de Pellegrini) e a reafirmação de sua tradicionalidade em Alice Ruiz; o sujeito poético “ultracontemporâneo” e urbanóide de Ana Guadalupe; o erotizado de Greta Benitez, assim como em Dalton Trevisan ao reinterpretar os Cânticos; a metafísica e as marcas da memória e do tempo em Paulo Venturelli, Fábio Campana, Bárbara Lia e Karen Debértolis; a forte associação da poesia com vertentes da música, como em Nelson Alexandre, Ricardo Pozzo, Alexandre França, Estrela Leminski, Neuza Pinheiro; o neo simbolismo de Andreia Carvalho; a escrita e um eu poético multifacetados em Luiz Felipe Leprevost.

Jairo
Fora da capital há poéticas singulares como a de Jairo B. Pereira, com poemas de linguagem crítica reiterativa, tematizando a vida à beira do Rio Iguaçu, pastoril, ora contaminando-a com signos de consumo urbano ou a vida dos sem- -terra; é curioso que numa mesma pequena cidade como Quedas do Iguaçu haja outro tão prolífico autor como Jairo, Solivan Brugnara, com uma poética que registra o cotidiano na fronteira com o Paraguai ou explora temáticas sobre a vida no interior, sempre com senso crítico peculiar e distintivo; Marco Aurélio Cremasco combina nostalgia do campo e desajuste à vida urbana, passando pela temática religiosa, buscando a síntese da simplicidade expressional.

Se é alta e de qualidade a deglutição, a regurgitação não fica a dever e o momento em que vivemos é promissor, anunciando valiosas obras poéticas. Já quanto à minha obra, deixo-a com Os mortos na sala de jantar, em banquete regado a Pirão de sereia e de poetas, como estes todos.