Especial | Microeditoras


O poeta Sergio Cohn fala sobre sua experiência como editor à frente da Azougue e de seu esforço para manter o espírito livre que norteou a fundação da editora nos anos 1990

     Divulgação Azougue
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Sou um fanzineiro. A própria Azougue começou como um fanzine, lá pela primeira metade dos anos 1990. Aprendi a editar recortando e colando imagens e textos batidos à máquina, xerocando as páginas criadas num precário paste up, para então dobrar os exemplares um a um. O delicioso trabalho manual de um fanzine pré-mundo digital. Depois, a Azougue virou revista e, já no novo milênio, editora. Mas creio que uma vez fanzineiro, sempre fanzineiro. 

E o que significa isso? Um fanzineiro talvez seja, mais do que um ofício, um estado de espírito. É ter como princípio o lema punk “faça você mesmo”, como motor o desejo de circular conteúdos da sua predileção, de torná-los acessíveis a um grupo cada vez mais amplo de pessoas, uma rede de criadores e amantes dessa pequena arte da edição independente. É uma predisposição a não se respeitar os padrões de edição, seja mancha de texto, hierarquia da informação, verticalidade da leitura, indexação, viabilidade econômica ou formas de distribuição. E pensar o quase impossível retorno financeiro como consequência, e não como causa de qualquer projeto ou trabalho. 

Com o tempo, a Azougue cresceu, chegou a ter vários funcionários,a publicar dezenas de títulos por ano. Mas, na essência, pouco mudou. O prazer ainda está em criar encontros e em trazer a público autores e conteúdos pouco conhecidos, sejam eles redescobertas ou novidades. E também em pesquisar, chafurdar sebos e bibliotecas, tomar cerveja com os amigos, saber que um editor precisa estar na rua, trocando ideias e experiências, pensando o mundo, e não apenas dentro de seu escritório. E que o livro é apenas um dos instrumentos para uma troca ampla com a sociedade. Como bom fanzineiro, não acredito em editor de gabinete. 

Abrir uma editora, constituir uma equipe profissional, traz muitos benefícios: a possibilidade de editar conteúdos mais qualificados, de alcançar um público mais amplo, de elaborar projetos de mais largo fôlego. Mas também traz muitos riscos. Para manter a estrutura, com custos altos, é preciso muitas vezes publicar mais livros do que se deveria, diversificar o catálogo, criar parcerias. Livros que são de alta qualidade, mas que muitas vezes podem não condizer perfeitamente com a linha editorial da editora. Ou que poderiam estar no catálogo de dezenas de outras editoras, sem ter a marca da intervenção cultural da Azougue. Esse ponto é essencial: uma pequena desatenção e a editora pode perder a sua identidade.

Mas não é só isso. É ter um projeto que seja conivente com os pensamentos políticos e ambientais que estão por trás de todo o trabalho. Alguns anos atrás, entrevistei Robert Bringhurst, o grande poeta e pesquisador de cantos ameríndios e da história da palavra impressa. Em certo momento, ele colocou uma questão fundamental: “Quando os livros foram originalmente produzidos, os tipos eram cortados manualmente, colocados em ordem e impressos em papel artesanal, que então eram dobrados e costurados à mão. Portanto, as edições raramente ultrapassavam umas poucas centenas de exemplares. Hoje produzimos livros em máquinas gigantescas, imprimindo 10 mil cópias por hora. Isso é provavelmente muito mais importante enquanto poluição do que enquanto disseminação da informação. As florestas que destruímos imprimindo esses livros são provavelmente muito mais sábias do que qualquer livro jamais escrito.”

Essa preocupação é bastante presente no meu trabalho: como ter uma intervenção cultural a partir do livro, com o tamanho e a eficácia certos para essas ideias e criações fluírem, mas publicando só o estritamente necessário, seja em títulos ou tiragens, sem cometer abusos que dificultam o entendimento do nosso projeto e também são violências contra o meio-ambiente? A minha resposta tem sido o lema de Stuart Mills: “uma hora é preciso parar de crescer e ser feliz”. Ser pequeno também é uma ética em relação ao mundo. 

Por tudo isso, vejo com muita alegria o ressurgimento de publicações independentes, das editoras artesanais, das feiras livres e dos coletivos. É ali que estão surgindo as experimentações mais interessantes com o objeto livro. Tenho realizado parcerias com algumas dessas editoras. Com a Cozinha Experimental, maravilhosa editora artesanal dos paranaenses Marcelo Reis de Mello e Germano Weiss, criamos uma coleção de antologias de poesia por assinatura. Serão livros mensais, de grandes autores contemporâneos, com acabamento artesanal e poemas e entrevistas. Um projeto que me interessa por me reaproximar desse universo artesanal, e também por pensar uma forma alternativa de distribuição. Com eles também estamos montando uma kombi-livraria, um projeto para rodar a cidade, criando eventos e debates e disponibilizando nossos livros. 

É uma forma de se renovar, e também um jeito de enfrentar a crise que está tomando o mercado editorial. Antes de tudo, é uma forma de botar novamente a mão na massa. Afinal, como já disse, sou um fanzineiro. 


Sergio Cohn é poeta e editor da Azougue. Vive no Rio de Janeiro (RJ)