Especial | Microeditoras

Faça, divulgue e venda você mesmo

Comandadas por escritores,ilustradores e designers, as microeditoras independentes vêm ganhando terreno (e prêmios) com produtos de alta qualidade gráfica e soluções criativas para enfrentar o problema da distribuição


Omar Godoy

                     Divulgação | Daia Oliver
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Thiago Blumenthal, Cecilia Arbolave e João Varella são os sócios da editora paulista Lote 42, que
também organiza a feira Miolo(s).

As empresas são pequenas e os negócios, não tão grandes assim. Mas quem sempre pensou em fundar uma editora tem encontrado um ambiente cada vez mais favorável para a realização desse projeto. Graças às novas técnicas de impressão e à popularização da internet, uma geração inteira de editores independentes surgiu nos últimos anos no Brasil, inclusive fora dos grandes centros. À frente das chamadas microeditoras, eles vêm se caracterizando principalmente pela qualidade gráfica de seus produtos e por utilizar estratégias alternativas de distribuição — sempre o grande gargalo da produção cultural no país. 

A editora paulista Patuá, por exemplo, abriu um bar para sediar seus eventos de lançamento. Também de São Paulo, a Lote 42 montou um ponto físico numa banca de jornal reformada, que vende os produtos da empresa e de outras “micro” do Brasil inteiro. A carioca A Bolha optou pela mobilidade: com um carrinho de sorvete adaptado, percorre as ruas da cidade oferecendo livros para o público em geral. Isso sem contar as vendas pela internet (impulsionadas por ações nas redes sociais) e o surgimento de feiras especializadas em arte impressa e publicações artesanais.

Vale tudo para fugir das redes de livrarias, que ficam com cerca de 50% do valor de capa de cada livro comercializado. Mesmo o expediente de usar o espaço de uma grande loja apenas para promover o lançamento de uma obra vem sendo abandonado, já que os lucros com as vendas durante esses eventos também são divididos de forma desvantajosa para os independentes. “Nós somos como pulgas nessa arena de gigantes. Foi a internet que começou a deixar as coisas mais equilibradas”, afirma João Varella, 31 anos, sócio da Lote 42 com Thiago Blumenthal e Cecilia Arbolave (todos jornalistas). 

Varella ainda cobria a área de economia e negócios quando o plano de criar a editora começou a ser desenhado. “Como o meu dia a dia era conversar com administradores e empreendedores, aproveitei essa espécie de MBA informal para buscar o máximo de informações possíveis. Cheguei à conclusão de que o e-commerce, apesar de ainda responder por uma porcentagem pequena das vendas, não estava indo mal. Só estava sendo mal explorado”, conta. 

De olho nessa brecha, os sócios apostaram na usabilidade de sua loja virtual e no relacionamento com o público das redes sociais. Em 2014, a empresa virou notícia durante a Copa do Mundo por prometer 10% de desconto em seus produtos para cada gol que o Brasil sofresse durante a semifinal com a Alemanha. Com a goleada de 7 a 1, a procura pelos livros foi tão grande que o número de acessos derrubou o servidor do site — e, mesmo com algum prejuízo, a Lote 42 acabou ganhando muito em visibilidade.

No final daquele ano, o trio sentiu que deveria ir além da internet e abriu a banca Tatuí, no centro de São Paulo, onde hoje são vendidos livros, jornais, revistas e fanzines de 140 editoras independentes de todo o país. “Não vemos barreiras e não temos cerimônia de entrar em todas as áreas”, diz Varella. Essa disposição inclui a própria linha editorial da Lote 42, que publica poesia (André Dahmer), quadrinhos (Bruno Maron, Alexandra Moraes), romance (Ricardo Lísias) e investe em livros de acabamento artesanal ou design inovador.

Este último segmento, segundo Varella, acompanha uma “nova relação das pessoas com o consumo”. Ele se refere ao interesse crescente por alimentos orgânicos, produtos feitos por demanda, presentes personalizados, etc. Nesse cenário de economia “sustentável”, o livro enquanto objeto de arte é um dos itens mais valorizados. Vide o sucesso das feiras de arte impressa, organizadas em todo o Brasil e que se desdobram em oficinas de editoração (ver página 26). 

“É um mercado novo, que está se formando no Brasil. O campo de atuação dos independentes ainda é formado por seus próprios consumidores”, afirma Sabrina Carvalho, 35 anos, da editora recifense Livrinho de Papel Finíssimo. Ou melhor: “coletivo editorial”, como ela prefere chamar o grupo de cinco integrantes, especializado em “trabalhos autorais diferenciados, seja forma ou no conteúdo”. De acordo com ela, o barateamento das tecnologias de impressão embaralhou os conceitos de livro e fanzine.“O livro se libertou do seu formato tradicional e buscou novas soluções gráficas, enquanto o fanzine se sofisticou e quase virou um livro”, explica. 

    Divulgação | Publique-se!
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Produzido pelo coletivo pernambucano Livrinho de Papel Finíssimo, o evento 
Publique-se! contou com um ateliê para a produção “instantânea” de publicações 
alternativas.

Criado há cerca de 10 anos, o coletivo ganhou corpo depois de participar de um edital municipal de cultura. O apoio veio na forma de uma máquina de fotocópias, que ficou à disposição da Livrinho durante três meses — tempo suficiente para a produção dos primeiros títulos. Hoje, já são mais de 120 obras publicadas, nas áreas de literatura, ilustração, HQ e artes gráficas em geral. No ano passado, por meio de outro edital, o grupo realizou o festival Publique- -se!, que durante uma semana promoveu debates, oficinas e exposições. 

Recorrer a editais e leis de incentivo, no entanto, não é uma prática comum entre as microeditoras. A própria Sabrina faz questão de dizer que a Livrinho só utiliza recursos dessa natureza para desenvolver “atividades paralelas”, como eventos e cursos. “Em toda nossa história, só três livros foram publicadas dessa forma. São exceções”, enfatiza. Mas há quem repudie totalmente a ideia, como o dono da editora Mondrongo, de Itabuna (BA), Gustavo Felicíssimo, 45 anos. “Sou produtor cultural, minha especialidade é a adequação de projetos voltados para as leis de incentivo. Mesmo assim, desisti de participar de editais há três anos”, revela. 

Ele vê uma “movimentação maléfica” em torno desses recursos, e lamenta que parte do cenário literário dependa deles para existir. “Estamos vendo o surgimento de ‘editoras de editais’ e até de ‘escritores de editais’. Isso é muito pobre, além de comprometer o futuro da literatura”, diz. Na ativa desde 2011, a Mondrongo foi concebida para ser um braço editorial do Teatro Popular de Ilhéus, uma das instituições culturais mais conhecidas da Bahia. Há três anos, desvinculou-se do grupo e hoje é conduzida apenas por Felicíssimo, que prioriza a literatura nordestina acima de tudo. 

“Literatura não se faz de cima para baixo. Raramente um autor extrapola os limites de sua região. Não tenho ilusões quanto a isso”, justifica, ressaltando que 70% do faturamento da empresa vem justamente de eventos de lançamento realizados na região sul do estado. No final do ano passado, ele viu o nome da Mondrongo entrar definitivamente no mapa literário nacional após a premiação de dois títulos da editora. A dimensão necessária, do poeta João Filho, venceu o Prêmio Biblioteca Nacional. E Canção de ninar estátuas, de Luiz Gilberto de Barros, foi eleito o melhor livro de contos pela União Brasileira dos Escritores. 

Outras seis editoras independentes (entre novatas e consolidadas) venceram categorias do Prêmio Biblioteca Nacional 2015, enquanto só duas “grandes” foram laureadas. Mas não se trata de um fenômeno restrito a uma temporada. É uma tendência que vem ganhando força a cada ano, como se pode comprovar nas listas de finalistas de premiações como Jabuti, Portugal Telecom, São Paulo e Brasília, entre outras.

Um dos nomes mais recorrentes nessas relações, a paulista Patuá já é uma das principais referências do cenário “micro”. Nada mal para uma empresa fundada há pouco mais de cinco anos, com um investimento modesto de R$ 4 mil. “Montei a editora com três objetivos em mente: nunca cobrar do escritor, abrir espaço para novos talentos e entregar produtos bonitos, de boa qualidade gráfica”, conta Eduardo Lacerda, dono e “faz tudo” do empreendimento. 

Depois de passar um ano inteiro apenas pesquisando processos e o mercado, Lacerda se apresentou aos leitores com uma proposta ousada para o cenário independente. A Patuá lança cerca de 10 títulos por mês, com tiragem média de 150 exemplares, que são vendidos na internet e em eventos de lançamento Brasil afora. “A loja virtual representa uma boa parte do faturamento, mas eu dependo muito dos lançamentos para fechar as contas”, diz o editor, que já acumula 350 títulos publicados. Boa parte desse catálogo é composta por obras de autores ascendentes, como Paula Fábrio, Elisa Andrade Buzzo, Guilherme Gontijo Flores e Chico Lopes. 

     Divulgação | Ariane Oliveira Brito
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Dono da Patuá, Eduardo Lacerda abriu um bar, o Patuscada, para sediar os eventos de lançamento 
da editora.

A importância dos eventos para a Patuá é tão grande que Lacerda decidiu abrir um misto de bar, café e livraria, o Patuscada. “Se tenho prejuízo com um livro, posso compensar na venda de bebida. No fim, as coisas sempre acabam se equilibrando”, explica. Seu próximo plano é montar uma espécie de hospedagem no local, para abrigar escritores de passagem por São Paulo. “Penso em cobrar apenas uma taxa simbólica. Ou que esses autores, em vez de pagarem, ministrem cursos gratuitos dentro do próprio espaço.”

Uma livraria-café também é o quartel-general da curitibana Arte & Letra, que inclusive está de mudança para um local maior. “Investimos numa loja diferente das grandes redes, que estão cada vez mais parecidas entre si, e também em equipamentos para o preparo de cafés especiais. Deu certo e agora o espaço ficou pequeno para acomodar o público”, conta o editor Thiago Tizzot, 36 anos. Ele divide a sociedade com o irmão Frederico, 34 anos, responsável pelos projetos gráficos da empresa (seu trabalho para A mão na pena, de Dalton Trevisan, venceu o Prêmio Biblioteca Nacional 2015). 

Divulgação | Guilherme Pupo
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Os irmãos Thiago e Frederico Tizzot comandam a Arte & Letra, que também
 é livraria e café.

Os Tizzot entraram no mundo editorial descompromissadamente, publicando volumes historiográficos escritos por pessoas da família. Em seguida, passaram a lançar traduções de títulos estrangeiros, como um curso de “língua élfica” para fãs de J.R.R. Tolkien (Thiago também é autor do gênero de fantasia) e o guia para a produção de roteiros cinematográficos Story, de Robert McKee. “O Story foi muito bem, as livrarias de rede nos procuravam para pedir mais exemplares. Foi a partir daí que viramos uma editora de verdade. Mesmo assim, levamos cinco anos para chegar aos 10 títulos publicados”, lembra. 

No ritmo de quem aprende enquanto faz, a Arte & Letra chegou à marca de 70 títulos lançados. Um catálogo que abrange desde a literatura fantástica até a produção contemporânea paranaense (Dalton Trevisan, Cristovão Tezza, Luci Collin, Paulo Venturelli, Luiz Felipe Leprevost), passando por revistas literárias e livros artesanais. “O certo seria definir um nicho de mercado, mas a gente não conseguiria. Essa é a parte romântica da coisa: publicar o que a gente gosta, sem seguir uma ordem ou padrão”, diz Tizzot. 

Outra marca da editora é o relacionamento com os grandes grupos de livrarias, algo impensável para uma “micro”. “Essas empresas não são vilãs, é preciso entendê-las e saber aproveitar o que elas têm para oferecer. É claro que um livro da Luci, ou do Venturelli, não vai estar na vitrine ou na pilha da entrada da loja. Mas é importante que ele esteja lá, disponível para quem procurar”, afirma. 

Com a experiência de quem também está do outro lado do balcão como livreiro, Tizzot aponta uma certa falta de profissionalismo por parte de algumas microeditoras. “Às vezes, é difícil fazer um acerto com as pequenas. Muitas delas nem respondem aos contatos. Não adianta criar uma editora e ninguém achar seus livros”, critica. Segundo ele, a ideia de abrir uma loja veio justamente da frustração de não encontrar publicações independentes nas livrarias convencionais. “As grandes são todas iguais, parecem que vendem as mesmas coisas. Hoje as pessoas buscam produtos individualizados e valorizam mais os autores locais.” 

Questionados sobre os planos de expansão de seus negócios, os editores procurados pelo Cândido são enfáticos: a meta é se consolidar no mercado, mas o crescimento deve acontecer de forma sustentável e, acima de tudo, independente. “Existe uma ideologia por trás do que eu faço, não sou só um empreendedor”, garante Gustavo Felicíssimo, da Mondrongo.

Divulgação | Danilo Helvadijan
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A Banca Tatuí, da Lote 42, vende produtos de 140 editoras independentes no centro de São Paulo.

Sabrina Carvalho, da Livrinho de Papel Finíssimo, lembra que praticamente todas as “micro” são comandadas por escritores, ilustradores ou designers gráficos. “O grande desafio é ser, ao mesmo tempo, artista e administrador”, afirma. Para Thiago Tizzot, o importante é não se descaracterizar.“Você não precisa fazer um livro de colorir para continuar lucrando. É mais interessante tentar lançar um autor novo, ou experimental, que no mínimo se pague. O melhor disso tudo é arriscar”, conclui.