Especial | Memória

Memória é ficção

As experiências de vida e de leitura, recriadas por meio da linguagem, são as principais matérias primas para a prosa e a poesia, afirmam escritores, professores universitários e estudiosos


Marcio Renato dos Santos


ilustra
Mil rosas roubadas, o mais recente romance de Silviano Santiago, foi escrito a partir das memórias do autor. “O livro parte de acontecimento real e seu capítulo de abertura se passa no dia em que vejo o amigo Zeca ir abandonando a vida no leito do Hospital São Vicente, no dia 7 de julho de 2010”, conta Santiago. A narração recupera fragmentos do percurso de Ezequiel Neves (1935-2010), o Zeca, amigo de Santiago, conhecido como jornalista, produtor musical e compositor, parceiro de Cazuza e Roberto Frejat, entre outros. Mas, em Mil rosas roubadas, o leitor vai encontrar um outro Zeca. “Escolhi exatamente a passagem da vida do Zeca que as pessoas menos conhecem e, ao mesmo tempo, o momento em que ele se forma como legítimo intelectual brasileiro”, diz o escritor.

Silviano afirma que as emoções e os sentimentos vividos por ele foram transferidos ao narrador do romance, apresentado propositalmente como professor de História e não de Letras — que é a referência real do autor: “A ‘invenção’ do narrador, que se descola de parte da minha personalidade propriamente profissional, visa emprestar intensidade e sentido dramáticos à narrativa ficcional. A ‘grafia-de-vida’, se me permite o neologismo, está sempre comprometida com a ficção.”

A professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Sissa Jacoby acredita que toda criação artística está ancorada, em maior ou menor grau, na experiência, individual, alheia ou coletiva. Para comprovar o que diz, cita Mil rosas roubadas, romance criado, no entendimento dela, a partir da seguinte questão: um professor passou a vida fornecendo material para o amigo de infância vir a biografá- -lo no futuro e, ao contrário de seu desejo narcísico, se vê tendo que assumir o papel de biógrafo desse amigo a partir de sua morte.

“Silviano discute, entre outros subtemas, importantes e insolúveis questões relacionadas à biografia e à autobiografia, diretamente implicadas na tarefa assumida pelo narrador-biógrafo. Para biografar Zeca, o professor — que também é pesquisador de História — sabe que terá de preencher as lacunas da memória, sabe da parcialidade do conhecimento e da impossibilidade do autoconhecimento, o que é problema também na autobiografia”, argumenta Sissa. Em Mil rosas roubadas, observa a especialista, a imagem espelhada — o outro —, que já é uma inversão, se inverte duplamente. “De resto, é o dilema de toda escrita memorialística, a necessidade humana de conhecer- -se, e a única possibilidade de fazê-lo é através do outro”, acrescenta a professora da PUCRS.

Preciosa matéria-prima

Sérgio Sant’Anna tem convicção de que a memória é matéria-prima para a literatura. Em O homem-mulher, o seu mais recente livro de contos, os textos ficcionais foram elaborados a partir da vivência do escritor mineiro. “Eles dois”, por exemplo, é, de acordo com o autor, autobiográfico — o conto recria um período de adversidade financeira de um jovem casal que, ao mesmo tempo, experimentava uma breve, mas inesquecível, temporada de prazer a dois. “Trata-se de um amor intenso que vivi, numa ambientação como aquela”, conta Sant’Anna.

O escritor acrescenta que também é possível escrever ficção sem a vivência concreta de determinados fatos: “Mas há, de fato, um acervo que vai se formando a partir da vida do escritor. E, para os fatos propriamente ditos, a imaginação é preciosa, nunca se esquecendo da linguagem que, afinal, é o que torna possível que as emoções perpassem um texto. Sem a imaginação e a linguagem, não há ficção que preste.”

O comentário de Sant’Anna ajuda a compreender o processo de escrita de Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende: mais de uma década separa a ideia inicial e a publicação do romance. Em 2002 ou 2003, ela passou 48 horas em um hospital público de João Pessoa, na Paraíba, ajudando uma família que estava com uma pessoa internada. “Podia ter ficado 40 dias ou 40 anos. Mas naqueles dois dias e noites de andanças, descobri muita gente, através de frestas, escondidos pela cidade, em lugares onde antes eu nunca havia notado passagens para outros mundos, para o avesso da cidade onde alguém pode se ‘esconder’ para sempre”, comenta a escritora.

A partir daquela experiência, Maria Valéria conta que sentiu impulso para escrever um romance com peregrinações e descobertas que durasse 40 dias, uma quaresma, uma quarentena — algo como uma travessia: “Fiquei, sobretudo, com a memória dos sentimentos daquelas pessoas e também com os meus, mais forte do que de tudo o mais que tinha percebido naqueles dois dias. Ao longo dos anos, a ideia do romance, ficou girando na minha cabeça.”

Em 2011, ela recebeu um convite para escrever um romance, a respeito de um outro Estado brasileiro, no caso, o Rio Grande do Sul, para compor uma coleção que retrataria o Brasil — com lançamento previsto para a Feira de Frankfurt de 2013. O projeto não teve prosseguimento. Mas a escritora decidiu realizar a empreitada por conta própria. Ainda em 2011, ela passou 15 dias em Porto Alegre. Perambulou ao acaso: entrava em um ônibus e seguia até o ponto final, descia e caminhava por ruas, vilas e becos em busca de um sujeito que desapareceu — ação que dialoga com a via- -crúcis da personagem Alice, a protagonista de Quarenta dias.

“Eu diria que a matéria-prima do romance é realidade absorvida pela memória, através do filtro dos meus limitados cinco sentidos e de sentimentos meus e dos outros, que reverberaram em mim, e o produto final é resultado de ficção, no sentido literal, de coisa que a gente constrói, fabrica, inventa”, afirma a escritora, que entregou o texto final ao editor no dia 30 de agosto de 2013 — Quarenta dias foi lançado em junho deste ano.

1

A madeleine de Proust

A professora da PUCRS Sissa Jacoby afirma que a memória está presente na literatura desde os poemas, a Ilíada e a Odisseia. “Como epopeias, esses monumentais poemas narrativos se voltam para um passado grandioso, o da civilização helênica e, neles, seja qual for a tese autoral que prevaleça — a de um poeta único ou vários —, vamos encontrar as mais variadas fontes da oralidade e, claro, da memória, individual e coletiva, em qualquer dos casos”, diz Sissa.

Já a professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Ana Cláudia Viegas observa que, literariamente, a memória está relacionada à construção do indivíduo moderno. “Ao longo do século XIX, a memória foi se constituindo como matéria-prima literária. Foi também naquela época que se desenvolveram os diários, memórias e autobiografias de escritores, que, à medida que se tornaram conhecidos, tornaram evidente o uso da memória como matéria-prima para a ficção”, afirma a especialista da UERJ.

Dentro de tal contexto, a obra de Marcel Proust (1871-1922) é considerada um marco — o autor francês escreveu a série de sete romances Em busca do tempo perdido. “O célebre exemplo disso são as madeleines com chá, cujo sabor traz à memória do narrador proustiano momentos e sensações vividas no passado”, comenta Ana Cláudia, que acrescenta: “A obra de Proust é um marco por trabalhar com a memória involuntária, isto é, aquela memória que vem à tona independentemente da vontade do indivíduo.”

O colunista do jornal O Globo e escritor Arthur Dapieve considera o artifício literário criado por Proust, a madeleine mergulhada no chá, como genial para representar a imprevisibilidade da aparição das lembranças. “O que as desperta? Como as desperta? Por que as desperta? Por que isso e não aquilo?”, comenta Dapieve, citando Pedro Nava (1903-1984), mineiro que se radicou no Rio de Janeiro, como exemplo de grande e maior memorialista brasileiro.

Sissa Jacoby, da PUCRS, lembra que, no caso de Pedro Nava, a inspiração proustiana é clara até no projeto, que previa sete volumes — mas o último volume escrito por Nava ficou incompleto. “Baú de ossos (1972) e Balão cativo (1973) — os dois primeiros títulos — são dois belos exemplos de sua expressividade e da habilidade em transitar entre o particular e o universal, a invenção e a memória. É o grande memorialista brasileiro”, analisa Sissa.

Mentira e verdade
2

“Não há arte sem memória. É impossível”, diz Arthur Dapieve. Ana Cláudia Viegas, da UERJ, completa o raciocínio: “Toda escrita, em prosa ou poética, parte de experiências, vivências e memórias. O que varia é o grau em que essas memórias são utilizadas, de forma explícita, assumida ou não. E também o quanto se mistura, de modo deliberado, de invenção a essas memórias.”

A escritora Maria Valéria Rezende acrescenta: “Sem memória, creio, não há sequer sujeito humano, muito menos sujeito escritor, sem memória não há sequer palavras e, portanto, nem fala nem escrita.”

Silviano Santiago conta que, no início de seu percurso, ao ler o poema “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade, começou a refletir sobre a complexidade do que é memória, quando se fala de mente criadora de literatura. “No poema, o menino sozinho lê na provinciana Itabira a história de Robinson Crusoé. O poeta é a experiência de criança interiorana somada à leitura das aventuras cosmopolitas dum náufrago inglês na sua ilha deserta. O projeto de vida, para falar com Sartre, do menino tem mais a ver com a leitura do que com a vida vivida numa cidade interiorana”, analisa Santiago.

O romancista, autor de Mil rosas roubadas, chama atenção para um detalhe do poema de Drummond, publicado no livro Alguma poesia (1930): “O texto não diz que o menino lê ‘debaixo’ de uma mangueira, diz que ele lê ‘entre’ mangueiras. Ali, no lugar ‘entre’ — metáfora da ilha robinsoniana, cercada de águas por todos os lados — é que se dá o espaço da leitura, da criação da própria identidade do sujeito, que é a dele, Carlos, somada à do protagonista romanesco na sua ilha, posta ‘entre’ águas. Carlos e Robinson entretecem ‘uma comprida história que não acaba mais’, continua o poema.” Santiago diz que o fragmento mencionado resume o que ele acredita ser uma configuração e o exercício da memória em literatura: “A infância que o menino vive não é a dele; é-lhe dada pelo lado de fora de Itabira. Vive também a infância que se lhe é ‘sobreposta’. A memória é oco aberto no lugar ‘entre’ pela curiosidade intelectual que a criação literária pode ou não preencher adequadamente. Diz o poema: ‘E eu não sabia que minha história / era mais bonita que a de Robinson Crusoé’.”

A memória, argumenta Sissa Jacoby, é um conceito genérico, que abre espaço para uma longa e complexa discussão que a filosofia ocidental herdou dos gregos, e que vem desde Platão e Aristóteles até os nossos dias — e é matéria- prima e tema presente na obra de autores do mundo todo, inclusive prosadores e poetas brasileiro: de Machado de Assis a Cristovão Tezza, de Manuel Bandeira a Jamil Snege, de Moacyr Scliar a Tatiana Salem Levy. “Lacunar e seletiva, a memória comporta tanto a lembrança quanto o esquecimento”, comenta a especialista da PUCRS.

Arthur Dapieve observa que a memória segue regras quase aristotélicas de compressão e simplificação dramáticas. “Chega-se ao ponto de se acreditar piamente na memória de coisas que não ocorreram”, completa o escritor. O fato de essas “coisas” não terem ocorrido na vida real não as torna, diz Dapieve, ao menos não necessariamente, falsas: “Pelo contrário, elas podem ser essencialmente mais verdadeiras que a verdade.”