Especial Lusos | Ensaio

Veredas lusitanas

A pesquisadora Jane Tutikian fala sobre o avanço da  literatura lusófona no mercado editorial brasileiro e a absorção dessa produção pelo leitor nacional

Mia Couto
 

Não faz muito que falar em literatura de língua portuguesa publicada fora do Brasil significava falar em literatura produzida em Portugal, e não faz muito que falar em literatura portuguesa no Brasil significava tão somente falar em Luís de Camões, Eça de Queirós e Fernando Pessoa. Uma série de razões explicam — e elas passam pela situação precária (ainda) do ensino de literatura na escola básica, assim como pelo preço do livro estrangeiro, para quem não percebeu, pagamos taxa de importação, e pelo tempo, o longo tempo de espera pelo livro comprado (e pago) — e isso não tem nada a ver com acordo ortográfico.

Felizmente aconteceu o avanço tecnológico e a revolução nas comunicações no final do século passado, que colocaram o mundo próximo do mundo e as editoras brasileiras se deram conta de um nicho fantástico (ainda em descoberta, é verdade), as literaturas de língua portuguesa. Felizmente nós tivemos a chance de acompanhar o interesse geral do final do século XX, pelas então chamadas literaturas terceiro-mundistas.

Ainda entre décadas de 1970 a 1990, a Ática, numa heroica iniciativa, lançou a coleção “Autores Africanos”, à época recebida por olhos marcados pelo exótico. Hoje, à luz de outro olhar, são obras preciosas e reveladoras. Para esta nova fase de descoberta da África, abriram caminho Pepetela e Mia Couto, dois dos maiores escritores da língua portuguesa. O primeiro situa-se entre os autores que trazem consigo a sina da reescrita da história angolana, com a visão não apenas do ponto de vista do colonizador, mas também das populações que viveram o processo. O segundo, por sua vez, um conciliador de um belo projeto de moçambicanidade e a recriação estética da palavra.

Outro escritor a abrir caminhos é o angolano José Eduardo Agualusa, autor de alguns dos livros mais bem acabados das literaturas africanas, e, para ficar na última década, falemos de O vendedor de passados (2004) e
Eça de Queirós
As mulheres de meu pai (2007), que revisitam a africanidade através da memória. Aliás, a contribuição de Agualusa vai além, na medida em que, em 2006, cria com Conceição Lopes e FatimaOtero a editora brasileira Língua Geral, dedicada a autores de língua portuguesa.

Ondjaki teve publicado um belo livro de contos, Os da minha rua (2012), pela LG. Esse livro vem na esteira de Bom dia camaradas, lançado aqui só em 2014 pela Companhia das Letras, onde, através do olhar da criança, apresenta a Angola socialista, independente, quando o menino-narrador conta seu dia- -a-dia. Este mesmo menino, o tema e a ambientação reaparecem nos contos de Os da minha rua, um álbum de fotografias que revela as gentes simples da rua Fernão Mendes Pinto. São narrativas curtas, que deixam a criança falar de seu mundo e de suas descobertas, como no romance AvóDezanove e o segredo do soviético (2009), que recebeu o prêmio Jabuti da CBL, onde as lacunas da História, as zonas do esquecimento, são ditas pelo olhar da criança. São obras permeadas pela poesia, pela delicadeza, pelo humor, pela linguagem que combina a oralidade à arte narrativa. Em 2013, chega a vez do romance Os transparentes, revelador de um escritor mais maduro. O cenário é ainda a Luanda do pós-guerra, com sua economia informal, com a degradação social, com o neo-patrimonialismo. A estória é a de um homem transparente e do prédio onde vive. Aí, desfila uma interessante galeria de tipos que trazem consigo a psicologia e o comportamento dos grupos que representam. Há lirismo, mas há humor e até mais: sarcasmo.

Um dos ícones da literatura angolana, também publicado no Brasil, é Luandino Vieira. E duas obras são antológicas: o clássico Luuanda (2006), com narrativas curtas e bem-humoradas, passadas nos musseques (favelas), que trazem a denúncia da colonização, escrito ainda sob o regime de Salazar, na Colônia do Tarrafal, e A cidade e a infância (2007). O último foi publicado em 1957, em Luanda, pela ABC, edepois, em 1960, em Lisboa, pela Casa dos Estudantes do Império. O primeiro, com cinco contos, o segundo, com dez. Entre os dois, em comum, o título, o conto “Companheiros” e a memória. O primeiro foi apreendido e destruído pela polícia fascista. O segundo inaugura a verdadeira ficção angolana e é o que é publicado no Brasil. Há as aventuras da infância e o jogo entre o passado e o presente (anos 40/50). O presente traz o musseque angolano. E a fronteira entre a cidade (branca) e o musseque é o asfalto, emblema de todas as fronteiras sociais e raciais, que põem em evidência no seu subtexto o discurso crítico elaborado com sensibilidade, inteligência e arte contra a burguesia branca que ocupa Luanda e a atuação da política racista do governo colonial. A linguagem que Luandino traz para seus textos é a do musseque.

Ainda de Angola, embora com uma proposta totalmente diferente, não há como deixar de mencionar João Melo. Teve publicado no Brasil, pela Record (2006), Filhos da pátria. Trata-se de excelente contista que usa as formas do cômico para questionar as “verdades absolutas” da vida angolana do pós-colonialismo, sejam elas sociais, políticas ou morais, e também as “verdades literárias”, na medida em que tem um narrador que atravessa todos os contos e que é absolutamente irreverente e crítico. Também no cômico, na linha da paródia, a Gryphus publicou Quem me dera ser onda (2005), do excelente Manuel Rui, compadre do nosso Martinho da Vila. Ao contar a estória do porco chamado Carnaval da Vitória, o escritor satiriza todo o contexto sócio-político do pós-independência. E isso sob a aparência de uma estória infantil.

Paulina Chiziane, primeira escritora e romancista moçambicana, apresenta um trabalho impressionante sobre a condição feminina. Em 2004, a Companhia das Letras mostrou ao Brasil Niketche — uma história da poligamia, uma obra surpreendente em todos os sentidos. Há humor, há lirismo, mas há, sobretudo, na sua prosa, um mergulho profundo na cultura tradicional de Moçambique e no papel que cabe à mulher numa sociedade poligâmica.

Luandino
Dos autores moçambicanos, é preciso falar de Rio dos bons sinais (Língua Geral, 2012) , de Nelson Saúte, cujo cenário é a morte e o luto e cujo tema são as relações humanas, o amor e a amizade. Como diz o “nosso moçambicano” Ruy Guerra, o livro é o encontro de outras gentes, de outras terras, outra maneira de juntar as mesmas palavras, outro mar. Saúte usa uma formasimples, que diz muito da cultura africana, de valores complexos, de sentimentos completos.

Da Guiné Bissau, o nome publicado pela Pallas, em 2006, é o de Abdulai Sila, autor do primeiro romance nacional: A última tragédia, que inaugura a trilogia formada com Eterna paixão e Mistida. A última tragédia conta a estória de Ndani, a hospedeira de azar, denunciando por ela a relação de opressão estabelecida pelo colonizador, na capital e no interior. É a narração da nação, como disse Moema Augel.

É ainda necessário falar, pela qualidade literária, de um escritor não africano, mas de um país que foi colônia portuguesa e que, três dias após a independência, foi tomado pela Indonésia, o Timor-Leste. Estou falando de Réquiem para o navegador solitário (2010), de Luís Cardoso. Os conflitos étnicos e políticos da ilha, que serviu como prisão, cercada por tubarões e piratas estão lá, mas também está lá Catarina, que se dedica à recuperação da fazenda Sacromonte enquanto aguarda a chegada do navegador solitário. Estão lá a história e a cultura timorense com seus mitos. Com um estilo fortemente individuado, Cardoso é o grande romancista do Timor e um dos mais criativos — do ponto de vista do estilo — das literaturas de língua portuguesa.

Há que se mencionar, também, os escritores que trazem um novo fôlego à já, sem dúvida, literatura europeia de ponta: a portuguesa, cuja figura ilustre é Saramago, não apenas pelo Prêmio Nobel (1998), mas também porque ele reabre as portas e, com seu espírito polêmico e com sua lucidez crítica, é o primeiroescritor português a não aceitar ser “traduzido” para o português do Brasil.

Superada a geração de abril, revela- se Gonçalo Tavares, nascido em Luanda. Temos publicados no Brasil os livros da série “O Bairro” e da tetralogia “O Reino”. Os habitantes do bairro (dez narrativas curtas) são pessoas notórias como Valéry, Breton, Calvino, Swedenborg, Eliot… Se esses textos são marcados pela ironia, pelo riso, no outro extremo está “O Reino”, de que destaco Jerusalém (2006). Não há como sair o mesmo da sua leitura. A obra é estruturada como microcontos que tecem as histórias pessoais em diferentes tempos — presente, passado e futuro — numa mescla de sofrimento, horror, loucura, enfim, uma densa análise do funcionamento social, quando no limite da sanidade.

Outro escritor que veio para renovar a literatura portuguesa contemporânea é Valter Hugo Mãe, português nascido em Angola (leia entrevista na página 30). Mãe tem todos os seus romances publicados entre nós. Foi, inclusive, vencedor do Portugal Telecom, um dos prêmios mais prestigiados do país, com A máquina de fazer espanhóis (2011). O enredo é aparentemente simples, se pensarmos que o velho Silva, de 84 anos, perde a esposa, o grande amor da sua vida e é levado para um asilo, mas é mais do que isso — inclusive porque lá também vive o Esteves sem metafísica (“Tabacaria” — Álvaro de Campos) — é a história do humano, suas realidades, suas memórias, suas fantasias. Tudo num estilo singular e escrito em letras minúsculas. Ao lado desses dois jovens talentos, coloco um terceiro, José Luís Peixoto, com o seu Cemitério de Pianos, editado pela Record em 2008. Com uma estrutura inovadora, o romance se passa durante uma maratona e tem como inspiração o atleta português Francisco Lázaro. Atravésde diferentes narradores — que marcam a complexidade da obra — em tempos diferentes, os Franciscos revelam a história da família. Há um ciclo que se repete entre nascimentos e mortes, como os velhos pianos da oficina, de que outros serão construídos. É um livro que impressiona.

Duas mulheres representam este sopro de renovação. Inês Pedrosa, que fez muito sucesso no Brasil com o romance Fazes-me falta (2010), publicado pela Objetiva. O processo narrativo da obra é pautado pela originalidade, na medida em que é contado por duas vozes e uma delas é a do pai morto. É um romance humano, amparado pelos sentimentos de amor e de amizade, e de uma intensidade poética única.

A outra mulher é a grande Lídia Jorge, com seu irretocável domínio da narrativa e sua inquietação estética. Em 2012, a Leya Brasil trouxe A noite das mulheres cantoras, cujo pano de fundo são os retornados, meio milhão de portugueses forçados a retornar a Portugal depois da independência das colônias, deixando na África tudo o que possuem, voltando para uma terra que já não mais conhecem. No início do livro, Lídia Jorge esclarece que ao contar-se a história de um grupo, conta- se a história de um povo. O grupo é formado por quatro jovens que querem alcançar a fama com um conjunto de mulheres cantoras.

Por esses nomes e por outros, quando alguém põe em dúvida o futuro da língua portuguesa, penso na sua literatura. Minha resposta? Vai muito bem, obrigada! É que literatura é ponte e revela mesmo quando esconde. Seusilêncio é feito de liberdade, sua construção de uma aventura estética total, detonadora de percepções, compreensões e visões inesgotáveis e, nesse sentido, as literaturas de língua portuguesa (e a gente nem falou da brasileira) nada ficam a dever às melhores do mundo, seja lá o que “melhores do mundo” signifique, mas isso já é outra estória.

Jane Tutikian é professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora, entre outros, dos livros Pessoas (contos, 1987), Geração traída (novela, 1990) e Velhas identidades novas (ensaios, 2006). Vive em Porto Alegre (RS).