Especial | Lusos

Nova onda lusitana

Apesar da presença da obra de Camões, Eça de Queirós, Fernando Pessoa e José Saramago, desde a última década outros jovens autores que escrevem em língua portuguesa, de Portugal e de ex-colônias, conquistam cada vez mais espaço no mercado editorial brasileiro


Marcio Renato dos Santos


Lanlan

Há pelo menos uma década que os leitores brasileiros começaram a encontrar nas prateleiras e gôndolas de livrarias uma nova opção de títulos literários em língua portuguesa. Gonçalo Tavares, José Eduardo Agualusa, José Luís Peixoto, Jorge Reis-Sá, Ondjaki e Valter Hugo Mãe, entre outros, passaram a ter seus livros publicados no Brasil. Em comum, eles escrevem em português e nasceram ou vivem em ex-colônias portuguesas ou em Portugal.

O que teria motivado a presença desses autores, inclusive em eventos literários, no Brasil? O professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Alexandre Montaury Baptista Coutinho acredita que foi um aposta comercial de editoras interessadas em divulgar autores ainda sem circulação entre os leitores brasileiros. “Mas também é possível afirmar que houve incentivos oficiais portugueses, de setores responsáveis pela difusão das culturas de língua portuguesa no mundo”, comenta Coutinho.

O escritor português Jorge Reis-Sá, autor de 20 títulos, alguns deles publicados no Brasil, como o romance O dom, diz não conhecer suficientemente o mercado editorial brasileiro para opinar, mas sabe que, há pelo menos 10 anos, o Brasil se voltou para Portugal. “Tenho a impressão de que isso aconteceu devido a mudanças no Brasil, com o aumento da classe média, do que [por um genuíno interesse] na literatura portuguesa”, observa Reis-Sá.

José Eduardo Agualusa, que é angolano, analisa que o Brasil só há poucos anos começou a olhar para fora, para o mundo. “Parece-me que o Brasil tem vindo a descobrir essas literaturas com o deslumbramento de quem se reencontra a si mesmo”, diz Agualusa. Já o escritor Helder Macedo, nascido na África do Sul e radicado em Londres, tem outro ponto de vista: “Na minha experiência, o Brasil dá mais atenção à literatura portuguesa do que Portugal dá à literatura Brasileira. Sobretudo nas universidades.”

Apesar das várias e conflitantes opiniões a respeito do assunto, a presença desses autores que escrevem em língua portuguesa e de suas obras em território brasileiro é um fato. “Graças a Deus, há uma nova literatura que respira saúde e inspiração, produtividade e energia. E está para durar”, comemora Margarida Rebelo Pinto, autora de 19 livros, entre eles o romance Não há coincidência.

EM COMUM, A QUALIDADE

“Hoje, alguns autores de língua portuguesa não representam novidade para os leitores brasileiros. Há aqueles que já estão naquela fase de serem relidos”, afirma o professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) Audemaro Taranto, referindo-se, entre outros, à portuguesa Inês Pedrosa. Para comprovar o que diz, Taranto comenta que universidades brasileiras estudam o assunto há algum tempo. A PUC-Minas, por exemplo, criou em 1988 a área de Literaturas de Língua Portuguesa no programa de pós-graduação.

Helder Macedo e outros autores observam que o interesse brasileiro por escritores de língua portuguesa não é tão recente. José Saramago, antes de receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, era lido e apreciado no Brasil. O português José Cardoso Pires, o angolano Pepetela e o moçambicano Mia Couto também encontram ressonância entre os brasileiros há mais de uma década, além de Eça de Queiroz, Fernando Pessoa e Camilo Castelo Branco — autores de obras conhecidas no Brasil há várias gerações.

Mas, sem dúvida, pondera Audemaro Taranto, da PUC-Minas, “há novas vozes”. Gonçalo Tavares, José Eduardo Agualusa, José Luís Peixoto, Jorge Reis-Sá, Ondjaki e Valter Hugo Mãe, entre outros, representam uma nova geração? “São autores muito diversos. A única coisa que eles têm em comum é a qualidade”, opina o próprio José Eduardo Agualusa. “Não sei se é uma geração. É gente que vive da escrita. O que mais há de comum é uma visão profissional da escrita. Ou seja, mais sociologia da literatura do que literatura. O resto, temas e afins, são parecidos porque vivemos no mesmo tempo. E o homem é sempre a sua circunstância”, afirma Jorge Reis-Sá.

Margarida Rebelo Pinto analisa que esses novos autores são, inquestionavelmente, todos diferentes entre si. “O que os aproxima é serem homens e é verdade que os homens escrevem de forma diferente das mulheres”, garante. Margarida comenta que o escritor inglês Bruce Chatwin (1940-1989) fazia a distinção entre o “escritor-toupeira”, aquele mergulha no seu mundo, e o “escritor-explorador”, o que retrata o mundo exterior. “Seguindo essa linha de pensamento, Agualusa é mais explorador, Peixoto e eu mais toupeira. Gonçalo é um caso à parte, porque sua obra é de uma originalidade de pensamento notável. Mas ninguém fala tanto de amor como eu. Acredito que, sozinha, escrevo mais sobre o amor e os afetos do que eles todos juntos”, afirma a escritora lusitana.

O prosador português Afonso Cruz, autor de 15 livros, entre os quais o romance Para onde vão os guarda-chuvas, acredita que, entre os autores da nova prosa em língua portuguesa, há as mesmas diferenças que se encontram em todos os indivíduos, em todas as gerações: “Uns preferem a razão à emoção, outros o trabalho da linguagem ao enredo, outros o contrário. Os temas também variam. Por vezes, são perfeitamente cosmopolitas, outras vezes locais, há de tudo, e essa variedade torna tudo mais universal, mais humano.”

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O PASSADO NO PRESENTE

 A professora de Literatura Portuguesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Maria Helena Sansão Fontes acompanha sistematicamente a produção de jovens autores de língua portuguesa que não vivenciaram diretamente o regime salazarista [1933-1974], porque nasceram pouco antes ou pouco depois da Revolução dos Cravos, em 1974, mas receberam suas marcas, herdadas de pais, tios ou avós. “São marcas da memória desses parentes que sobrevivem no imaginário e na criação das personagens, trazendo- lhes o desassossego advindo dos fantasmas da opressão e dos estilhaços das guerras de um passado recente”, afirma Maria Helena.

Para exemplificar o seu argumento, a estudiosa da UERJ cita A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe, O teu rosto será o último, de João Ricardo Pedro e O retorno, de Dulce Maria Cardoso. “Nos três romances citados, o sentimento marcado pela memória de um passado incômodo se sobressai na linguagem intimista e fragmentada das personagens. No caso de Valter Hugo Mãe, é a memória de um idoso, atormentado pela culpa de ter colaborado com o regime opressor ao denunciar um jovem perseguido pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), a polícia política, que vai permear as angustiadas reminiscências da personagem”, comenta a especialista da UERJ.

Em O teu rosto será o último, João Ricardo Pedro — explica Maria Helena — desconstrói a ordem cronológica para compor também um quadro sofrido, de rostos marcados pela memória perturbada de uma família, cujos tormentos incidem na formação do último descendente. Já em O retorno, de Dulce Maria Cardoso, são as lembranças adolescentes de um jovem que vão trazer à tona as injustiças, os preconceitos e as rejeições daqueles que retornaram à Portugal após as independências das ex-colônias portuguesas.

“Essa questão de autores jovens que não viveram diretamente o período do Estado Novo [outro nome do regime salazarista], as guerras pela libertação das colônias e a Revolução dos Cravos, mas que desenvolvem esses conflitos em seus romances como se os tivessem vivenciado, torna-os mais instigantes para mim”, diz a estudiosa, completando que a linguagem desses autores, bastante diferentes entre si, reflete a problemática do romance pósmoderno, “muitas vezes valendo-se do resgate do passado, para a compreensão do momento presente”.

PARECIDOS, MAS DIFERENTES

O escritor português Manuel Jorge Marmelo, autor de 20 livros, tem a impressão de que, até então, não existiu outra geração de autores que escrevem em língua portuguesa tão lida e traduzida quanto a atual. Jorge Reis-Sá tem obras publicadas na Itália e no Brasil. Alguns dos 19 títulos de Margarida Rebelo Pinto podem ser encontrados, além de Portugal, na Espanha, Itália, França Holanda, Bélgica, Brasil e na Alemanha. A ficção de José Eduardo Agualusa está traduzida em mais de 25 idiomas, inclusive em língua inglesa, sonho de quase todo escritor — possivelmente de qualquer idioma.

 “O mercado de língua inglesa é um dos mais fechados do mundo. Para você ter uma ideia, enquanto na maioria dos países europeus mais de metade da ficção publicada vem de outras línguas, nos Estados Unidos e no Reino Unido esse número não ultrapassa os dois por cento. Traduz-se pouco e prevalece uma grande desconfiança em relação aos livros traduzidos”, comenta Agualusa. Ele conseguiu furar esse bloqueio por ter conquistado um prêmio literário relevante, o Prémio Independent — destinado à melhor ficção traduzida no Reino Unido. Agualusa valoriza a conquista: “Afinal, contam-se pelos dedos de uma única mão o número de escritores de língua portuguesa que é possível encontrar nas livrarias inglesas e americanas.”

Apesar desse fluxo, a presença da obra de autores que escrevem em língua portuguesa no Brasil, em países europeus e até nos Estados Unidos, o professor da PUC-Rio Alexandre Montaury Baptista Coutinho chama atenção para um fato: “É inútil tentarmos forçar um sentido identitário de comunidade lusófona”. O especialista afirma que, apesar de um discurso de fraternidade, há inúmeras diferenças, seja nas posturas políticas e estéticas dos autores. “Quando falamos, por exemplo, de literatura angolana, estamos nos referindo, na maior parte dos casos, àquelas obras e autores urbanos, que escrevem em português. Ao mesmo tempo, estamos apagando os narradores que mantém tradições orais ou que não utilizam o português como idioma principal. Nessa perspectiva, embora seja possível reconhecer aproximações, é preciso não perder de vista demarcações discursivas e diferenças estruturantes que vitalizam a existência dessas redes culturais”, diz Coutinho.

É Portugal, mas parece o Brasil

Em Portugal, editorialmente, a situação não é das melhores. Os escritores, alguns deles jornalistas, consultados pelo Cândido contam que duas editoras praticamente dominam o país: a Porto Editora e a Leya. “Lê-se muito autor português. O que é ótimo”, empolga-se Jorge Reis-Sá, para em seguida lamentar: “Mas o espaço para literatura é diminuto, com apenas um jornal quinzenal, uma revista trimestral e dois suplementos semanais.” Manuel Jorge Marmelo observa que, do outro lado do Oceano Atlântico, o jornalismo, de modo geral, passa por uma crise de identidade e o jornalismo cultural perdeu muito espaço. “Os dois jornais mais vendidos, bem como as televisões, quase ignoram a literatura, mas ainda há alguns cadernos culturais em jornais de referência, mas com pouca tiragem”, diz Marmelo. É Portugal, mas parece o Brasil.

O fenômeno Gonçalo Tavares

Gonçalo Tavares
O professor da PUC-Minas Audemaro Taranto afirma: “Gonçalo Tavares é a demonstração de como a genialidade ganha reconhecimento imediato”. E o estudioso mineiro não é o único entusiasta da ficção do escritor angolano. Gonçalo Tavares estreou em 2001, com O livro da dança, e desde então já escreveu mais de dez romances — obra, no momento, com 250 traduções em 30 idiomas. De acordo com a análise de Alexandre Montaury Baptista Coutinho, da PUC-Rio, a literatura de Tavares apresenta qualidades, inclusive o fato de não ser impregnada de questões nacionais. “Camões e Eça de Queirós, por exemplo, se basearam, em momentos diferentes, em percepções específicas da singularidade portuguesa no espaço europeu. Já o Gonçalo Tavares é um escritor que pavimenta seus textos com questões que são humanas, pósnacionais. Ele trabalha com questões políticas densas e relevantes”, diz Coutinho. O escritor nasceu em Luanda, Angola, em 1970 e, entre os seus romances, se destacam Jerusalém, vencedor do Prêmio José Saramago, em 2005, e Aprender a rezar na era da técnica, que conquistou o Prêmio de Melhor Livro Estrangeiro da França em 2010.