Especial | Guerra conjugal

O amor e outros objetos pontiagudos

Do romantismo até hoje, autores brasileiros recriam literariamente o casamento, do seu formato tradicional a novas possibilidades de vida a dois — incluindo até mais elementos na relação


Marcio Renato dos Santos
Guilherme Pupo
Bernardo Carvalho trata da complexidade dos relacionamentos em seu mais recente romance, Simpatia pelo demônio.

Bernardo Carvalho trata da complexidade dos relacionamentos em seu mais recente romance, Simpatia pelo demônio.

Simpatia pelo demônio (2016), o mais recente romance de Bernardo Carvalho, apresenta — entre outras questões — um casamento em ruínas. Funcionário de uma agência humanitária, o Rato enfrenta a crise da meia-idade, deixa a esposa e se envolve com um neurocientista, o personagem chihuahua (assim mesmo, em minúscula). Este, por sua vez, mantém um relacionamento com um ator, o Palhaço.

O professor aposentado da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Paulo Venturelli afirma que é “simplesmente de babar” como o narrador de Simpatia pelo demônio esmiúça as taras do chihuahua, o seu poder de atração e manipulação, o movimento de guerrilhas amorosas que ele lança em direção a seus amantes, usando o corpo para atender a interesses mesquinhos, sumindo e aparecendo em ocasiões imprevistas. 

A ruína de um relacionamento também aparece no mais recente livro de contos de Sérgio Sant’Anna, O conto zero (2016). A narrativa “Flores brancas” mostra a breve, mas intensa ascensão e queda de um casal. O escritor diz que levou tempo, “como sempre levo”, para escrever o conto. “A matéria-prima foi autobiográfica”, confessa. Depois de um relacionamento que se desfez, Sant’Anna foi morar sozinho num barraco, onde tinha um pequeno jardim: “aí, um dia, me sentei de costas para a janela e de fato flores brancas caíram. Fiquei emocionado e falei para mim mesmo: ‘um dia vou escrever sobre isso.’ Acalentei a ideia durante muito tempo e depois a realizei literariamente”. 

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“Flores brancas” mostra o momento do encantamento de Célio por Lucrécia, e vice-versa (ele abandonou a esposa para viver com ela) e, posteriormente, cenas de uma guerra conjugal entre o novo casal, a exemplo do que se lê em um trecho da página 47: “Foi quando um ódio intenso me assomou à cabeça e eu tive vontade de bater em Lucrécia. Levantei o braço e aproximei- -me dela. Ela encolheu-se toda e parei a tempo. Dei as costas para ela, atravessei a sala e a cozinha em direção ao quintal, passando pelo caramanchão, onde dependuráramos samambaias, e cheguei lá fora. Estava vivendo um momento crítico e o barulho dos grilos na escuridão, a luz dos vaga-lumes e o céu estrelado como que emprestavam solenidade a esse momento, e apreendi de uma só vez tudo aquilo que plantáramos e víramos crescer naquele ano e pouco que passáramos juntos.” 

Em seu livro anterior, O homem-mulher (2014), há um conto que dialoga com “Flores brancas”. “Eles dois” traz apenas o momento idílico do relacionamento do casal. O professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Lourival Holanda observa que, em “Flores brancas”, Sant’Anna expõe o casamento/relacionamento, enquanto prática social competitiva, quase sempre cruel. Já Sant’Anna não deixa de dizer que o conto tem um final feliz, apesar da crise que os personagens enfrentam. “Célio tem um horizonte em aberto. Ele se redime sim”, pondera o ficcionista. 

A cartilha do romantismo 

Diferentemente daquilo que o leitor encontra em Simpatia pelo demônio ou em O conto zero, as primeiras representações do casamento na literatura brasileira aparecem no período romântico, no século XIX. A professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Giovanna Dealtry alerta que é preciso fazer uma distinção entre casamento e relações afetivas. “O amor sempre foi um tema constante na literatura, desde os clássicos, mas não necessariamente havia uma correlação com o casamento”, comenta. O casamento romântico, explica Giovanna, seria destinado aos jovens, movidos apenas pelo amor sincero, sem interesses financeiros. Igualmente, nos romances, continua a professora da Uerj, surge a discussão entre amor e situação financeira. “É preciso lembrar que o casamento, para as famílias mais abastadas, tratava-se de um negócio, um arranjo econômico, pouco interessando o amor entre o casal. Por isso a importância do dote oferecido pela família da mulher que, em tese, tinha um peso morto em casa, já que as mulheres não poderiam ser herdeiras dos negócios familiares, nem trabalhar. O trabalho, como sabemos, era reservado às mulheres pobres ou escravizadas”, diz Giovanna. 

Paulo Venturelli salienta que, antes de falar em casamento, seria interessante abrir espaço para uma reflexão sobre o amor. No caso, aquele amor com raízes nos trovadores e, em especial, no romantismo burguês. Trata-se, explica o professor aposentado da UFPR, da sujeição do desejo do homem/ mulher a uma dada ordem social. “A sociedade sempre temeu as flamas do desejo. Precisou discipliná-lo por meio de normas. São elaborados certos códigos e verdadeiros métodos de colonização da mente/corpo para o humano ser enclausurado dentro de uma fôrma. O corpo passa a ter um significado, um sentido voltado para a ideologia dominante. A igreja, a medicina, as instituições jurídicas encarceram o corpo/ desejo e todas as suas potencialidades são conduzidas para a criação da família — crescei e multiplicai-vos —, pois isso interessa ao capitalismo nascente”, argumenta Venturelli, também escritor, autor, entre outros, do romance Madrugada de farpas (2015). 

O casamento heterossexual, ressalta o pesquisador, dominou e domina nossa literatura. “No realismo, o interesse (ilusório) era refletir a realidade tal qual ela era. Os escritores não tinham muita ou nenhuma consciência de que captavam o mundo por meio da linguagem, logo, de um ponto de vista, a refratavam por meio de uma ideologia, de uma escala de crenças pessoais e sociais. Recortavam o entorno segundo princípios próprios que, por sua vez, eram modelados pelas crenças/princípios dos grupos hegemônicos”, afirma Venturelli, acrescentando que, no contexto a respeito do qual comenta, o fim do século XIX e o início do século XX, a literatura se via como fotografia da sociedade — o que pode ser comprovado, por exemplo, lendo a obra de José de Alencar. 

“O escritor se queria um observador detalhista da mesma [sociedade]. É o tempo do reinado positivista que ainda dá as ordens por aqui. A literatura tinha pouco de arte. Era mais uma ilustração e uma comprovação das teses que permeavam a sociedade. Tudo vem perpassado por um deplorável déjà vu, obras enfadonhas com raízes no século XIX, num eterno refazer o que já foi escrito há muito”, acrescenta Venturelli. 

Em tal cenário, Lourival Holanda não deixa de chamar atenção para um fato: não há amor na obra de Machado de Assis. “Aqui está sua intuição, sua percepção crítica mais crua e cruel: naquela sociedade de então o casamento se rege pela lógica mercantilizada. Então, os amores são venais, negociáveis”, analisa. O professor da UFPE encontra, porém, uma exceção no legado do autor: o romance Memorial de Aires. “O narrador cala qualquer sarcasmo, coisa que aqui não cabe: o Conselheiro ama Fidélia, amor inviável, naquele contexto, mas amor: ele é capaz de desprender- se do que ama, e ainda amando”, diz. Não por acaso, a longa narrativa é a última que Machado escreveu, publicada em 1908. “Na temática em questão, o mais resolvido”, opina Holanda. 

Negociatas no modernismo 

O professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Leandro Pasini enfatiza que o casamento é o ponto de chegada das narrativas tradicionais do romance romântico e do romantismo em geral. “Nesse sentido, a transcendência do sentimento amoroso corresponderia, no plano social, ao casamento que, como ponto de chegada, funciona como um ápice, sem que as suas contradições sejam desenvolvidas. O desenvolvimento dessas contradições começa a ser realizado a partir do realismo (no romance machadiano, por exemplo) e continuam até hoje na literatura”, comenta. 

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No modernismo, foco das pesquisas do professor da Unifesp, a noção de casamento é problematizada. Para exemplificar o que diz, cita “As bodas montevideanas”, de Mário de Andrade, publicado em Remate de males (1930). O poema traz o seguinte fragmento: “Amanhã cedo iremos a Montevidéu casar.../ Tem mais comodidade lá na Lei, até divórcio nos reserva,/ E nos iremos a Montevidéu só pra casar...”. “Perceba-se que o casamento ocorre já com o horizonte da possibilidade do divórcio, em um ponto em que a liberdade moderna (modernista) decide casar, mas não renuncia às potencialidades da separação. No caso, a busca da felicidade individual tem no casamento um de seus momentos, fundado na coexistência entre amor e companheirismo, mas não é o seu ápice”, analisa. 

Pasini também destaca uma obra de Oswald de Andrade, O rei da vela (1934), em que há uma anatomia do casamento como uma convenção social baseada no interesse financeiro das partes. O agiota Abelardo I arranja um casamento com Heloísa, oriunda de uma família tradicional e falida. Ao procurar o noivo em horário de trabalho, acontece o seguinte diálogo: “ABELARDO I (Rindo.) — Você! Meu amor! Na hora do expediente!/ HELOÍSA — O nosso casamento é um negócio...”. 

Em outro momento, o casal detalha o padrão da sua relação. Abelardo I explica a Heloísa que pagará o casamento dando-lhe uma ilha, ao que ela responde: “HELOÍSA — Em troca da minha liberdade. Chegamos ao casamento... Que você no começo dizia ser a mais imora das instituições humanas./ ABELARDO I — E a mais útil à nossa classe... A que defende a herança...”. A relação entre convenção, negociação e controle social da propriedade, assinala Pasini, não poderia ser mais clara. 

Triângulos no século XX 

De acordo com Paulo Venturelli, a literatura brasileira do século XX, de modo geral, apresenta o modelo de casal burguês, com seus triângulos amorosos — “na literatura, o homem casado ter uma amante era um modo de conservar o casamento.” Mas o estudioso lembra que há exceções, entre as quais Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, “com toda a ambiguidade dos sentimentos de Riobaldo por Diadorim”, Crônica da casa assassinada (1959),“um monstruoso estudo de Lúcio Cardoso sobre as ruínas de uma família que não se suporta mais sob as convenções e não tem como cobrir as feridas que vertem pus”, Quarup (1967), de Antônio Callado, “com um amor proibido eivando a narrativa em seu plano primeiro” e Duas iguais (1998): “manual de amores e equívocos assemelhados, um tormentoso envolvimento afetivo entre duas moças, de Cíntia Moscovich.” 

Além das obras e autores citados por Venturelli, há outros dois nomes da literatura brasileira que, durante o século XX, problematizaram o casamento. Um deles é Nelson Rodrigues que, na definição de Lourival Holanda “fez tarefa freudiana ao expor o lado canalha dos casamentos burgueses”. Venturelli acrescenta que Rodrigues usa o casamento para mostrar a família como um grande centro produtor de neuroses e patologias de toda espécie. De toda a vasta obra do autor, ele destaca Álbum de família (1945) — um mostruário sem piedade de todas as mazelas que brotam no circuito de pessoas sob um mesmo teto. “O autor não deixa pedra sobre pedra, rasga o véu do tempo e faz vir à tona a doença do estatuto familiar”, analisa. 

O casamento (1966), romance de Rodrigues, também merece atenção. A narrativa se concentra nas 24 horas que antecedem o casamento de Glorinha. O pai dela, Sabino, descobre que o noivo da filha flerta com um homem e, num breve espaço de tempo, muito acontece. Sabino procura um padre, de quem escuta uma tese inesperada (que traz a verve polêmica do autor): “— Dizem que eu tenho ideias malucas. Mas, por exemplo, o casamento. Eu ponho o casamento acima de tudo. Essa gente está pensando o quê? O importante no casamento não é a noiva ou o noivo. É o próprio casamento. O ato sexual, que é o ato sexual? […] — O ato sexual é uma mijada!”.

Outro autor que se dedicou ao assunto é Dalton Trevisan. Lourival Holanda acredita que Trevisan expôs a dramaturgia da mediocridade dos casais: “tomou o lugar-comum do tema e, no traçado sucinto dos contos, carregou no lugar-comum da linguagem dos casais: assim esvaziou o tema de qualquer grandeza.” Para Venturelli, Trevisan foca nos “casos populares”, em que os personagens João e Maria são metáforas do povo e se deixam levar pela compulsão do prazer e do gozo, “níveis em que o amor é uma teatralização de impossibilidades.” 

Um dos livros de Trevisan em que os impasses do casamento são explorados com maestria é A guerra conjugal (1969), posteriormente renomeado Guerra conjugal — adaptado para o cinema em 1974 por Joaquim Pedro de Andrade. Dialogando com o poema “Tragédia brasileira”, de Manuel Bandeira, em que o personagem é traído e, a cada nova traição, muda para um outro bairro, o conto “O senhor meu marido” apresenta as desventuras de um João sistematicamente enganado pela sua Maria — e não adianta mudar para outro bairro, seja Juvevê, Prado Velho, Capanema, Mercês, Batel ou Cristo Rei: ela será adúltera em qualquer endereço. 

As impossibilidades de uma vida a dois aparecem em quase todos os contos de Guerra conjugal, seja “Grávida porém virgem” (A ausência de sexo entre o casal pode ser o que motiva infindáveis brigas), “A morte do rei da casa” (Uma carta anônima denunciando a infidelidade do marido é o começo do fim do relacionamento), “Lágrimas de noiva” (o marido não consegue conviver com a esposa) e “A partilha” (a esposa trai o marido com uma série de amantes). “De fato, Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan são mestres na escrita sobre casamentos”, arremata Sérgio Sant’Anna.

Transformações recentes 

Giovanna Dealtry tem convicção de que são as escritoras as responsáveis pela inovação no que diz respeito à recriação literária das relações conjugais nos séculos XX e XXI, entre as quais Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Marina Colassanti. “O casamento é visto não mais como um desejo ‘natural’ de toda mulher, caminho para a constituição familiar. Pelo contrário, são mulheres — na verdade, poderíamos tecer uma linhagem dessas escritoras e personagens desde o século XIX — que não acreditam no casamento como forma de realização pessoal”, afirma. 

De acordo com a professora da Uerj, alguns contos de Clarice Lispector, como “Amor” e “A imitação da rosa”, revelam o desgaste do papel da esposa ideal em tensão com o desejo de escapar dessa condição. “A vida doméstica(da), a espera pelo marido que chega da rua, o cuidar das crianças são vistas como atividades sufocantes pela rotina estabelecida e pelo isolamento das personagens”, diz Giovanna, acrescentando que na ficção brasileira escrita por mulheres surgem novos temas, narrados do ponto de vista de personagens femininas, como o divórcio, o adultério, a constatação do tempo passado e o desgaste das relações. 

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Leandro Pasini observa que, na literatura e na vida, se a palavra casamento for entendida de modo convencional, como uma repetição ritual de fórmulas e comportamentos previamente estabelecidos (“sobretudo aqueles vinculados ao obscurantismo religioso e sua matriz sexista”), ela então remete a formas de opressão social e de gênero e com frequência gera e perpetua a infelicidade subjetiva. “Contudo, se ela for esvaziada de seu conteúdo convencional e passar a significar o modo geral e livre como duas pessoas se relacionam e tornam essa relação pública e oficial, ela passa a ser uma manifestação da solidariedade, da fraternidade e — por que não? — do amor, entendidos como uma forma de compartilhar a vida de forma lúcida e generosa”, argumenta o professor da Unifesp. 

Outras formas de amor se dão na realidade e na ficção brasileira — no entendimento de Paulo Venturelli —, principalmente nos livros Todos nós adorávamos caubóis (2013), de Carol Bensimon, e Mil rosas roubadas (2014), de Silviano Santiago — “com o seu perspicaz trabalho de máscaras escapadiças e não revelando o mundo afetivo entre Zeca e o professor universitário já idoso.” 

Na avaliação de Venturelli, Simpatia pelo demônio, de Bernardo Carvalho (citado no início deste texto) é relevante não apenas pelo enredo, que apresenta as complexidades do relacionamento entre os personagens Rato e chihuahua (que também se envolve com o Palhaço, entre outros). Além de trazer uma problematização a respeito do que pode, ou não, ser um casamento, o romance se destaca pela linguagem e por evidenciar a compreensão que o autor tem da realidade e do fazer literário. “Ele não escreve para comprovar certas posturas teóricas, como muitos dos nossos escritores atuais ainda fazem, revivendo em tom menor o naturalismo de triste lembrança”, analisa o professor aposentado da UFPR.

Sem química

Há um consenso a respeito do tema casamento e a poesia brasileira: não há química. O professor da UFPE Lourival Holanda afirma não haver “muito sucesso” formal na temática casamento na poesia brasileira. “As uniões se desgastam facilmente. A brisa do começo logo depois é a mesma que enferruja o mecanismo da relação cotidiana”, diz.