Especial | Feiras Literárias

Festival de feiras

A proliferação dos festivais literários movimenta a cultura e o negócio do livro, mas também traz dilemas aos autores, como a necessidade de aparecer em público em detrimento da escrita


Ben-Hur Demeneck


Em 2011, havia 75 feiras literárias cadastradas no “Circuito Nacional de Feiras de Livro”. No ano seguinte, a Fundação Biblioteca Nacional e a Câmara Brasileira do Livro (CBL) contabilizavam 200 eventos. Dezenas de feiras eram recém-instaladas ou estavam em fase de consolidação por iniciativa de cidades pequenas e médias.

O volume de eventos literários muda a economia do livro, causando impacto direto na rotina dos autores. Em termos culturais, persiste o desafio de asfeiras não serem apenas eventos que se esgotem em si mesmos, mas que consigam apoiar uma movimentação cultural nas cidades que os sediam. No plano mais cotidiano da literatura, feiras se tornam objeto de discussão nos bate-papos organizados entre autores e leitores.

“Feira”, “festival”, “bienal”, “salão” e “jornada” são diferentes conceitos que se espalham pela geografia brasileira. Somada à influência de feiras tradicionais como a de Porto Alegre, a propagação de eventos literários passa também pela visibilidade midiática. A pequena Paraty ganha matérias de dois minutos no Jornal Nacional e crava seções “FLIP” em cadernos culturais e portais de internet. Também não faltou cobertura para os 720 mil visitantes que estiveram na mais recente Bienal de São Paulo, nem para as cenas de desmaio e choro na sessão de autógrafos de Cassandra Clare no mesmo evento.


Literatura de viagem

“O escritor brasileiro contemporâneo é completamente diferente daqueles que nos antecederam por gerações. Este autor tornou-se um viajante”, escreve Ignácio de Loyola Brandão em seu livro mais recente, chamado O mel de Ocara. Em 2013, Loyola passou por pelo menos 46 cidades e pouco depois de responder a reportagem iria ao Ceará, para a FLAQ (Festa Literária de Aquiraz), participar de evento dedicado aos 40 anos da publicação de seu romance Zero.

“[Apesar das viagens] minha rotina permanece. Aliás, o que prejudica um autor é a sua não vontade de escrever”, diz Loyola. Além de ter dezenas de livros publicados e manter desde 2005 uma coluna n’O Estado de S. Paulo, o autor nascido em 1936 dá pistas de onde vem a motivação de seu nomadismo: “Quando conheci um escritor importante, eu tinha quase 25 anos. Essas figuras eram importantes, se achavam, se mostravam e agiam como importantes. E eles mantinham a distância. Quem sabe, num futuro distante, um daqueles meninos se lembre de um escritor carrancudo que chegou à escola dele, no interior de Goiás? Se isso acontecer, já valeu a minha ida”.

Ignácio faz alusão a sua participação na Festa Literária de Pirenópolis, em que iria tomar café da manhã com crianças de escolas urbanas e rurais como parte da programação. Para ele, ações como essa transcendem a questão de formação de leitores. Significa dessacralizar a literatura, torná-la acessível, prazerosa. E aproveita para fazer um aparte: “A avalanche de eventos literários, ao contrário do que muitos pensam, não se deve apenas à FLIP”. Ele enumera várias ações, como a Jornada de Literatura Nacional de Passo Fundo, a Feira de Livros de Porto Alegre, a Feira PanAmazônica (Belém), o Salipi (Teresina), os Encontros Sul Americanos de Corumbá e as Viagens Literárias promovidas anualmente pela Secretaria de Cultura de São Paulo.

Para o escritor André Sant´Anna, nascido em 1964, “as feiras literárias são uma sofisticação, um plus, em relação à cultura brasileira, já que, nelas, no mínimo, qualquer pessoa pode encontrar um bom livro e crescer individualmente, intelectualmente. A FLIP, por exemplo, exatamente por ser uma espécie de ‘Disneylândia’ literária, faz com que muita gente que não tem o hábito de ler, acabe se interessando pelos livros”, diz Sant’Anna.

Segundo ele, a única coisa “chata” para o escritor no modelo brasileiro, é que, vez ou outra, ouve “que está gastando dinheiro público, que faz parte de panelinhas literárias e essa bobagem toda”. Por outro lado, considera que o encontro com colegas colabore com seu processo criativo e que “não há nada como um quarto de hotel neutro, numa cidade desconhecida, para escrever”.

feira

Feiras e espetáculos

“Os autores que resolveram encarar eventos literários, de alguma maneira, afiaram seu discurso. Eu fui um deles. Sempre preparo ao menos as ideias centrais do que vou abordar, um roteiro, para poder ser o mais conciso e objetivo possível nas falas. O lado ruim disso tudo é que parte do público acaba associando o sucesso de um autor ao número de eventos que participa, ou o quanto ele sai na mídia. E isso é ridículo porque uma obra se constrói com calma, livro a livro, e não indo a eventos”, analisa o escritor Carlos Henrique Schroeder, que estima ter  participado nos últimos cinco anos de 50 a 60 eventos literários.

Schroeder acredita também que os curadores de eventos podem ser mais ousados. “Se o autor aceitou o convite, é porque quer conversar à sua maneira, seja qual for. Escritor não é palhaço, não precisa dar show, mas sim ser coerente com sua obra, com o que ela representa”, diz Schroeder que, além de ser autor de nove livros, entre eles o romance As fantasias eletivas, lançado este ano, tem experiência como curador do Festival Nacional do Conto, evento que ajudou a criar em 2011.

O fato de a obra acabar perdendo lugar para o perfil do escritor é uma discussão “decisiva” ao se pensar o padrão das feiras de livros, segundo Ricardo Lísias, que é autor de cinco romances e já foi finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura. “Autores críticos podem incomodar, então não recebem tantos convites quanto os de comportamento chapa-branca. Eu recebo uma boa quantidade de convites, mas isso se dá também porque meu romance Divórcio acabou se tornando popular. Então, alguns organizadores sabem que meu nome atrai público. Outros querem alguém que diga o que pensa. Mas há de fato discriminação”, reconhece.

Na Bienal Internacional de São Paulo, em mesa sob mediação de Manuel da Costa Pinto, Lísias contextualizou sua visão de mundo com temas como crise da USP, cotas raciais e o conservadorismo jurídico. O escritor acredita que externar opinião em certos eventos, principalmente aqueles organizados pelo poder público local, prefeituras e governos de Estados, podem incomodar os organizadores. “Os escritores que querem ir a muitos eventos, inclusive por razões financeiras, não podem manifestar-se politicamente. Isso explica um certo comportamento chapa- -branca, muito comum no establishment literário brasileiro.”


Salão do automóvel

ivan

O fundador e editor da L&PM Ivan Pinheiro Machado considera haver uma distorção entre a realidade editorial e as feiras literárias. Como o espaço físico tende a ser dominado por livrarias, o leitor passa por diferentes estandes e encontra destaque para os mesmos títulos porque isso aumenta a chance de lucro para o livreiro. A consequênciaé que o frequentador da feira não toma contato com a diversidade da produção editorial brasileira.

“Para mim, o melhor modelo é o Salão do Livro de Paris. Por que ele é importante? Porque só tem editor. E não tem mega-estande, pois há um limite de investimento. Você entra lá e sabe que vai ver toda a produção francófona, pois tem desde a micro-editora até a Gallimard. É óbvio que o estande da Gallimard é maior, mas ele não é mais pomposo. Não tem pirâmides saindo fogo, ou letreiros em neon. Tudo tem um padrão”, opina Ivan.

Ainda que o editor reconheça o valor positivo das feiras, o “PM da L&PM” aposta é nas bibliotecas e nas livrarias e considera sintomático que, apesar da força da Feira de Porto Alegre, o Estado do Rio Grande do Sul não tenha conseguido garantir a permanência de duas grandes instituições — as editoras Globo e Sulina (“cada uma tinha 23 lojas”). Perguntado a respeito do modelo das bienais, brinca que montar um estande de 100 metros quadrados por cerca de R$ 200 mil é digno de um salão de automóvel.

Infantil

A faixa etária e o volume de público causaram um choque cultural no crítico norte-americano Hans Ulrich Gumbrechtao vir para a 23ª Bienal de São Paulo, onde lançou dois livros e também participou de uma mesa sob mediação de Rogério Pereira. O crítico sugere que, mais que uma difusão cultural, uma feira do livro funciona como uma forma de colaborar com a distribuição econômica dos livros.

Gumbrecht é professor de Literatura Comparada na Universidade de Stanford e se espantou com a quantidade de crianças que encontrou pelos corredores da Bienal. “Eu tenho ouvido que, no Brasil, os livros infantis é que tornam muitas editoras economicamente viáveis — o que é ótimo! Ao mesmo tempo, descobrir que uma feira de livros seja principalmente frequentada por crianças me parece estranho — quase assustador.” Ele ainda comenta que nas feiras que conhece nos EUA e na Alemanha, “não passaria na cabeça de ninguém levar crianças para lá”.

O escritor lê

Milton Hatoum já não aceita tantos convites para feiras literárias. Quando os aceita, privilegia os leitores brasileiros. Voltou impressionado de uma feira realizada em outubro na cidade de Maringá, onde encontrou uma plateia de umas 300 pessoas que conheciam sua obra, cujo interesse decorria de Dois irmãos, livro exigido no vestibularda Universidade Estadual de Maringá (UEM). Hatoum assegura que prefere esse tipo de evento do que “ir para a Bélgica falar numa pequena biblioteca para 12 belgas tristíssimos”. A obra de Hatoum circula em mais de 15 países.

“Um tema que seria interessante [de sistematizar] numa feira de livro, bienal, seria saber como determinado escritor lê Guimarães Rosa. Ou como aquele escritor lê O amanuense Belmiro, do Cyro dos Anjos, que é um grande romance e um livro meio esquecido. Ou como o escritor lê Os ratos, do Dyonélio Machado. Ou os contos do Dalton Trevisan. Os próprios escritores podem falar de literatura, mesmo sem o aparato crítico, porque isso não é obrigatório para quem escreve, e transmitir uma impressão de leitura sobre clássicos da leitura brasileira. Até mesmo para reviver esses clássicos e para colocar em circulação algumas obras fundamentais da literatura brasileira”, diz Hatoum.

  Para o autor de Cinzas do norte, as feiras literárias abrem um espaço importante à leitura num contexto de país em que a literatura é mal divulgada. No entanto, elas não substituem a política cultural nem a formação educacional mais consistente. Hatoum gostaria de ver maior envolvimento da universidade nesses eventos mais populares, uma vez que “uma boa leitura depende da universidade, da escola e da crítica”. Quanto à internacionalização da literatura brasileira, registra que “para promover a literatura brasileira no exterior, teria que haver uma instituição ao estilo do Instituto Cervantes. Talvez um ‘Instituto Machado de Assis’, ou algo parecido. Festivais e bienais internacionais não têm como cumprir esse papel sozinhos”.

Em diferentes pontos da geografia e diante de uma diversidade de nomes e conceitos de eventos, o escritor brasileiro contemporâneo arruma as malas e pega a estrada. A tensão entre nomadismo e sedentarismo ganhou intensidade nos últimos cinco ou três anos para cá e lança questões relativamente novas para quem escreve, edita ou faz produção cultural. Questões que ora se revelam nos bate-papos com os autores, ora em reportagens especiais de jornais literários.