Especial | Dalton Trevisan e Rubem Fonseca

Os brutalistas

Renovadores do conto brasileiro, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan chegam aos 90 anos como referências máximas do gênero no país


Luiz Rebinski


Quando Dalton Trevisan e Rubem Fonseca fizeram suas estreias literárias — em 1959 e 1963, respectivamente —, a literatura brasileira vivia ainda o rescaldo do regionalismo, movimento que revelou, a partir dos anos 1930, uma geração fantástica de romancistas. O conto, como acontece hoje, era preterido pela narrativa longa. Tal fato, aliado à renovação dos assuntos propostos por Trevisan e Fonseca em suas prosas — ambas guiadas por uma genuína transgressão da linguagem — deu aos dois autores o rótulo de renovadores do conto brasileiro.

É assim que Dalton Trevisan e Rubem Fonseca chegam aos 90 anos de vida: como marcos da literatura nacional. O surgimento dos autores estabelece um novo momento nas letras brasileiras. Com Novelas nada exemplares (1959), do paranaense Trevisan, e Os prisioneiros (1963), do mineiro Fonseca, a ficção brasileira dialoga com a nova vida social e econômica do país, marcada pela urbanização das cidades e pelos problemas decorrentes das transformações inerentes à nossa tardia industrialização.

De Machado de Assis a Guimarães Rosa, ambos com obra considerável na narrativa breve, mas que ficaram conhecidos por seus romances, a tradição do conto brasileiro ainda estava muito arraigada ao ambiente rural e aos subúrbios. Uma literatura em descompasso com o mundo acelerado, rápido e cheio de referências novas que se apresentava.

“Com Dalton Trevisan e Rubem Fonseca a forma ficou mais sintética, o ponto de vista narrativo perdeu as ilusões burguesas, a gente trivial das cidades ganhou um protagonismo sem concessões fantasiosas como as do realismo socialista”, explica Luís Augusto Fischer, professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Os dois são parte decisiva da reinvenção do gênero conto na literatura brasileira dos anos 1960”, diz Alcir Pécora, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Novelas nada exemplares, com uma escrita contida e burilada, já nasceu reverenciado. O crítico Otto Maria Carpeaux, acostumando a despencar seu imenso repertório em mestres da ficção mundial, dedicou tempo ao estreante curitibano. Viu em Trevisan um “observador atento dos pormenores da realidade”. O livro, que já no título praticava uma irônica molecagem com o clássico de Cervantes (Novelas exemplares), ganhou o Prêmio Jabuti.

Com Os prisioneiros, o barulho foi similar. Mesmo sendo um livro de autor desconhecido, publicado por uma editora modesta (GDR), a crítica se rendeu à novidade. A fartura de recursos estilísticos usadas pelo autor, que empreendia uma narrativa rápida, de diálogos diretos, marcados por elipses e que, ainda assim, traziam a marca do conto psicológico, tomou de assalto os críticos. “Ele já estreou nas alturas, elogiado pelo critico Assis Brasil, de grande prestígio no Jornal do Brasil, no início dos anos 1960; feito e tanto em se tratando de um estreante”, relembra Sérgio Augusto, amigo de Rubem Fonseca desde os anos 1960 e responsável pela curadoria da reedição da obra do escritor pela editora Agir a partir de 2009, quando o escritor rompeu com a Companhia das Letras.

Além de Assis Brasil, Wilson Martins também identificou naquela estreia um promissor autor. “O senhor Rubem Fonseca renova o conto brasileiro no momento mesmo em que estaríamos inclinados a considerá- -lo esgotado”, escreveu em fevereiro de 1964 no “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo. “É a grande revelação dos últimos anos”, disse Fausto Cunha, crítico conhecido pelas opiniões mordazes.

Rubem e Zuenir

Na década de 1970, Rubem Fonseca e Zuenir Ventura de bicicleta. (Foto: Zeca Fonseca)

Mandrake e Nelsinho

Considerando as oscilações e mudanças de rota que uma obra de mais de cinco décadas pode sofrer, os dois marcos iniciais das carreiras de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, de certa forma, lançariam as bases para tudo que os autores produziriam a partir dali.

Especialmente no caso de Rubem Fonseca, o primeiro conto de Os prisioneiros é uma espécie de síntese da literatura que o escritor praticaria mais tarde, não só nas histórias curtas, mas também nos romances que publicou, principalmente, durante a década de 1980. “Em fevereiro ou março”, que abre a coletânea, um “miserável”, que vende seu próprio sangue para sobreviver, se envolve com uma aristocrata decadente (condessa Bernstroff), que o apresenta para um mundo novo, de glamour. O contraste de classes sociais, o paradoxo entre personagens pobres, mas inteligentes, a malandragem e a violência dos morros cariocas e a narrativa misteriosa, com toques de crônica, fazem do conto um protótipo da prosa fonsequiana.

Naquele momento também já ficavam evidentes as influências do autor, cuja literatura de língua inglesa, em especial a americana, está no centro de sua prosa. O fascínio pela ficção anglófila aflorou durante uma viagem que o escritor fez aos Estados Unidos, quando, entre os anos 1956 e 1957, teria estudado administração na Universidade de Boston.

“Mandrake [personagem que aparece em contos e romances do escritor] é filho dos ‘heróis existencialistas’ criados por Dashiell Hammett e Raymond Chandler. A grande novidade de Zé Rubem, além de recriar com sabor nosso o noir americano, foi fugir à aparentemente inescapável influência de Maupassant, Katherine Mansfield e William Soroyan”, diz Sérgio Augusto.

Já Dalton Trevisan oscilou por caminhos mais diversos durante a carreira, apesar de marcas de sua literatura permearem, entre idas e vindas, toda a obra, como o uso da repetição e da elipse. No entanto, sempre sob o signo da síntese, o escritor transitou por subgêneros como a prosa poética (Cantares de Sulamita) e a epístola (Pão e sangue), além de ampliar seu escopo de temas, indo dos problemas de relacionamento (Guerra conjugal) às questões mais urgentes da sociedade contemporânea, como o problema do crack (O maníaco do olho verde). Sem esquecer, claro, do gênero em que Dalton Trevisan melhor exercita seus maus sentimentos: as histórias de maledicências, em geral direcionadas a desafetos. “Viajo Curitiba das conferências positivistas, eles são 11 em Curitiba, há 13 no mundo inteiro”, diz trecho do conto “Em busca de Curitiba”, originalmente publicado em Mistérios de Curitiba, de 1968.

“Se você ler os primeiros livros de Dalton Trevisan, vai verificar que esses textos se prendem a um modelo clássico de conto, com o objetivo do produzir o ‘efeito único’, conforme proposto pelo Edgar Allan Poe”, explica Fernando Paixão, poeta e professor de literatura do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP). “No entanto, esse modelo vai se esgarçando ao longo dos livros seguintes. Uma década depois, ele escreve Guerra conjugal (1969), que condensa a dramática humana na pele de João e Maria, que praticamente são personagens-arquétipos. Vemos aí uma passagem dos personagens-típicos para a criação de personagens-tipos, com os quais ele revela as mazelas brasileiras”, completa.

O poeta Francisco Alvim, que nos anos 1970 integrou a geração da chamada “poesia marginal”, que assim como Dalton Trevisan, se valia da auto-publicação para fazer circular a literatura que produzia, também contesta a ideia de que o escritor curitibano se repete a cada novo livro. “Não estou muito certo se esse tipo de abordagem [a da repetição] do estilo de Dalton seja inteiramente satisfatório, porque sua escrita, em verdade, muda muito; e o que nela talvez seja de fato incessante seja não a repetição, mas a mudança, que se faz por meio de um processo muito seu de aglutinação, concentração e tensionamento da linguagem, processo que atravessa toda a obra e que constitui de fato o que chamo, à falta de melhor denominação, de o ‘tom de Dalton.’”

Ainda hoje as duas primeiras coletâneas de contos de Dalton Trevisan (Novelas nada exemplares e Cemitério de elefantes) estão entre suas obras mais aclamadas. Mas é com o quarto livro que o escritor ampliaria seu número de leitores. O Vampiro de Curitiba, lançado há exatamente 50 anos, em 1965, coloca ainda mais em evidência outro elemento que seria fundamental na prosa de Trevisan: o sexo. Identificado como “novela”, o livro narra histórias curtas protagonizadas por Nelsinho, o Vampiro do título, que ao contrário do mito, é obcecado por sexo, e não sangue.

dalton e rubem braga

Rubem Braga e Dalton Trevisan

A coletânea fez tanto sucesso que o próprio escritor passou a ser identificado como “Vampiro de Curitiba”, por conta de sua aversão em aparecer em público. “É o momento em que reúne o universal ao local, ou seja, toma a figura do vampiro e adapta-o à sua cidade natal. Com isso, percebe-se um ecletismo narrativo diferente dos livros anteriores”, diz Fernando Paixão, que durante os anos 1980 editou duas coletâneas de contos (Vozes do retrato e Quem tem u hostelmedo de vampiro?) do escritor curitibano para a editora Ática. Para ele, “Uma vela para Dario”, de Cemitério de elefantes,segundo livro de Dalton Trevisan, é um “dos melhores contos do mundo”.

Ao longo das décadas seguintes, Trevisan continuaria produzindo muito, sempre com alto padrão de qualidade. Nos últimos anos, tem sido fiel à média de um livro por ano. Seguindo em direção contrária ao clichê da repetição, em sua mais recente coletânea de contos, O beijo na nuca (2014), a Curitiba de tantas histórias é trocada por cenários europeus, como Roma.

Mais um capítulo da reinvenção literária que o Vampiro empreendeu à sua obra, o que tem sido constante ao longo das décadas. No começo dos anos 1990, surgiu com os minicontos, que chamou de “ais” (Ah, é?), e a partir da segunda metade dos anos 2000, ajusta suas histórias aos problemas contemporâneos de Curitiba (Violetas e pavões e Desgracida). Ainda assim, não é possível identificar “fases” muito claras em sua obra, pois a cada livro o Vampiro embaralha gêneros e temas.

Agruras de um jovem escritor

Quando se lançou na literatura, Rubem Fonseca já era um homem maduro de 38 anos. Isso pode explicar, parcialmente, como, de certa forma, “já nasceu pronto”. Ao longo de 15 anos, o escritor lançou uma série de livros arrebatadores, em que radicalizava ainda mais a fórmula experimentada na primeira coletânea. A coleira do cão (1965), Lúcia McCartney (1967), Feliz ano novo (1975) e O cobrador (1979) — há ainda uma novela no meio, O caso Morel (1973) — fizeram do escritor um exímio retratista da feroz realidade que o país vivia no conturbado período pós-1964. Ele havia se especializado no conto violento, narrado sem meias palavras. Uma literatura “brutalista”, na concepção do acadêmico e crítico Alfredo Bosi.

Contos dessa primeira fase do escritor, como “O cobrador”, “Feliz Ano Novo”, “Encontro no Amazonas”, “O inimigo” e “Passeio noturno (Partes I e II)” fazem valer o rótulo dado por Bosi a Fonseca. Além da violência, do “climão” noir e da já citada linguagem empreendida nas histórias, o escritor subverte a ordem das coisas ao transpor para o conto praticamente todos os elementos-chave que consagraram o romance policial. Daí suas melhores histórias serem àquelas mais extensas, em que o escritor consegue dar acabamento mais eficaz à personalidade de seus protagonistas. Não são apenas cenas que estão em jogo nos melhores contos de Fonseca, mas sim trajetórias. Em histórias de 30 ou 50 páginas, a prosa do escritor reproduz o efeito dos melhores romances policiais, com as idas e vindas narrativas tão características ao gênero. Portanto, Fonseca, em um caso raro na literatura mundial, transformou-se em um grande “contista policial”.

O grau de excelência atingido pelo escritor foi tamanho, que quando migrou para o romance, gênero que é a matriz da narrativa noir, o resultado foi contestado por muitos críticos. Apesar do sucesso de livros como A grande arte (filmado em 1991 por Walter Salles) e Agosto (transformado em minissérie pela Rede Globo em 1993), a opinião da maioria dos leitores é de que Rubem Fonseca é mesmo um contista. “Acho que o conto é o gênero que Fonseca domina com um apuro e uma inventividade invejáveis. É, como Dalton, um renovador do conto brasileiro e, ao mesmo tempo, um retratista implacável da sociedade brasileira”, diz Sérgio Sant’Anna, ele mesmo considerado mestre das breves narrativas. Para Sant’Anna, Dalton Trevisan hoje é “o maior contista do mundo”.

Sérgio Augusto engrossa o coro, mas faz ressalvas em relação aos críticos do romancista Fonseca. “Como quase todo mundo, prefiro o contista ao romancista. De todo modo, não desgosto das narrativas mais longas, para as quais alguns críticos torceram o nariz. Mas é preciso não esquecer que essas comparações se processam num plano elevado. Um Rubem Fonseca supostamente menor já sai com 1 x 0 no placar. Ele só consegue ser inferior a si mesmo.”

O know-how adquirido pelo escritor é conhecido. José Rubem Fonseca entrou para a Academia de Polícia do Rio de Janeiro em 1949, após passar pelo curso de Direito. Na corporação, tinha dois grandes amigos: Ivan Vasques e Mário César da Silva. Em meados dos anos 1950, Fonseca sai da polícia e vira executivo da Light e, na sequência, escritor. Vasques e Silva seriam inspiração para as histórias de assassinatos narradas pelo ex-colega. É dessa época também a passagem mais nebulosa da biografia do escritor, quando colaborou com o Ipês (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), organismo fundado em 1962 com o objetivo de propagar o pensamento liberal e anti-marxista (leia mais na página 28).

Unidos pelo mundo cão

As conexões entre Dalton Trevisan e Rubem Fonseca existem, mas estão mais no plano da curiosidade do que no campo literário. Além da coincidência de nascerem no mesmo ano, o que se sabe é que ambos apreciam cinema e não gostam de aparecer em público — Fonseca, no entanto, frequenta feiras e eventos literários no exterior.

No âmbito da ficção, a aproximação entre os dois autores costuma ser feita mesmo a partir do tema da violência. Mas há, logicamente, diferenças. A percepção geral é que Rubem Fonseca trata a temática de forma explícita, enquanto em Dalton Trevisan a violência se dilui aos poucos em suas narrativas. “Na mecânica afetiva baixa de Dalton, a violência é sempre impotente, fantasiada: uma imaginação desvairada pelos ciúmes, o ódio resultante da incapacidade de vingança. No caso de Fonseca, as próprias ações das personagens são brutais”, explica Alcir Pécora.

Em comum mesmo, está a importância que cada um tem na literatura brasileira. Surgidos no século XX, os escritores chegam ao século XXI ainda como matrizes para as novas gerações. Um modelo que, para Luís Augusto Fischer, ainda não foi superado pelos escritores que os sucederam. “Tomando por base a famosa antologia da Granta, publicada há poucos anos, com o que se considerou os melhores escritores sub-40, não houve renovação significativa nesta geração, e valeria fazer um exame do que havia aparecido antes, nas antologias de Geração 90, do Nelson de Oliveira, as quais, relembradas de longe, igualmente não parecem ter trazido novidade forte ao gênero, considerada a vasta e profícua produção contística iniciada pelos dois noventões mais Clarice Lispector.”


O VAMPIRO

Dalton Jérson Trevisan nasceu em 14 de junho de 1925, em Curitiba, cidade que é cenário para a sua vasta e premiada obra literária. Na juventude, escreveu e publicou sonetos na revista Tingui, mas logo migrou para a prosa. A revista circulou até 1943, ano em que Dalton é aprovado no vestibular de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ele ainda trabalharia no jornal Diário do Paraná, como repórter policial e crítico de cinema. Nunca exerceu de fato a advocacia e, após sofrer um acidente na fábrica de louça e vidro da família, passou a se dedicar mais à literatura, escrevendo contos e novelas em cadernos de cordel, com edição limitada de 200 exemplares, que enviava gratuitamente para escritores e amigos. Em âmbito nacional, sua primeira aparição é com a revista Joaquim, que editou entre abril de 1946 e dezembro de 1948. A revista teve apenas 21 edições, suficientes para fazer muito barulho na cidade. Além de publicar modernistas, atacava escritores locais. São dessa época também seus dois famosos livros renegados — Sonatas ao Luar (1945) e Sete anos de pastor (1946). Duas décadas depois faria sua verdadeira estreia literária. A partir de 1959 começa sua trajetória de êxito. Com mais de 40 livros (sem incluir as coletâneas), Dalton ganhou os principais prêmios literários do país, como Jabuti e Portugal Telecom. Em 2012 recebeu o Prêmio Camões, maior horaria da literatura de língua portuguesa.


ZÉ RUBEM

Nascido em 11 de maio de 1925, José Rubem Fonseca é mineiro de Juiz de Fora, mas adotou o Rio de Janeiro como sua cidade natal. A capital fluminense serve de pano de fundo para a maioria de suas histórias — “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, uma de suas histórias mais brilhantes, é um dos pontos altos da relação entre o autor e a cidade. Em José (2001), livro de memórias travestido de ficção, o autor narra seu percurso inicial nas letras, quando aos qautro anos aprendeu a ler sozinho e se tornou um compulsivo devorador de ficção. Sua prosa está repleta de referências a autores e livros. O caso Morel (1973), sua primeira novela, é uma enciclopédia de influências, em que personagens cultos, como o protagonista Paul Morel, citam uma miríade de referências eruditas a cada página — de Man Ray a Jean Cocteau. Em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, outro romance, Fonseca põe o escritor russo Isaac Bábel no centro da trama. O cinema é outra referência constante. “Sua ficção é cheia de alusões cinematográficas, explícitas e sibilinas; isso desde o primeiro livro, em que se aproveitou de um personagem real (Henri Landru, estrangulador serial de viúvas) abordado na tela por Chaplin e Claude Chabrol. Leon Wexler, sócio de Mandrake no escritório de advocacia, é uma homenagem ao diretor de fotografia e cineasta Haskell Wexler. Em Histórias de amor (1997) há referências diretas e indiretas a filmes como Uma vida por um fio, Janela indiscreta, O destino bate à sua porta e Pacto de sangue”, diz o também cinéfilo Sérgio Augusto.