Especial Crítica Literária | Crítica Literária Hoje

Crítica literária hoje

O crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ) João Cezar de Castro Rocha sugere que o atual momento, dominado pelas novas tecnologias de mídia, pode ser uma oportunidade para a  reinvenção da crítica literária e o reconhecimento da força da literatura brasileira contemporânea


A simples pergunta sobre a crítica literária hoje esclarece o ponto de vista do interlocutor. Pelo avesso, a ênfase no advérbio sugere a convicção de que a crítica literária é uma atividade cujos melhores dias pertencem a um distante ontem.

Tenho escrito muito acerca desse ânimo: trata-se, propus, da “melancolia chique”.1 Ela tem como base a anacrônica projeção, no complexo aqui e agora, de uma inexistente fase áurea, na qual críticos teriam sua voz admirada e seu papel social valorizado.

Noutra ocasião, busquei reconstruir a história do cisma entre cátedra e rodapé. Vale dizer, a querela entre o exercício crítico desenvolvido na universidade, movido pelo tempo próprio à pesquisa, e a prática diária da imprensa, pautada pelo calor da hora.2 Porém, argumentei, não somente a crítica literária perdeu espaço no jornalismo pós-1945. Na verdade, todas as seções de opiniões foram progressivamente substituídas pelo apego ao fato, pela ânsia do “furo”, pelas regras rígidas para a redação “objetiva” de artigos. O problema era mais geral, referindo-se à imposição do modelo norte-americano de jornalismo.

Insisti, por isso, na necessidade de desdramatizar a tão propalada crise da crítica literária e da literatura brasileira contemporânea.3 Para explicitar minha perspectiva, tanto analisei o jornalismo cultural brasileiro, quanto resenhei um número razoável de romances, além de dedicar-me a estudos de caso de autores determinados. Por fim, cheguei a arriscar a escrita de panoramas do atual cenário da literatura brasileira.4

Desta vez, pretendo abordar o tema a partir de um novo ângulo.
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A questão-chave para a reformulação do problema exige uma reflexão alternativa acerca do deslocamento do literário ocorrido nas últimas décadas. A literatura — e suas instituições, entre elas, a crítica literária — ocupou por séculos o centro da transmissão de valores; daí, sua importância social pretérita. Hoje, contudo, a literatura foi substituída na circulação de ideias e na formação de símbolos pelo universo audiovisual e digital.

A reflexão mais urgente diz respeito às consequências desse deslocamento. Em outras palavras, como escrever literatura nessa constelação?

Ao contrário de séculos de tradição, nos quais o autor podia supor uma certa imagem de seu público, hoje não se pode mais ter certeza sequer da existência prévia desse mesmo público. No mínimo, a disputa pela atenção do leitor deve levar em conta a pluralidade dos meios disponíveis.

Ora, Cervantes inaugurou o romance moderno com uma exortação reveladora: “Desocupado lector ( ..)”. Os adjetivos sucedem-se no “prólogo” de Don Quijote: “lector carísimo”; “libre”; “lector suave”. Numa palavra, o acesso ao mundo passava pelo universo letrado.

Em Mimesis, o mais impressionante réquiem do mundo criado pela centralidade do literário, Erich Auerbach desatou as pontas dessa tradição com idêntico vocativo, mas em direção oposta. Recordem-se as primeiras palavras de seu ensaio: “Die Leser der Odyssee (...)”. Assim: Os leitores da Odisseia: sem qualificativo algum, como se sua possibilidade fosse antes uma miragem; abstrata precisamente em sua concretude marmórea.

O próprio Auerbach foi o primeiro crítico de renome a observar os limites do literário numa era audiovisual.

Recupere-se sua lucidez:

O cinema cuja técnica permite dar-nos, em alguns instantes, toda uma série de imagens que constituem um conjunto simultâneo de fenômenos ligados ao mesmo tema, forneceu ao perspectivismo um dos novos meios de expressão, conforme à realidade múltipla de nossa vida. A arte da palavra não pode obter resultados iguais; mas, se ela é incapaz de levar o perspectivismo dos fenômenos exteriores tão longe quanto o cinema, e, no entanto, a única capaz de exprimir um perspectivismo histórico da consciência humana e de reconstruir- lhe, dessarte, a unidade.5

Tal análise comparada de meios distintos de expressão estimula um interessante paralelo com Walter Benjamin e sua preocupação com novas tecnologias de comunicação. No último capítulo de Mimesis, Auerbach insistiu na análise:

Neste último caso, poder-se-ia presumir que o escritor tem a intenção de aproveitar para o romance as possibilidades estruturais que oferece o cinema; estaríamos, porém, na direção errada, pois uma tal concentração de espaço e tempo, como o cinema é capaz de atingir (...) nunca poderá ser atingida apenas pela palavra escrita ou lida.6

Por isso mesmo, Auerbach concluiu:

Simultaneamente, porém, o romance conheceu, a partir do cinema, com uma nitidez nunca antes atingida, os limites da sua liberdade no tempo e no espaço que lhe são impostos por seu instrumento, a linguagem. Desta forma, a relação é a inversa da anterior, e o drama cinematográfico tem possibilidades muito maiores de estruturação espaciotemporal dos objetos que o romance.7

O problema multiplicou-se exponencialmente, com a proliferação das tecnologias digitais e a profusão das redes sociais.

A pergunta-chave, então, retorna: como escrever literatura nessa constelação? Na cena internacional, um autor como David Foster Wallace construiu sua obra como uma forma aguda de elaboração desse dilema.

De igual modo, a relevância da crítica literária depende do enfrentamento do mesmo desafio. Nesse sentido, a marginalidade de seu espaço no jornal — em aparência, o estopim deste número de Cândido — deve ser assumida como o lugar próprio do exercício crítico em 2014.

No entanto, compreendida sob um ponto de vista nada apocalíptico, a perda da centralidade da literatura e da crítica literária pode apresentar uma oportunidade única.

A reinvenção da crítica literária e o reconhecimento da força da literatura brasileira contemporânea exigem uma nova perspectiva. Necessitamos plasmar noções novas, a fim de dialogar com as condições definidoras das primeiras décadas do século XXI.

O primeiro passo demanda a reavaliação do sentido da inegável perda de centralidade da literatura e da crítica literária na transmissão de valores num universo dominado por meios audiovisuais e digitais. O fato é incontestável, mas sua interpretação melancólica deve ser questionada.

Proponho uma hipótese: a perda da centralidade “libertou” a literatura do pálido papel de arquivo da nação — empenho que dominou a disciplina História da Literatura no século XIX e na primeira metade do seguinte. O compromisso com a afirmação da nacionalidade foi o passaporte que abriu as portas da profissionalização acadêmica. Os estudos literários se converteram em respeitável disciplina universitária, mas sob a condição de valorizar o verbo pátrio — expressão que recorda a dicção grandiloquente dos professores oitocentistas.

De igual modo, a perda da centralidade também “libertou” a literatura da obrigação de antecipar o eterno retorno da literariedade. Eis o autêntico fantasma que assombra a disciplina Teoria da Literatura. Confundiu-se, porém, a necessária preocupação teórica com determinação dogmática do que deveria constituir a “melhor” literatura. Tal fenômeno resultou na redução drástica do repertório de leitura dos professores universitários — curiosa grei, cujo hábito definidor é a procura exclusiva de textos que confirmem os pressupostos defendidos por este ou aquele grupo.

(Picasso gostava de dizer que não buscava, encontrava, mas, claro, isso depois de pesquisas exaustivas. Pelo contrário, os professores comprometidos com este ou aquele corpus doutrinário sempre encontram, precisamente porque não buscam...)

A liberdade produzida pela perda da centralidade do literário tem estimulado um dos veios mais instigantes da literatura brasileira contemporânea, cujo eixo é a reflexão sobre a importância possível da literatura no cenário atual. Aqui, destacam-se, entre outros, Bernardo Carvalho, Michel Laub, Carola Saavedra.

A crítica literária necessita aprimorar idêntico gesto.

Trata-se, assim, de seguir a trilha aberta por Erich Auerbach, inicialmente reconhecendo os limites do literário num universo dominado por tecnologias audiovisuais e digitais. No entanto, em lugar de render-se ao impulso apocalíptico, por que não apostar todas as fichas na busca da especificidade do ato de leitura estimulado por textos literários?

Especificidade que, por efeito de contraste, torna-se sempre mais explícita no mundo contemporâneo.


João Cezar de Castro Rocha é professor universitário e crítico. Escreveu, entre outros livros, Literatura e cordialidade – O público e o privado na cultura brasileira (1998) e Exercícios críticos (2008). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Ilustração: Marcelo Cipis
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1.Esforço desenvolvido na coluna “Nossa América, nosso tempo”, publicada no jornal Rascunho.
2. Crítica literária: em busca do tempo perdido? Chapecó: Argos, 2011.
3. “Desdramatizando a crise da crítica”. O Globo, Prosa & Verso, 11/02/2012.
4.“Zeitgenössiche brasilianische LIteratur - ein Überblick”. In: Zeitgenössiche Künstler aus Brasilien.
Göttingen: Steidl, 2013, p. 201-215; “Notas de literatura brasileña”. Letras Libres, 2013, p. 109.
5. Erich Auerbach. Introdução aos estudos literários. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1987, p. 245.
6. Erich Auerbach. Mimesis. A Representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976, p. 491-492.
7. Idem, p. 492.