Especial Capa: Sempre palavra



Helena Kolody
Sinônimo de poesia, Helena Kolody completaria 100 anos em 12 de outubro.Composta por dezenas de livros e  inúmeros poemas, a sua obra é cada vez mais estudada nas universidades e o seu nome se mantém presente no imaginário da cultura contemporânea paranaense

Márcio Renato dos Santos

“O poeta nasce no poema, inventa-se em palavras.” O poema de Helena Kolody pode, em alguma medida, definir a poeta que completaria 100 anos em 12 de outubro deste ano. O percurso da autora nascida em Cruz Machado (PR) e radicada em Curitiba é, em grande parte, de e por meio de poemas e palavras. O escritor e editor Roberto Gomes acredita na tese. “Não era uma poeta eventual. A poesia foi, para ela, uma forma de vida, uma forma de entender a vida, de construir a si mesma”, diz Gomes, lembrando que a autora escreveu, e publicou, desde os 16 anos até 2004, quando morreu, aos 91 anos. “Ela tinha algo de fascinante: era desses poetas — como o Mario Quintana — que parecem encarnar a poesia”, completa o editor, que publicou diversos livros da autora, inclusive Viagem no espelho, coletânea que reúne a sua obra.

A relação visceral de Helena com as palavras chamou, já faz tempo, a atenção de Antonio Donizeti da Cruz, que realizou dissertação de mestrado e tese de doutorado sobre a produção da autora. “A poesia kolodyana tem o poder de projetar palavras que despertam o leitor para uma observação atenta das coisas mínimas, mas indispensáveis à conjugação dos entes e seres”, afirma. Para compreender melhor as palavras do professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), basta recorrer a poemas de Helena como, por exemplo, “Significado” — do livro Poesia mínima (1986) —, no qual se lê: “No poema/ e nas nuvens,/ cada qual descobre/ o que deseja ver”.

Autoexplicativo, “Significado” evidencia uma característica da produção da autora: a sabedoria ou, dito de outra
                    
                 A LÁGRIMA

     Oh! lágrima cristalina,
     Tão salgada e pequenina,
     Quanta dor tu não redimes!
     Mesmo feita de amargura,
     És tão sublime, tão pura               Que só virtudes
       exprimes

       Ao coração torturado,
       pela saudade magoado
       Pelo destino cruel,
       Tu és a pérola linda
        do rosário que não finda,
        Feita de tortura e fel.

                        
Primeiro poema publicado
 por Helena Kolody,
nas páginas da revista Garoto,
na década de 1920.

maneira, o conhecimento da experiência humana apresentado de maneira sutil e com tamanha simplicidade que o leitor pode se perguntar por que ele não escreveu aquilo. O mesmo se dá com, e diante, de outros poemas, a exemplo de “Poesia mínima”: “Pintou estrelas no muro/ e teve o céu/ ao alcance das mãos”. Roberto Gomes considera esse um dos melhores momentos de Helena e, desconcertado, diz: “Perceba a síntese e a simplicidade”. Em seguida, ele completa: “Qualquer um acha que poderia ter escrito isso aí”.
Mas a aparente simplicidade da lírica kolodyana, evidentemente, é resultado de um trabalho contínuo. Dos primeiros aos últimos livros, há — pelo menos — um aspecto comum na obra de Helena: ela estreou com versos longos e buscou, obstinadamente, a síntese — apesar de haver, na primeira obra, Paisagem interior (1941), poemas curtos e haicais. “Exceto Guilherme de Almeida, em São Paulo, ninguém no Brasil [na década de 1940] se aventurava nessa forma”, observa Gomes.

Luísa Cristina dos Santos Fontes, professora de Literatura Brasileira na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), vai no embalo do discurso do escritor e editor catarinense e observa que na década de 1980 surgirá uma Helena desprendida de valores poéticos ultrapassados, “que acaba conquistando um público leitor mais jovem com uma poesia ‘mais leve e mais breve’, mais imediata, mais urgente, numa dicção absolutamente sintonizada com a prática poética de seu tempo”. Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com pesquisa sobre a obra de Helena, Luísa localizou mais de 500 textos críticos sobre a obra da poeta centenária e, em relação aos poemas breves, há até mesmo declarações apaixonadas, a exemplo do que escreveu Paulo Leminski: “Helena chega ao gol com menos toques na bola”.

Diálogos kolodyanos

Em meio à vasta produção da autora, o escritor Paulo Venturelli destaca “Gestação”, do livro Sempre palavra (1985): “Do longo sono secreto/ na entranha escura da terra,/ o carbono acorda diamante”. Também professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Venturelli explica o porquê de sua predileção por este texto minimalista de Helena: “Ela resume [neste poema] toda a história da humanidade, toda a transformação do homem ao longo dos séculos, tudo que fizemos para chegar ao patamar em que estamos hoje. De simples animais, bípedes humanoides, chegamos a um mundo de produção impressionante no século atual. Nós, que éramos o bruto carbono escondido nas cavernas do tempo e da história, fomos nos desenvolvendo até nos tornarmos o diamante de hoje”.

Venturelli analisa que a busca pela síntese diz respeito ao amadurecimento da autora. “À medida que lia e escrevia, ela foi se desvencilhando quase naturalmente da carga verbalista para versos e poemas mais sintéticos. Helena deve ter buscado esse patamar com a consciência de quem precisava ir mudando, enquanto sua visão de mundo e sua sensibilidade também mudavam”, argumenta o escritor e professor, acrescentando que a poeta não vivia isolada em si mesma. “É óbvio que ela estava antenada com o que se produzia e recebeu influxos das tendências de nossa poesia ao longo do tempo. Se ela tivesse se mantido como foi no início, obviamente não teria alcançado a grandeza que alcançou”, completa.

E quem seriam os autores com quem Helena Kolody dialogou? Venturelli cita Cecília Meirelles, Manuel Bandeira e Henriqueta Lisboa. Roberto Gomes acrescenta Mario Quintana e Adélia Prado. Antonio Donizeti da Cruz afirma que é possível identificar na poesia de Helena sinais — intertextuais — de Fernando Pessoa e Camões. “A presença do Oriente em sua poesia deve-se às leituras prediletas de sua juventude, incluindo a obra de Rabindranath Tagore, como ela mesma afirmou em diversas entrevistas”, comenta Cruz.


Duplo, viagem e outros temas

Antonio Donizeti da Cruz identifica como temas recorrentes na produção da autora o fazer poético, a concepção do duplo — representada pelo espelho, a sombra, o reflexo, o retrato —, a viagem, a efemeridade, a permanência, o amor — e também o amor não correspondido, a solidão e a memória. O professor da Unioeste também percebe, na poesia de Helena, a identificação com o legado cultural da Ucrânia e, ainda, uma celebração telúrica com relação ao país de seus ancestrais. “O retorno às origens, a referência à imigração ucraniana, a revisitação da infância pelo sujeito lírico e a nostalgia são temas recorrentes na poesia kolodyana”, teoriza.

Ana Maria Zanini, autora da dissertação de mestrado A poesia de Helena Kolody: religiosidade em confluências da arte, menciona um aspecto da obra da poeta — tema central de seu estudo: a religiosidade. “Não poderia deixar de citar os poemas de cunho religioso, onde a presença de uma força superior se materializa na magnitude dos versos. Nesses poemas, Helena questiona o nascimento, a vida, a morte e o além. Assim, é possível refletir sobre o conjunto de atos que substantivamos no termo existência, sendo que a surpresa maior é o fato da consciência, é o desabrochar para a racionalidade. A poeta vai a todo momento trabalhando os estados de ignorância e conhecimento e neste paradoxo vai afirmando que quanto maior o estado de ignorância, maior o nível de felicidade”, comenta a professora que vive em Renascença, na região Sudoeste do Paraná.

Para comprovar o raciocínio, Ana cita o poema “Gênesis”, do primeiro livro da autora, Paisagem interior (1941): “A princípio era o nada:/ Tudo confuso e escuro, imerso no silêncio/ De um vazio desmedido; a alma inteira abismada/ Na inconsciência feliz e boa de ignorar/ A vida, a inquietação suprema de viver/ Encadeada à suprema angústia de pensar”. Ana argumenta que, a exemplo do que o poema sugere, a grande dor é pensar, refletir, tomar consciência do mundo. “‘Gênesis’ é um poema espetacular porque trabalha exatamente com o que eu disse anteriormente, ou seja, a inquietação de viver é a angústia de pensar. À medida que se desenvolve, vai desdobrando a temática e aflora em questionamentos do tipo: quando, como e por que do mistério de viver”, diz Ana.

Helena

Encontro de amigos na década de 1990: Helena Kolody, Valfrido Pilotto e Adélia Maria Woellner.


Outras fronteiras

Apesar dos estudos acadêmicos que, inegavelmente, tornam a obra mais visível, e até da condecoração póstuma que recebeu no ano passado do Ministério da Cultura, a Ordem do Mérito Cultural, a poesia de Helena Kolody ainda é pouco conhecida fora do Paraná. Paulo Venturelli e Roberto Gomes dizem, em coro, que, antes de mais nada, é necessário evitar alguns equívocos — ditos e repetidos — a respeito da autora.

“No âmbito curitibano, falta alterar a ótica de leitura e de avaliação de sua obra. Helena não era uma senhora idosa e piedosa que escrevia versos. Era, desde muito jovem, alguém com uma consciência muito clara do fazer poético — escreveu belos versos sobre a criação literária. Uma raridade na província. Escreveu alguns belos poemas. O que não é pouco”, afirma Gomes. Venturelli, por sua vez, diz escutar — nos corredores da vida — muita gente dizendo que não gosta da poesia da Helena por ser romântica demais, açucarada, discursiva. “Isso é uma injustiça. Ela pode ter feito isto em seus primeiros livros. No final, era uma poeta de mão-cheia, fazendo versos que rutilam pela telegrafia que nos envia com densidade e substância”, afirma.

Antonio Donizeti da Cruz avalia que, a exemplo de um tecelão que escolhe os fios e os emaranha, com esmero e talento, no tear, Helena construiu os seus poemas, “tecidos de palavras”, com precisão e arte. “Assim, pode-se verificar na obra de Kolody o olhar projetado no cotidiano e nas suas reinvenções, em suas transmutações da realidade convertidas em matéria verbal capaz de refletir e de dar novos direcionamentos à vida e à arte”, opina.

Autor do romance Júlia (2008), inspirado na vida da poeta Júlia da Costa (1844-1911), Roberto Gomes diz que não pretende, “de modo algum”, escrever uma obra de ficção a partir do percurso existencial de Helena. “A vida de Helena está toda ela colocada nos versos que ela escreveu”, afirma. Ele acredita que a obra da poeta foi bastante lida, não apenas em Curitiba. E, para o centenário de nascimento de Helena, Gomes tem um pedido, que é uma sugestão e também um desejo: “Agora, seria o caso da obra dela ser lida melhor”.


HELENA NO TEMPO


1912
: Filha dos ucranianos Miguel e Vitória Kolody, nasce, em Cruz Machado (PR), em 12 de outubro.

1914-1920: Passa a infância em Três Barras (SC).

1920-1922: Estuda no grupo escolar Barão de Antonina, em Rio Negro (SC).

1924: Reside em Mafra (SC), estuda piano, pintura e produz os primeiros poemas.

1927: A família Kolody muda-se para a capital paranaense.

1928: A lágrima é o seu primeiro poema a ser veiculado publicamente, nas páginas da revista Garoto.

1930: A partir deste ano, os poemas de Helena passam a ser veiculados na revista Marinha, editada em Paranaguá.

1932: Designada professora do grupo escola Barão de Antonina, em Rio Negro.

1937: É transferida para a Escola Normal Secundária de Curitiba, onde leciona por mais de duas décadas.

1941: Publica seu primeiro livro, Paisagem interior, dedicado ao pai, Miguel, morto meses antes do lançamento.

1945: Ano de publicação de seu segundo livro, Música submersa.

1951: Lança A sombra no rio.

1964: Publica Vida breve.

1966: Surgem dois novos livros:
Trilha sonora e Era espacial.

1970: Publica Tempo.

1980: Publicação de
Infinito presente e Saga.