Especial Capa: Quando a crônica esportiva virou literatura

Nelson Rodrigues, o mais célebre dramaturgo brasileiro, também foi o melhor dos nossos cronistas esportivos, levando para o efêmero texto de jornal a imortalidade das grandes peças literárias

Da redação

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Se Machado de Assis é considerado um dos precursores da crônica e Rubem Braga o criador de um estilo único de escrever sobre o efêmero, até hoje copiado por escritores de diversas matizes, Nelson Rodrigues é, com certeza, o maior nome em um subgênero que se proliferou como nenhum outro na imprensa brasileira: a crônica esportiva. Aficionado pelo Fluminense, Nelson fez a ponte entre duas expressões que o senso comum se acostumou a chamar de “tipicamente brasileiro”: a crônica e o futebol. Se Rubem Braga trouxe para a literatura o comezinho, o assunto banal, sem importância, Nelson falou sobre futebol da mesma maneira que grandes romancistas trataram dos temas universais, como a morte e a condição existencial do ser humano.

Para o cronista Nelson Rodrigues, o futebol era um tema que merecia não apenas espaço para discuti-lo, mas para recriá-lo. Com suas antológicas frase e textos, elevou a crônica de esporte ao patamar de arte. Por isso, ainda hoje, mesmo com uma infinidade de cronistas esportivos na ativa, é considerado por muitos profissionais como o melhor escritor da crônica esportiva.

Antes de Nelson, a crônica esportiva já estava estabelecida no Rio de Janeiro, cidade em que o dramaturgo passou grande parte da vida. Mario Rodrigues, ainda nos anos 1920, deu a Mario Filho, irmão de Nelson, carta branca para criar nos jornais A Manhã e Crítica, de propriedade da família, uma seção de esportes. Nunca até então a imprensa brasileira dera tanto espaço ao futebol. Mario Filho foi o primeiro a transformar os jogadores em figuras interessantes para o leitor. Traço que Nelson, com seu texto literário inconfundível e insuperável, elevaria às altas potências nas décadas seguintes, fazendo do futebol uma continuação de seu teatro.

O escritor fez sua estreia na crônica esportiva nos anos 1950, no Última Hora, o jornal de Samuel Wainer. Mas um de seus momentos mais brilhantes se deu nas páginas da Manchete Esportiva, entre 1955 e 1959. Nos anos 1990, Ruy Castro, biógrafo de Nelson, compilou os textos publicados na Manchete e em outros veículos, como O Globo, em dois volumes: À sombra das chuteiras imortais e A pátria em chuteiras. Duas coletâneas de textos que retratam o fascínio de Nelson não tanto pela bola, e mais pelos 22 homens que correm atrás dela durante 90 minutos. Estão ali textos sobre futebol que se tornariam tão célebres quanto nossos mais emblemáticos contos e romances. Crônicas forradas de expressões que entrariam para o anedotário popular. “A pátria em chuteiras”, crônica publicada em junho de 1976, sobre uma vitória da seleção brasileira diante da Itália, ficaria eternizada na memória brasileira como uma metáfora para explicar a identidade da nação. “Amigos, a vitória de anteontem justifica uma meditação sobre o escrete. Pergunto: Para nós, o que é o escrete? Digamos: É a pátria em calções e chuteiras, a dar rútilas botinadas, em todas as direções. O escrete representa os nossos defeitos e nossas virtudes”, escreveu Nelson no texto que louvava a atuação do ponteiro Gil, que jogaria, dois anos depois, a Copa do Mundo de 1978, na Argentina.

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Não satisfeito com os personagens de carne e osso que entravam em campo, Nelson molhava a pena de ficcionista e saia a criar personagens imortais nas páginas efêmeras dos diários onde escrevia. Sobrenatural de Almeida talvez seja o mais célebres dos tipos criados pelo cronista Nelson Rodrigues. Entidade do futebol, Sobrenatural de Almeida era responsável por explicar o inexplicável. A todos os fatos inexplicáveis, ele responsabilizava o Sobrenatural de Almeida. Se um time inferior ganhasse de um time superior, era porque a entidade se fazia, mais uma vez, presente.

“Amigos, dizia Horácio que há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. Está aí uma clara alusão ao Sobrenatural de Almeida. Se Horácio fosse torcedor rubro-negro diria a mesma coisa, por outras palavras: “Há coisas na vida do Flamengo que só o Sobrenatural de Almeida explica”, dizia Nelson em texto de 1968, publicado em O Globo.

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Sua capacidade de criar personagens no âmbito esportivo era tão grande quanto no seu teatro, dando apelidos que recriavam as personas que entravam no seu campo criativo: Didi era chamado de “Príncipe Etíope”, Amarildo era o “Possesso”, Denilson, o “Rei zulu”. Acostumado a ir para o front das ideias, a receber críticas por sua sinceridade à flor da pele, Nelson quase sempre começava seus textos com um singelo “Amigos”.

Como se as páginas dos jornais fossem insuficientes, Nelson levou sua peculiar visão (ou falta dela, pois não enxergava direito) de jogo para a televisão. Ainda nos anos 1960, Nelson participou de um programa chamado “Grande resenha Facit”, provavelmente a primeira mesa-redonda da TV brasileira. E quem ganhava era o telespectador, que tinha o privilégio de testemunhar, ao vivo, a verve do cronista de jornal. Um dos lances mais memoráveis de Nelson na televisão se deu por conta da estreia do videoteipe. Em um acalorado debate sobre um pênalti não marcado contra o Fluminense em um Fla-Flu, Luis Mendes, para encerrar as dúvidas, mandou rodar o teipe. Ao ver o lance na televisão, todos concordaram: foi pênalti. Menos Nelson, que pediu a palavra e decretou: “Se o videoteipe diz que foi pênalti, pior para o videoteipe. O videoteipe é burro. E é só”. Um belo exemplo de que apenas Nelson Rodrigues era capaz de ver determinadas coisas em uma partida de futebol.