Especial Capa: Nas máscaras do descarado as mil caras do mascarado

Nelson de Oliveira
Karam


Manoel Carlos Karam? Conheci o bucaneiro com olhos de panda em 1999, em Sampa, no lançamento de seu quarto livro, Comendo bolacha maria no dia de são nunca. Tenho certeza da data porque guardei o convite dentro do livro (sim, meus jovens, no século passado os convites eram impressos). O lançamento aconteceu na extinta livraria Futuro Infinito, no dia 30 de setembro de 1999. Mal terminei de escrever a oração anterior e já senti um arrepio. Brrr. Paro de escrever. Sensação ruim. Um estremecimento provocado pela proximidade entre duas palavras: extinção e futuro.

Não gosto de ver o tempo devorando seus melhores filhos. Isso tem acontecido muito na literatura brasileira. Ficcionistas competentíssimos, como Maura Lopes Cançado, Uilcon Pereira e Holdemar Menezes, faz anos que desapareceram das livrarias. Seus livros não conseguiram chegar ao século XXI. Fascinantes livros. Eu convivia com eles na juventude. Muito me ensinaram sobre o delírio e a loucura. De repente, desapareceram do grande circuito das letras. Viraram raridade, coisa de colecionador. Hoje estão restritos a pequenos guetos: sebos, bibliotecas, coleções particulares. Amanhã, quem sabe: apenas poeira? Com a obra de Karam tenho medo que aconteça o mesmo. Que o futuro signifique a extinção.

Sorte nossa que leitores-escritores-editores como Joca Reiners Terron e Paulo Sandrini, apaixonados pela obra de Karam e de outros transgressores, gostem de remar contra a maré, contra a indolência do mercado editorial. Na virada do século a intrépida Ciência do Acidente, do Joca, publicou Comendo bolacha maria e Pescoço ladeado por parafusos (2001). Mais recentemente, a não menos destemida Kafka Edições, do Paulo, publicou Jornal da guerra contra os taedos (2008) e relançou os três primeiros títulos do autor: Fontes murmurantes (publicado originalmente em 1985), O impostor no baile de máscaras (1992) e Cebola (1997), que formam a Trilogia de Alhures do Sul.

No universo dos livros, o combustível da extinção é sempre a inércia. Os livros do Karam continuam aí, saudáveis, ainda disponíveis nas livrarias, porque dois leitores-escritores-editores malucos — heróis da resistência — decidiram ser parte da solução, não do problema. Karam vive! Oxalá Jamil Snege e Valêncio Xavier, atualmente na UTI, tenham a mesma sorte. Maura, Uilcon e Holdemar não tiveram.

Comendo bolacha maria é uma coleção excêntrica de aforismos, anedotas, jogos verbais, petiscos e safadezas. Praticamente todos os gêneros de prosa, do microconto ao monólogo teatral, dão as caras nesse divertido livrinho. Os personagens estão em perpétua perplexidade. A maioria não tem nome nem qualquer característica fundamental, nada que diferencie um do outro. São figuras sem identidade própria, sem gênero ou idade bem definidos, que tagarelam sobre banalidades e epifanias. São acima de tudo figuras muito engraçadas: tipos paranoicos, esquizofrênicos, obsessivos, zombeteiros.

Nessa multidão anônima, uns poucos protagonistas ganham rosto e certos atributos socioculturais: há, por exemplo, o sequestrado e os sequestradores, o doente dos nervos, o burro diletante, o delegado e o detetive particular, o taxista e o colecionador de nuvens.

Manoel Carlos Karam? Um dos nomes mais admiráveis da geração 80 de ficcionistas brasileiros. Aí está um sujeito perspicaz e bem-humorado. Essa foi a primeira impressão que eu tive ao conhecer o autor, na finita Futuro Infinito. Mais tarde, durante a leitura de Comendo bolacha maria, veio a segunda impressão: aí está um ficcionista competente. Tempos depois, Karam me enviou pelo correio seus primeiros títulos, que hoje formam a Trilogia de Alhures do Sul. Com eles, veio a terceira impressão: aí está um sujeito atencioso, gentil. Já a quarta e mais forte impressão veio com o tempo: aí está um homem generoso. Karam sempre foi um ótimo interlocutor, principalmente quando em contato com os escritores mais jovens.

De todos os livros que publicou, o meu predileto é Encrenca (2002). Este romance é sobre moedas e acasos, sobre cidades chamadas Relva, Bra
Karam
nco e Baires, sobre ruas chamadas Nova Heureca e Dezembro, sobre bares chamados About e Bispo Kg, sobre uma praça chamada Ontem, um café chamado Café Café e uma lanchonete chamada XY&Z. Sobre automóveis — ah, a cidade em alta velocidade! — do tipo Clap, do tipo Stella e do tipo Mail, sobre aspirinas da marca Shift, sobre bebidas chamadas Bambu e Gerard, sobre músicas chamadas “La cumparsita” e “Guarda-chuva”.

Encrenca? Essa história é sobre ladrões de diálogos, sobre transmissores de pranto, sobre Belbeltrana, moça muito interessante, seu gato Fitg e sua tartaruga Ftig. Essa história é sobre Invetral 2.500, medicamento capaz de alterar as propriedades do tempo e da memória. Ficção científica? Não: delírio em gotas, feito o colírio alucinógeno do Macaco Simão.

O fato indiscutível é que, não importa o livro, os personagens de Karam — os com cara e os sem cara bem definidas — são todos muito parecidos. Na verdade, são idênticos. A mesma voz, a mesma verve, a mesma visão amarga de mundo. Valêncio Xavier acertou na mosca quando avisou que Karam estava escrevendo o mesmo livro indefinidamente. Não só todos os personagens formam uma entidade única, uma superconsciência, como o mesmo jogo-brincadeira (expressão de Valêncio) vai sendo disputado livro após livro, com pequenos intervalos de uma encadernação para outra.

Esse sistema narrativo por si só já foge do convencional, porém o jogo continua também no palco. Antes de se tornar ficcionista, Karam foi um dramaturgo prolífero, que escreveu e dirigiu vinte peças de teatro na década de 1970. Basta dar uma espiada em peças como Bicho-de-sete-cabeças (1975) e Doce primavera (1976) para perceber que ele escrevia para o palco da mesma maneira que escrevia para o papel impresso e encadernado.

Muitos de seus personagens literários, aliás, têm um forte vínculo com o teatro. Por exemplo, os amigos Benjamim, Hopalongue, Maria, Marta Júnior, Oliveira, Serafim e Silvestre, de O impostor no baile de máscaras. Eles protagonizam capítulos-esquetes e se expressam por monólogos ou por longos diálogos, prato cheio para qualquer adaptação para o palco.

Benjamim é apaixonado por música (“Chega um ponto em que você ouve música mesmo quando não há música tocando”). Hopalongue gosta de cavalos, mas não tem nenhum em casa (“Quem gosta de elefantes também não”). Maria gosta de ir à estação assistir à chegada dos trens (“A paixão exige paciência”). Marta Júnior é a atriz de cenas sublimes (na primeira página de seu diário-coletivo ela escreveu: “Nós somos os caçadores da figurinha difícil”). Oliveira gosta de se disfarçar, nas histórias que ele mesmo conta (será ele o impostor no baile de máscaras?). Serafim acha muito complicado viver em finais de século (“Polaca não é nome nem apelido, polaca é marca de fantasia”). Silvestre costuma andar por aí falando sozinho (“Vou acender o cigarro de todos os habitantes da cidade”). São sete anti-heróis que vivem situações verdadeiramente falsas, falsamente verdadeiras. Sete contraventores que, só de farra, gostam de fechar ruas e avenidas com tabuletas em que se lê: “Trânsito impedido”. Juntos, são um bicho-de-sete-cabeças-borbulhantes.

Nunca conversei sobre isso com o bucaneiro mais célebre de Alhures do Sul, porém, considerando as cores absurdas desse Impostor e de seus outros livros, acredito que Ionesco e Beckett, meus prediletos no teatro, também deviam ser autores caros a Karam. Os três têm em comum o humor demoníaco que demole as instituições e a estupidez reinante.

A boa notícia é que uma parte importante do teatro de Karam será em breve reunida em livro pela arrojada Kafka Edições. Além de uma alentada iconografia, a antologia trará dois resgates (as peças citadas acima), duas adaptações da obra literária (Encrenca, de 2007, e Picando uma cebola em chamas, de 2008) feitas por leitores-atores-dramaturgos malucos — heróis da resistência: Nadja Naira, Luiz Felipe Leprevost e Michelle Pucci —, e três peças inéditas, entre elas Ovos não têm janela (adoro esse título). De quebra, a editora lançará também um volume inédito de ficções: Um milhão de velas apagadas.

Karam sempre insistiu no enredo labiríntico, nos protagonistas espiralados, na topografia onírica. Para ele, a literatura era farra e fanfarra, era a desforra do instinto contra a razão burocrática. Enquanto os heróis da resistência continuarem cavando trincheiras e erguendo barricadas, seus livros não desaparecerão.


Nelson de Oliveira nasceu em Guaíra, São Paulo, em 1966. É romancista, contista, cronista, ensaísta e organizador de antologias. Em 1995, ganhou o prêmio Casa de las Américas, pelo livro Fábulas, publicado no Brasil em quatro partes, a mais recente Algum lugar em parte alguma (Record, 2006). Organizou diversas antologias, como Geração 90: manuscritos de computador (Boitempo Editorial, 2001) e Geração Zero Zero (Editora Língua Geral, 2011).