Especial Capa: Mudaria o leitor?

A escritora Ana Maria Machado, autora de mais de cem livros para crianças e adultos, defende a internet e as mídias sociais como formas de difundir a leitura e a escrita

Ana Maria Machado
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Vocês me pedem um texto “sobre como é escrever, hoje, para um público que está mais acostumado com o computador do que com o livro de papel”. E como esclarecem que esse número especial do jornal Cândido será dedicado à literatura infantojuvenil, parto do pressuposto de que o público a que se referem é o constituído por crianças e jovens. A resposta verdadeira é absolutamente simples, de uma candura exemplar: é igualzinho ao que era antes. Não tenho a menor dúvida a respeito.

Mas não pretendo ser ingênua. Sei que, se perguntam, é porque há dúvidas por parte do perguntador. Ou seja, imagina-se que é diferente. Sei lá por quê. Será porque a língua é diferente? A literatura é diferente? O leitor é diferente? E será que se acha que o escritor tem um compromisso com a moda do momento e deve procurar ser efêmero para acompanhar essas mudanças que se sucedem cada vez com mais rapidez? Para tentar desfazer esses equívocos, procuro olhar a situação mais de perto.

Em primeiro lugar, vamos limpar o terreno. Não há por que distinguir o ato de escrever para o público adulto do ato de escrever para crianças. Quando se trata de literatura, claro. Se estivéssemos falando de obras didáticas ou de formação profissional, evidentemente constataríamos que há um abismo entre uma cartilha e um manual de linguística, por exemplo. Mas num jornal literário, podemos ter como ponto de partida a premissa de que só vamos nos ocupar das obras literárias. E nesse caso, sabemos todos que um autor não escreve para um público predeterminado e escolhido previamente, apenas mais acostumado a isto ou aquilo. Escreve porque quer expressar algo (e ex-pressão tem a ver com uma pressão de dentro para fora, que parte do seu íntimo e se joga no mundo). Ou seja, ainda continua válida a metáfora de Stendhal: um livro é uma garrafa lançada ao mar, com uma mensagem: “agarre quem puder”. Na hora em que o autor começa a se preocupar em atender especificamente esse eventual agarrador de garrafas, vai saindo do terreno da literatura e passando para outros – o da didática, do marketing, do jornalismo…

E por falar em jornalismo, vale a pena nos determos nessa escala, para clarear outro grupo de mal-entendidos. Literatura não é jornalismo. Por mais que possa haver muitos e ótimos jornalistas-escritores ou escritores-jornalistas. Como sublinhava Ernest Hemingway, excelente em ambas as áreas, ganhador de um Prêmio Pulitzer e de um Nobel: “jornalismo nunca fez mal a um escritor. Desde que largado a tempo”. E por quê? Porque o jornalismo, horizontalmente, tenta abarcar com rapidez uma grande extensão, enquanto a literatura, verticalmente, pretende mergulhar pontualmente na profundeza. E também porque o jornal no dia seguinte já está velho, enquanto a literatura continua viva e ainda se apura à medida que o tempo passa – como se comprova não apenas em clássicos antigos, de Homero a Machado de Assis, mas também em algum excelente livro saído no passado e apenas lido agora. Em outras palavras – e isso tem tudo a ver com a questão proposta: escrever literatura não é uma tentativa de ir ao encontro de costumes e preferências transitórias de um público, para agradá-lo e reforçar seus hábitos de consumo. Muito pelo contrário. Escrever é uma ruptura com o ramerrame e o consumo, uma aposta em certas permanências. Ou transcendências, se preferirem. Como toda arte. Como lembra Ferreira Gullar em algumas formulações excepcionalmente felizes: por um lado, é uma busca de completude, porque a vida apenas não basta. Por outro, é um questionamento do sentido de estarmos aqui, ao se tentar traduzir uma parte de nós mesmos em outra parte e compartilhar esse processo com os outros.

Nessa aventura da escrita literária, o fundamental no ato de escrever – o que lhe garante independência em relação aos modismos passageiros – poderia, simplificadamente, ser agrupado em dois campos.

O primeiro, básico, é o da linguagem. Um autor escreve porque vê a linguagem e tem necessidade de explorá-la, desafiá-la e aceitar seus desafios. Sente prazer nisso. Um prazer intelectual muito nítido. Um escritor digno desse nome, consciente de seu ofício, e não apenas procurando “o mapa da mina para vender uns livrinhos a mais”, não vai abrir mão disso ao sabor de vogas momentâneas. Esse mergulho na linguagem não tem preço – para ficarmos no slogan que remete ao mercado editorial. Não há por que jogá-lo fora, procurando se adaptar ao transitório.

O segundo campo tem a ver com as circunstâncias históricas em que vivem os leitores. Às vezes se imagina que as leituras dos jovens deveriam “ter a ver com a realidade deles”. Chega a ser engraçado. O fato de percorrerem as estradas da França a cavalo e não em moto não faz com que as aventuras dos Três Mosqueteiros sejam empolgantes. É a maneira fascinante como Dumas constrói sua narrativa. Qualquer leitor constata isso com facilidade. O que tem a ver com a realidade das pessoas é o que as atinge ou revela por dentro, não a maneira pela qual se vestem ou os objetos que usam no seu cotidiano.

É um desrespeito à inteligência dos jovens imaginar que, por estarem acostumados com computador e internet, convertem-se em semianalfabetos, incapazes de se deliciar com um bom texto que não fale de sua realidade imediata. Por um lado, obviamente não é verdade. Ao contrario da tela de televisão, que pode hipnotizar um iletrado e até um animal para contemplá-la por horas a fio, a internet e as mídias sociais exigem leitura e escrita. Por outro lado, comprova-se estatisticamente que nunca esse público jovem leu tanto como hoje em dia. Mesmo sem levar em conta as compras governamentais e as adoções às escolas, que consagram autores da área, em vendagens impressionantes, à margem das páginas da imprensa que pensa que sabe tudo sobre o setor. No mais, basta olhar as listas de mais vendidos, dominadas por bruxinhos, vampiros e livros de mulherzinhas. A tal ponto que, seguramente, indicam que é isso o que a maioria dos adultos está lendo também. Nada parece apontar para a premissa de que a geração acostumada com os computadores estaria lendo menos por causa deles. Podem é não estar lendo o que os bem-pensantes acham que ela deveria ler… Mas isso é uma outra história, que fica para outra vez – como se dizia no tempo em que o fascínio dos jovens pela literatura tinha de se contentar com histórias ouvidas oralmente e nem por isso menos poderosas.

Ana Maria Machado
é jornalista, escritora e tradutora. Escreveu mais de cem livros para crianças e adultos, publicados em dezessete países. Em agosto de 2003, tomou posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), onde ocupa a cadeira número um. Seu mais recente livro é o romance Infâmia (Alfaguara, 2011). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Ilustração: Rafael Campos Rocha